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sábado, 29 de maio de 2021

A POESIA BEM TEMPERADA

 


Are you coming to Scarborough Fair? / Parsley, sage, rosemary and thyme (“Você está vindo à feira de Scarborough?”) Canção folclórica inglesa de origem celta, fez grande sucesso com a dupla Simon & Garfunkel em álbum que leva o nome da feira. Vozes suaves, sintonia perfeita com a letra, falam de temperos: salsinha, sálvia, alecrim e tomilho, ervas que, além de sua finalidade primeira, trazem um certo ar místico, shakespeariano, misterioso como um sonho de uma noite de verão, qual devaneios de um amor nunca alcançado. Tanto Mar, do Chico Buarque, homenageia a Revolução dos Cravos, que derrubou 41 anos de ditadura de António Salazar em Portugal: cravos vermelhos eram inseridos pelos manifestantes nos canos dos fuzis dos soldados. A flor seca do craveiro, iguaria de perfume intenso e sabor levemente picante, é usada como tempero ou aromatizante de cigarros. Disse o bardo carioca, invejoso de Portugal, que reconquistara sua liberdade antes de nós: “Canta a primavera, pá / cá estou carente / manda novamente / algum cheirinho de alecrim”. Em festa de temperos e cheiros, do forte cravo e do perfumado alecrim, Chico homenageou a queda do regime do país irmão com graça bem temperada. 


Especiarias inspiraram Jorge Amado em Gabriela, Cravo e Canela”, que em 1975 virou canção na voz dengosa de outro baiano, Caymmi. A musa, linda morena temperada no cravo e da cor de canela, retirada da casca da árvore do mesmo nome, é ao mesmo tempo doce e picante, e rica em propriedades medicinais e estimulantes. Sobre o mesmo binômio - cravo e canela - perguntou Milton Nascimento em 1972: “Ê, morena, quem temperou / cigana quem temperou / o cheiro do cravo / Ê, morena, quem temperou (...) / a cor de canela”, enaltecendo fragrância e cor muito bem mescladas na pele da baiana. Zé Rodrix e Tavito, em 1972, deram de bandeja para Elis Regina sua “Casa no Campo”: “eu quero plantar e colher com as mãos / a pimenta e o sal”.

Manuscrito de um prelúdio do Cravo

Já O Cravo Bem Temperado (Das wohltemperierte Klavier), de Bach, pai de todos e mestre absoluto do barroco alemão, trouxe sob este título, em 1722, uma coleção de prelúdios e fugas nas 24 tonalidades maiores e menores - “para a juventude musical desejosa de aprender e especialmente como passatempo dos que já são versados neste estudo”. Em português, um feliz trocadilho sobre a obra: Bach não falava de Nelke, a flor, mas Klavier, o instrumento de teclados entre nós chamado cravo, como a flor. O temperamento é técnica de afinação que veio revolucionar a confusa vida dos instrumentistas, possibilitando-os executar peças em todas as 24 tonalidades do sistema ocidental. Além de obra-prima, o Klavier é um verdadeiro marco histórico.

[A fim de estudar temperos e cheiros, seria necessário mergulhar na história, na arte, nas superstições e nas suas origens, as mais variadas, com fontes que divergem com frequência. Mas...]

O "pequeno desvio" de Cabral

Em tempos de D. Manuel I, a descoberta da rota marítima para as Índias (1497/98) por Vasco da Gama abriu novo caminho para as especiarias tão cobiçadas pelos europeus. A própria viagem de Pedro Álvares Cabral, em 1500, que, diz a história oficial, teria como destino as Índias, teve vultoso financiamento de dois florentinos, Girolamo Sernige e Bartolomeo Marchionni, poderosos banqueiros e negociantes de especiarias - razão pela qual pode-se auferir que Cabral tinha certamente bons motivos para a desculpa surrada de uma ‘monumental calmaria’, para aqui chegar por acidente de percurso e ‘descobrir’ este torrão. Aproveitou-se dos abastados italianos das especiarias, e cumpriu as vontades e ambições expansionistas lusitanas.


Das nove especiarias citadas neste texto, temos a salsinha, que, reza a superstição, não deve crescer espalhada pela casa, pois fará mal aos que nela residem. O alecrim é cheiroso e alegre, mas, se murchar, a saúde de seu dono estará em perigo. O tomilho, ou timo, é bom para os pulmões e os intestinos, traz saúde e bons agouros. O cravo da Índia teve origem na Indonésia e é usado em doces e tabaco, além de suas propriedades medicinais. O óleo do cravo era empregado pelos dentistas para aliviar dores de dentes. (Na época do Descobrimento do Brasil, um quilo do produto valia sete quilos de ouro! Não espanta o interesse dos banqueiros florentinos pelas especiarias das Índias). Por fim, a canela (do latim cannella, pequena canna) é morena como a tez de Gabriela, e nome genérico para mais de uma dúzia de variantes da espécie. 


A American Heart Association (Associação Americana do Coração) fez vários estudos sobre as propriedades antioxidantes e redutoras de ateromas da canela. Em um experimento publicado em revista com ratos sob dietas com gordura excessiva registraram após três meses, entre a dúzia que também ingeriu canna, menor peso, menos gordura abdominal e níveis mais baixos de açúcar no sangue. Os outros doze – o ‘grupo de controle negativo’ -, ficaram obesos, portando ateromas e com níveis mais altos de glicemia no sangue, entre outras mazelas. A pimenta, chamada ‘tempero do amor’, é afrodisíaca, absorve mau-olhado e traz boa sorte, enquanto o sal de ervas tem propriedades mágicas e medicinais.


Plantas podem curar, já sabiam nossos longínquos antepassados, mas como toda medicação devemos conhecer-lhes os estudos científicos. Porque muito do que se toma sem embasamento ou não é indicado para uma doença específica – e sem a aprovação das autoridades sanitárias - pode não curar e mostrar-se um redondo engodo, trazendo riscos à saúde e à vida.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O CONTO DO VIGÁRIO

 



Se é lenda ou história, tanto faz, é fato. No século 18 houve, em Ouro Preto (MG), uma contenda entre as paróquias de N. Sra. do Pilar e N. Sra. da Conceição, sobre a posse de uma imagem da Virgem Maria. Para encerrar a querela, os párocos acordaram em colocar um jumento a igual distância das duas igrejas, e aquela em cuja direção o animal rumasse ficaria com a santa. Como o dono do jumento era o vigário de Pilar, para lá o animal se dirigiu, claro. A palavra vigarista teria surgido, assim, de uma ‘ideia de jerico’. Mas quem ‘pagou o pato’ foi o ‘cabeça de bagre’.


Um século depois, em Portugal contava-se que uma dupla de andarilhos, trapaceiros contumazes, chegava nas pousadas com um baú trancado dizendo-o cheio de dinheiro, e que eles estavam a serviço do vigário. Como o malão era pesado, pediam para deixá-lo escondido, para empreender uma curta viagem, ao fim da qual retornariam. Mas, por segurança, o baú não deveria ser destrancado. E pediam algum dinheiro emprestado para seguir caminho. O donos das pousadas, honrados pela deferência, entregavam-lhes alguns mil réis. Mas os gaiatos nunca mais voltavam. Daí, viria, pois, ‘o conto do vigário’. (Fonte: Brasil Escola)


Deonísio da Silva, linguista conhecido meu de alguns anos, cita outras fontes, como José Augusto Dias Jr., em Os Contos e os Vigários: a História das Trapaças no Brasil, e fala de Os Ladrões no Rio (1904), de um tal Vicente Reis, então delegado de Polícia, sobre um falso pároco espanhol. E não é que o genial Fernando Pessoa interessou-se pelo tema e escreveu que tudo surgira de um embusteiro português chamado Manuel Peres Vigário? O dicionarista e professor da USP Francisco Bueno credita a expressão ao “espírito irreverente dos ouvintes”, ao escutar os religiosos contarem aos incrédulos “da outra vida e da intercessão milagrosa dos santos”.  Calote, do francês culotte, um quase sinônimo que, também segundo Deonísio, no jogo de dominó se refere às pedras ‘que o parceiro não conseguiu colocar em jogo’. ‘Trocando em miúdos’, ‘calote’ serve bem quando o sujeito que fica devendo, ‘dá o cano’.


Mas vamos ‘tirar o bode da sala’, pois o tema da vigarice seria interminável se pesquisado a fundo, e ‘quem nasceu pra tatu morre cavando’. No Brasil, a prática da trapaça remonta ao Descobrimento - desde as trocas de espelhinhos pelas esmeraldas de índios deslumbrados até as Capitanias Hereditárias,  o Brasil Colônia, chegando triunfalmente à República. No século 20, já sobrava embusteiro: Chico Buarque bem os definiu, em Homenagem ao Malandro: “Agora já não é normal / o que dá de malandro regular, profissional / malandro com aparato de malandro oficial / malandro candidato a malandro federal / (...) malandro com contrato, com gravata e capital / que nunca se dá mal”. Ode ao pilantra moderno, que vive ‘a cantar de galo’ ou o chapa-branca, aboletado em cargo público e ‘mamando nas tetas’ do poder.

Hoje, o caloteiro passou a empregar truque mais poderoso, a informática. Hackers e seus trojans e phishings (o vernáculo da boa literatura que dava tanto gosto perdeu para um idioma à parte, em inglês ou algo parecido, ou ainda um dialeto cifrado, de sílabas truncadas). Quantos já adquiriram produtos que não há de sites de lojas que não existem? Quantos foram achacados via WhatsApp, SMS ou mesmo pelo hoje claudicante e-mail? “Sua conta será encerrada, por favor entre em contato conosco em ‘venha@caianessa.com – que o levará a uma espécie de autocombustão computacional e financeira. “Sua conta no ‘Tolobank’ foi bloqueada. Para recuperá-la, insira seu login e senha nos campos apropriados do link acima”, tendo ao fundo o logotipo perfeito da instituição. Se ‘cair feito um patinho’, não adianta ‘tirar leite de vaca morta’. Ah, e as compras em seu nome feitas via Internet, aquele programa ou app que você esqueceu no computador que vendeu e que ainda são cobradas no seu cartão sem que você autorize? Ou a renovação automática de um sistema operacional caríssimo que você não mais vai usar? Com sorte, você poderá reaver o prejuízo, cancelando a compra e recebendo novo cartão de crédito, driblando essas formas modernosas e elegantes de ‘dar um boné’. Que fale a sabedoria popular: antes ‘ficar com a pulga atrás da orelha’ que ‘montar um porco’ depois do ‘leite derramado’. 

Fernando Pessoa (Revista Bula)

Retornando ao ‘vigarista’ da memória popular, teorias acerca de sua origem vieram com frequência de Portugal via literatura, provérbios ou folclore, sem um rigor científico que carimbe um ponto de partida oficial para as versões usando o título dos reverendíssimos vigários. Data venia, prefiro acatar o Fernando Pessoa, poeta e prosador lusitano da mais alta estirpe que contou sobre o comerciante Manuel Peres Vigário. Acossado por um farsante, Manuel foi levado a repassar notas falsas de 100 mil réis, retendo de cada uma 20 mil para si no final. Em uma estalagem, embriagado de vinho, negociou com o proprietário, pedindo-lhe um recibo de ‘apenas’ 50 mil - o que o salvou, haja vista que o caso foi parar na Polícia. Escapou do xilindró e entrou na cultura popular em O Conto de Réis do Manuel Vigário (publicado sob o título O Grande Português e disponível na Internet, um texto delicioso de Pessoa que merece ser lido). Para concluir, apoio a tese do poeta lisboense e coloco o ‘vigarista’ na conta do ribatejano Manuel, dono do sobrenome Vigário. Façamos justiça e penitência aos párocos ordenados e paramentados, sempre a conduzir, como bons pastores, seus rebanhos de fiéis.



sexta-feira, 14 de maio de 2021

UM FURACÃO CHAMADO PAULO GUSTAVO

 


Confesso que antes pouco dele sabia, só que era da TV, do cinema, dos anúncios, e uma figuraça. Não dava para não rir com a Dona Hermínia, sua personagem mais conhecida, sátira às mulheres do gênero, ao seu estilo mais irreverente. Fazia um escrachado retrato da classe média, melhor comediante do que os talk-showmen da moda –poderíamos chamar, lembrando a vanguarda do cinema do fim dos anos 1950, de nouvelle humour. Tinha uma verve cênica personalíssima e uma presença impagável, um physique du rôle (o físico do papel, como se diz em teatro) que seduzia o Brasil além do cômico. Comecei a prestar mais atenção no Paulo, para mim alguém novo despontando nas ribaltas, enquanto ele já escalava o pico de uma bela carreira com perspectiva de ir muito mais longe: uma investida internacional já se lhe esboçava naturalmente. Mas quem era Paulo Gustavo?


Um niteroiense que logo, como tantos, atravessaria a Ponte para o Rio, ou, lembrando a música: “só mesmo vendo como é que dói / (...) trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói”.  Pois logo aventurou-se em uma seara desafiadora, o monólogo, gênero em que o personagem deve interagir consigo mesmo, preenchendo a cena de per si, e superava-se. Assim foi com Minha Mãe é Uma Peça (2013), trocadilho bem carioca de peça, como sinônimo de “figura” e uma encenação teatral. Foi seu primeiro grande sucesso, que puxou um livro homônimo, e logo um filme e as versões 2 e 3 da “Mãe”. Em 2020 estreou 220 Volts, na TV Globo, em substituição ao programa Profissão Repórter. Crescia na plateia e nos bastidores ressuscitando um humor irreverente, sadio, algo como as chanchadas da Atlântida de Oscarito, Zé Trindade e Grande Otelo. Homérico era o pastiche da dona de casa com bobes no cabelo, as pernas longilíneas, atuação sempre espontânea e bem improvisada. Foi um ator de si próprio, e bem lhe cabia um predicado antigo: era uma pândega. E chegou a recordista de bilheteria do cinema brasileiro com Minha Mãe é Uma Peça 3: incríveis 11,5 milhões de pagantes!


Nascido Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros, manteve, sem artifícios, o duplo prenome, e, mesmo aspirando à fama, não buscou o modismo do falso charme diferenciador, ou a ajuda de algum numerólogo para ungir-se artisticamente Paullo, Gusttavo ou ambos. Gay assumidíssimo, encontrou sua cara metade no dermatologista Thales Bretas, formalizando a união em 2015. Sonhando uma vida de casal para chamar de sua, a dupla teve, por meio de barrigas de aluguel, dois lindos bebês, Gael e Romeu. Materializava-se ali o sonho da típica mãe de classe média suburbana brasileira, a incrível Dona Hermínia.


No dia 4 de maio, Paulo deixou público e família, caindo vitimado pela Covid-19 após longa e inglória batalha, abraçado simbolicamente a uma torcida em seu favor que impressionava não apenas pelos números, mas também pelas demonstrações de carinho. Em seu legado, além e acima de tudo, grandes surpresas, como um lado até então praticamente desconhecido: naquele mesmo dia, o Padre Júlio Lancelotti, conhecido por sua bandeira Pastoral do Povo da Rua, da Arquidioceses de SP, revelou que recebera de Paulo R$ 1,5 milhão para que fosse construído um hospital especializado no tratamento de câncer. Por tudo isso e muito mais, Paulo recebe e continuará angariando em retorno uma enorme admiração póstuma de fãs e personalidades brasileiras, torcida que continua a crescer em proporção impressionante. Sem os narizes torcidos dos homófobos de plantão, calados pela simpatia e carinho.

Copastar (divulgação)

O ator tinha dinheiro suficiente não apenas para doar – como fazia no anonimato - vultosas quantias de dinheiro a instituições beneméritas. Por isso, pôde internar-se para tratamento da doença no Hospital Copa Star. Recebeu o melhor em tudo, e até, última esperança, o chamado ECMO (sigla em inglês para Oxigenação por Membrana Extracorpórea), ou ‘respiração artificial’. Com o oxímetro em queda livre, o aparelho trabalhava diuturnamente na oxigenação sanguínea do ator. Mas não bastaram a melhor tecnologia, não foram suficientes as incontáveis preces, homenagens e mensagens nas redes sociais, e as declarações e juras eternas de seu companheiro Thales. Quis o destino levá-lo antes que fosse alçado a uma consagração ímpar, rara em nosso cenário artístico.



Um aspecto chama a atenção sobremaneira: Paulo e Thales, nascidos homens mas declaradamente bissexuais desde adolescentes, com seus lindos bebês a quem dedicavam carinho parental, ao menos não sofreram ataques dos carniceiros homófobos a querer-lhes os fígados ou dos que odeiam declaradamente aqueles que fazem uma opção diferente da sua, por motivo que não cabe aqui discutir para não cair no lugar comum. Nem os palavrões de praxe, as piadas, as ilações grosseiras sobre a intimidade do casal, a alcova. Pelo contrário, um desfile de celebridades mostrou simpatia irrestrita, de Ludmilla a Caetano, de Marcelo Adnet a Elza Soares. O país já vem se acostumando a uma realidade muito antiga, que agora ‘sai do armário’: gente famosa como Lulu Santos, Nanda Costa e Daniela Mercury, por exemplo, que assume suas relações afetivas tal qual casais héteros.  A questão que se coloca agora é a comoção causada pela partida do ator, sua generosidade como ser humano, o carinho demonstrado pelas pessoas e um afeto geral por sua mãe, consubstanciada na hilária Dona Hermínia, inspirada em Dona Déa, adorável caricatura brega das mães da classe média e média alta brasileiras, retrato das amadas mães de todos nós.

sábado, 8 de maio de 2021

UM DEVANEIO DIFÍCIL: SONHAR-SE MÉDICO

 


Pesquisa feita na Inglaterra revelou que grande parte dos médicos e cientistas da área viu seu talento despertar por volta dos dez anos de idade, já em plena fase analítica. Não se trata, portanto, de um delírio infantil sonhar-se um deles, é um desejo que flui na consolidação de vocações. Tal sonho costuma ser conjugado com certas particularidades, algo como um interesse espontâneo por assuntos médicos, como livros e filmes na TV, do galã Dr. Kildare (foto) ao carrancudo Dr. House.


A paixão se revela toda vez que o tema ressurge como sonho à frente da criança, como se ela estivesse paramentada mentalmente, um pequeno especialista a enfrentar suas quimeras: vírus, bactérias, cânceres e outros, moinhos a vencer em lutas quixotescas permeadas de muitas tristezas, desgostos e frustrações. Mas é também um caminho que reserva ao ator desta carreira uma intensa satisfação ao se deparar com a indizível conquista da vitória, um pódio único que é sua grande realização pessoal: a cura.


Também passei por esses devaneios de branco, como muitos meninotes. Quando ia a Belo Horizonte visitar meus parentes, via com especial atenção um tio que não apenas me salvou, transformou-se em meu paradigma de profissional. Inteligentíssimo, perfeccionista, eu o vi, ainda jovem, sair correndo da casa de meu avô após um telefonema do hospital convocando-o.  Rápido como um raio, como dizia minha mãe, lá ia Marcelo Campos Christo atender uma emergência, em pleno fim de semana.


Quanto ao mencionado interesse espontâneo da criança em pesquisar sobre o assunto, atraía-me o porão da casa de meu avô, velhos livros que despertavam sobremaneira minha curiosidade. Nos de química, por exemplo, decorava da tabela periódica de elementos a fórmulas como o ácido sulfúrico e o cloreto de sódio – muito embora elas não me fossem de serventia alguma. Aos dez, doze anos, achava lindas as fórmulas, plasticamente até. (Curioso, minha filha ainda cedo apaixonou-se pela química e hoje é doutoranda pela USP e pesquisadora da Fapesp. Parece que essa ‘mosca azul’ a picou fundo).

A caverna dos Lage. Entrada

Moleque, eu invadia uma gleba de 53 hectares, ao pé do Corcovado, que ostentava um belo palacete. Na época abandonado e hoje um lindo parque, o imóvel pertencera ao Eng. Henrique Lage e sua amada, a soprano italiana Gabriella Besanzoni. Refúgio de traquinagens, galgávamos o alto muro para adentrar o paraíso – bem perto do apartamento onde morava, no Jardim Botânico carioca. Dentro, ‘arpoávamos’ jacas armados com as flechas de uma besta doméstica e invadíamos matas, para nós ‘nunca dantes desbravadas’, lembrando Camões. E chegávamos a uma enorme caverna com estalactites, mimo do engenheiro à sua musa.


Mas onde essas aventuras no assunto do meu tio? Pois foi de morcegos da caverna que contraí via respiratória uma histoplasmose, de um fungo que provoca uma série de problemas, não raro o dito “êxito letal”. Minha mãe levou-me a vários pneumologistas, até  um certo Dr. Aloísio, crème de la crème, mas nada de diagnóstico. Enquanto isso, meu tio Marcelo revirou livros, pesquisou e estudou tratados e publicações médicas até chegar às evidências que resolveriam a charada. Mandou vir dos EUA um teste e sim, era a causa do nódulo linfático. Seguiu-se o tratamento específico e a cura não tardou.


Apesar de ter outro tio, José Carlos, irmão de Marcelo e também um médico fabuloso, devido ao meu caso de histoplasmose minha admiração pelo primeiro inflou-se: quando crescer, quero ser ele, como se diz. Marcelo chegou a trabalhar com o Dr. Zerbini (foto), cirurgião cardiovascular que realizou o primeiro transplante de coração no país; criou um método para operar o baço evitando extraí-lo e ainda uma técnica de inserção de marca-passos. Para mim, tinha um defeito - ou virtude, concluo agora -, não lhe agradar meu sonho com a carreira de médico. Resmungava sempre, como bom mineiro, sobre a dureza da profissão, a exaustão, o burnout - algo como “queimar a mufa”. E insistia para eu seguir o que ele enxergava, meus supostos dotes artísticos, como o desenho e a música.


Talento me sobrava para encher-lhe a paciência – ‘menino curió’, dizia meu pai como bom caipira – até que um dia aceitou levar-me para assistir a uma cirurgia cardiovascular no hospital de BH que ele dirigia, o Felício Rocho (foto). Era uma troca da válvula mitral por uma prótese, coisa nada simples. Colocou-me de pé sobre um banquinho atrás do pano entre a cabeça e o corpo da paciente, pediu-me para ficar pressionando compassadamente uma espécie de bomba de borracha. A abertura com o bisturi elétrico, “fzzzzz”, senti como se fosse uma faca em brasa na manteiga. E o cheiro, ah, o cheiro: regurgitei na máscara e meu tio, ao olhar para cima, mandou nervosamente me tirarem dali, “se esse garoto cai eu vou preso!” Depois de limpar meu rosto e respirar um pouco, levaram-me embora, deixando para trás o centro cirúrgico, o sonho da medicina e o talento que não tinha. Reza o ditado que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, títulos que me bastariam.


Toda essa história pessoal vem ilustrar minha afeição pelos que trabalham cuidando das pessoas e salvando vidas. Especialmente agora, nos tempos cruéis de pandemia, minha admiração pelos médicos transborda do coração. Fora a periculosidade, é um trabalho que estressa, distancia os profissionais de suas famílias, cria-lhes problemas de ordem psicológica e coloca em risco suas próprias vidas. A eles, salvaguardados pelas vacinas e protocolos, o mundo deve incontáveis vidas nesta pandemia.