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sexta-feira, 25 de junho de 2021

MUDANÇA DE HÁBITO

 


Sob o título “A pandemia fez alguns americanos repensarem o banho diário”, Maria Cramer, do The New York Times (Estadão, 17 de junho) escreveu sobre Robin Harper, da aprazível Martha’s Vineyard de Massachusetts, que apesar de ter crescido com o hábito do banho diário, na pandemia reduziu o costume para apenas uma vez por semana, coisa já comum no país. Daí se especula: aproveita-se da máscara alheia em seu favor? Preguiça? Diz ela que não: “Sou mãe, trabalho em horário integral, e é menos uma coisa que preciso fazer”. Frio? Lá é pleno verão, de onde se conclui que banhar-se passou a ser um ato dominical de relaxamento. Mas quantos hábitos e, vou além, vícios e sestros não surgiram ou mudaram com a vida nesses tempos?


Creio que com a máscara acontecem alguns. Se observarmos bem uma sessão da CPI da Covid, por exemplo, entre o presidente, senadores e inquiridos certo tipo de sestro passou a ser incorporado. Ora empurrando a máscara para cima do nariz, sem pensar, como o comendador da novela da TV faz com as pontas dos bigodes, ora ajustando-a no rosto desnecessariamente: um novo TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), como vários outros. Nada a dever aos gestos do fumante, a terapia do manusear um cigarro para ocupar as mãos - mesmo que sem o glamour do cachimbo e o charme de prepará-lo, culminando com a arte da baforada. Um dos meus TOCs é alternar as máscaras N95 e PFF2 no mancebo do quarto na hora em que chego em casa: a usada vai para baixo, a segunda sobe ao primeiro lugar para o dia seguinte, e daí em diante.

(Portal Multiplix)

Bom hábito é evitar a aproximação de quem está sem máscara e só entrar em locais onde o uso do apetrecho é mandatório. Abusar do álcool em gel em estabelecimentos pode ser outro vício: reapertar o sifão do potinho várias vezes em minutos sem motivo aparente e, pior, ainda fazê-lo sem máscara ou no popular estilo “nariz exposé”, um contrassenso: o vírus penetra no corpo basicamente pelas vias respiratórias, axioma científico sobre o qual ninguém com juízo levanta dúvidas.

(defatoonline)

O número de mudanças no comportamento das pessoas, quando for objeto de estudos profundos e abalizados, pode assustar, se incluídos os hábitos não-visíveis, como pensamentos que confabulam nas cucas das pessoas, que cada vez falam menos. Devido ao isolamento, a comunicação oral teve redução considerável em boa parte da população. A maioria prefere apps em que se escreve quase em código; quando se grava, a conversa é truncada, é um de cada vez, falso diálogo sem interferências e apartes. E são vários softwares, como o WhatsApp e o Telegram, este último ilimitado e sem controle, parece que feito sob medida para os que frequentam os posts do chamado “gabinete do ódio”, dos milicianos e dos militantes das teclas que comandam manifestações e até arregimentam greves como a dos caminhoneiros – com a próxima já anunciada.

Fiocruz (EBC)

Como se não bastasse, entre os que contraíram o vírus tais sequelas são mais contundentes: no dia 18 de junho, seguinte àquele do artigo sobre o banho, o Estadão publicou matéria sob o título “Pela primeira vez, cientistas brasileiros descrevem como o coronavírus danifica as células do cérebro”, objeto de pesquisa realizada pela UFRJ, Fiocruz e Instituto D’Or sobre os danos do Sars-CoV-2 aos neurônios dos infectados. Pesquisas deverão mostrar como são as sequelas psiquiátricas e neurológicas e a resposta inflamatória sistêmica ao vírus. Nada, nada animador.

(Escola Educação)

O ato de se alimentar passou, para muitos, de necessidade fisiológica – e do prazer hedonista de degustar - para o vício de comer em excesso e beliscar fora de hora, descontroladamente, convite masoquista ao sobrepeso. Além dessa ansiedade, há a angústia agregada pelo momento político atual: a comunicação passou a ser mais lacônica e agressiva, produto das elucubrações da “cabeça vazia, oficina do diabo”. Fala-se menos, escreve-se menos, estuda-se menos, lê-se menos, e seria duvidar do óbvio ou discutir o sexo dos anjos negar que teremos uma geração mais despreparada – com as exceções de praxe, os ‘escolhidos’ que traçam seu caminho pelo mundo com enorme esforço, suas próprias réguas e compassos. A se projetar tal cenário muitas gerações para a frente, podemos imaginar, como em um filme de sci-fi, humanos com crânios atrofiados e polegares avantajados, seguindo a máxima de Lamarck (1744-1829): “o uso desenvolve, o desuso atrofia”. São games, controles, apps, tudo o que se manobra com dois dedos e muito pouca massa cinzenta, ou seja, quase sem pensar.

Whoopi Goldberg

No filme “Mudança de Hábito”, que dá título a este artigo (Sister Act, de 1992), a atriz e apresentadora Whoopi Goldberg é a protagonista: uma crooner de cassino que viu um assassinato, como medida de proteção à testemunha vestiu-se de freira para, escondendo-se, aprontar mil entre as colegas de convento e a madre superiora, fazendo o público desatar a rir. A crooner-sister é a personagem da Whoopi, que, profissional, observa 'de fora' a trama acontecendo com seu aguçado espírito crítico. Uma diferença entre o plot do filme e as mudanças de hábitos na pandemia é que no segundo caso tudo acontece sem a consciência dos atores – 25% vítimas de sequelas físicas, além das citadas mentais -, turbilhão neurológico e psiquiátrico ainda longe de ser qualificado e quantificado significativamente. Outra diferença é o sentido da palavra hábito: neste artigo, falo de uso e costume; no filme, é veste religiosa. Ambos hábitos que podem ser mudados e trocados, sem fazer o monge.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

O GOLPE BINÁRIO DO SÉCULO 21

 


Saldo de uma vil mistura de má-fé com falta do que fazer, ou de desemprego com a índole nata do brasileiro para a qual não há outra vacina senão educação, a cada dia que passa estamos e continuaremos vítimas de tentativas de fraudes e golpes. Não aquela moedinha e tampinhas de refrigerante sobre um caixote na Praça da Sé, truques de prestidigitação para lograr os incautos ou a autovitimização trapaceira para mendigar e roubar, os golpistas de hoje utilizam ferramentas mais poderosas: bits, linguagens binárias, extensões falsas e afins. Com uma vantagem: podem fazê-lo a partir da Romênia, da Rússia ou da Coréia, tudo sem sair do Brasil!


As queixas se avolumam, e não há delegacia especializada que dê conta dos crimes. As DPs civis não são dotadas de equipamento e pessoal para lidar com os cybercriminosos. Limitam-se ao possível, o Boletim de Ocorrência de autoria desconhecida. Isso, fora os novos punguistas das filas de banco – que não surrupiam carteiras, mas seu cartão e sua senha -, os clonadores com truques nas maquininhas, larápios com novas tecnologias, ladrões do Pix e dos cartões de crédito por aproximação.


No dia 2 de junho comprei uma boa máscara de proteção, a PFF2 da 3M, por meio de uma empresa de comércio eletrônico criada na Argentina e bastante popular do Brasil. O preço era convidativo e a proteção eu sabia excelente, poderia revezar com as duas N95 que já tenho. São máscaras de alta tecnologia e não-laváveis por serem eletrizadas, o que garante a destruição de possíveis vírus nelas    acampados. Finalmente, no dia 8 de junho chegou a encomenda pelo correio. Alegria! Formato concha, selos do Inmetro e da Anvisa, numeração especial indicada contra poeiras, névoas e fumos, uma beleza! Ou quase.


Para meu espanto, na aba inferior, que cobre o queixo, dava para ler “Mendes”, escrito grosseiramente a esferográfica, nome provável do usuário anterior. Reclamei, o vendedor Reis disse que o fornecedor marcava assim seus produtos. E que eu poderia devolver de graça e ter o valor estornado. Ora, ora, devolver? Que tipo de fornecedor chinfrim é esse? Devolver? Para ser revendida para algum incauto? Máscaras boas vêm em embalagens esterilizadas, lacradas, com todas as informações.


Há uns anos, havia o golpe da Loteria Espanhola, que paga os tubos em prêmios. Recebi por e-mail, e aceitei, para brincar, perguntando o que fazer. Estava em espanhol, mas fui respondido via Bélgica. Mais algumas questões, reenviei e a informação e desta feita o retorno veio ainda outro país. Ou seja, os fraudadores vão singrando entre provedores para impossibilitar sua localização. Mas o que queriam? Na ponta final, o gato apareceu: pediram uma boa cópia da página que traz foto (mais assinatura e informações...) do passaporte, além de uma conta bancária para que pudessem fazer o vultoso depósito. Não vou reproduzir o que escrevi em respeito ao leitor. Acabou a brincadeira, ou poderia ter dito o popular “a casa caiu”. (Lembrei-me da velha história americana do charuteiro ambulante que passava de porta em porta e recebia uma resposta que virou uma popular negativa para tudo há muitas décadas: sorry, but no cigar - “desculpe, mas sem charuto”. Por aqui, “perdeu, playboy”). Coisa do passado, a ladroagem progrediu!!! 


Tenho lido sobre modalidades de golpes nas redes sociais e matérias na imprensa. Criativos, aparelhados, os meliantes poderiam oferecer conhecimento e destreza a serviço da sociedade. (Os mais arrojados vendem-se caro a círculos nada canônicos do poder, que acabam atingindo um universo muito maior de pessoas: a massa de contribuintes, o povo).




Não bastassem os milicianos digitais, há os hackers do submundo político, os invasores institucionais, os criadores de fake news e os pilotos de máquinas de fazer mentiras. Ou, simplesmente, os propagadores de falsas informações com montagens grosseiras e textos mal redigidos. Em 2022, tudo indica, teremos à nossa disposição o poderoso 5G, que alçará a Internet a patamares até então desconhecidos, um novo mundo de informações em tempo quase real, o chamado “real-time”. Um alerta: os fraudadores, que antes lidavam com vírus bobos e hoje usam golpes comerciais e de espionagem com bugs de RNA ultramodernos como os phishings, galgarão rapidamente os degraus da nova tecnologia, tornando-se bandidos superpoderosos. Empresas serão aparelhadas para combatê-los e venderão seus escudos e antídotos – rapidamente neutralizados pelos criminosos, em uma roda-viva.

Não uso cartões de crédito por aproximação, pois que podem ser traiçoeiros e até, acredite, debitar valores em sua conta pela simples proximidade de uma maquininha com sua carteira no bolso. Não passo informações sobre nada pessoal, pesquiso a vida de cada candidato a “amigo” nas redes sociais: o que pensa, amizades comuns, principalmente, suas opiniões políticas e publicações – quando as há. Em suma, nada de desconhecidos ou que não tenham como recomendação tácita a afinidade com alguns amigos meus de boa reputação. Já tive meu perfil invadido supostamente da França, e diversos europeus passaram a ciscar no meu quintal. Foi o diabo para me livrar daquela disgrâce, mas passei a receber e-mails dizendo que tinham uma de minhas senhas - e a mostraram.


Se Gil compôs Lunik 9 em um longínquo 1967, “guerra diferente das tradicionais / guerra de astronautas nos espaços siderais”, o que será dos combates ora em diante? Como serão a disputa política em 5G, as fake news, e, pior ainda, tudo isso tendo em vista um previsível futuro 6G?

 

 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

"NADA A FAZER, SENÃO ESQUECER O MEDO"

 

O Grito, de Munch

Ao dicionário. Tenho o Houaiss on-line sempre aberto, forma rápida de consultar uma palavra, sua origem, etimologia, suas acepções e significados. Medo é o nome de um monte em Média, região da Ásia hoje parte do Irã. Ou "o monte de areia que o vento forma junto ao mar”, a duna. Na psicologia, é o “estado afetivo suscitado pela consciência do perigo ou que, ao contrário, suscita essa consciência”, ou ainda “temor, ansiedade irracional ou fundamentada”. A ‘ansiedade irracional’ leva à síndrome do pânico, distúrbio tão poderoso que faz o acometido ter medo de sentir medo, como parece representado no célebre “O Grito”, de Edvard Munch. De um assalto, de cair, de enfartar, não necessariamente apenas um deles. Uma boa viagem por essa doença foi narrada por William Styron, ele mesmo uma vítima (também autor de “A Escolha de Sofia”), em seu Darkness Visible, ou “Escuridão Visível” (em tradução infeliz, publicado como “Perto das Trevas“).


Quando jovens, não temos medo, somos eternos, sensação que vai se dissipando à medida que o tempo passa. A idade do juízo, que penso estar entre os 30 e 50 anos, coloca a indestrutibilidade super-humana do jovem em xeque: sim, todos deveremos morrer. À medida que avançamos na idade, o medo pode ocupar menos espaço, nossas mentes se dirigindo para um porto seguro, afastando-nos do que é ruim (ilações nada rígidas, é tudo peculiar a cada ser humano). Quem é da minha geração, mesmo na fase do super-homem, que situei entre a adolescência e a juventude, sabe como se dá essa transição.

Hélio Oiticica

Pois eu, talvez nós, leitor, éramos crianças quando do golpe militar de 1964, e adolescentes no AI-5, o golpe dentro do golpe. Certa rebeldia criativa dos artistas era convenientemente tolerada, desde que sob estrito controle e sem questionamentos ao regime, alvos de censura. O que levou Caetano a compor “É proibido proibir” em 1968, enquanto Gilberto Gil alertava contra o conformismo de muitos com “é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”.

Nietzsche

Friedrich Nietzsche, filósofo prussiano do século 19, lançou o conceito de super-homem (Übermensch), o homem superior, que seria o paradigma de uma nova humanidade – mas não toda, apenas os escolhidos, sabe-se lá por quem e porquê. Influenciou de Richard Strauss (“Assim falou Zaratustra”) ao gênio alemão da ópera Richard Wagner, aguerrido antissemita que perseguiu compositores judeus como Felix Mendelssohn. Claro, tudo isso vestiu como uma luva nas mãos de Hitler, apologista da “raça perfeita” em seu arianismo.

Marie Curie

Não há criatura que resista ao medo lancinante da tortura ou da morte. Então fomos uma geração excepcional, a que na idade do destemor da juventude teve medo, sim, mas soube esquecê-lo para sobreviver. Cabe lembrar a cientista francesa de origem polaca Marie Curie (1867-1934): nada deve ser temido, e sim compreendido: são tempos de sabermos mais, para que temamos menos. Repete-se a máxima “o homem tem medo daquilo que não conhece” - quanto mais conhecemos, mais afastamos os temores.


Na cultura popular, o medo é transmitido oralmente, e quase sempre se espelha em incidente passado: do gato preto, de passar debaixo de uma escada, de sair do banho quente e tomar uma lufada de vento. Se há peixe e carne bovina à mesa, deve-se servir primeiro da carne, porque “se quer que a morte o deixe, coma a carne, e então o peixe”. Essas tradições podem ter começado com um fato verdadeiro sem nexo causal, talvez já perdido no tempo: alguém deve ter morrido por algum mal qualquer após a ingestão de peixe seguido de carne, daí o ditado.

Salvo-conduto de meu avô,
para exílio em Portugal

Milton Nascimento, em “Caçador de Mim” (1981), de Magrão e Luís Carlos Sá, desabafou: “Nada a temer senão o correr da luta / nada a fazer senão esquecer o medo / abrir o peito à força numa procura / fugir às armadilhas da mata escura”.  Ruy Guerra escreveu: “nasci com a minha morte / dela não vou abrir mão”: a única certeza infalível do pensamento humano. (Nasci também com o DNA de golpes e ditaduras herdado de meus pais, que viveram duas delas, e meu avô materno, preso e deportado pelo Estado Novo em 1932, o meu bisavô...)



O Brasil passa por um período de angústia pré-medo, nem tanto para quem não viveu um ditadura ou viveu em lugar afastado dela, alienado. E com certeza, o medo é bom para quem o destila em seu veneno intimidador.  Motivos para o temor há de sobra: a pandemia, flagelo que mata mais do que guerras e hecatombes e que sofre com o descaso de quem mais deveria dela cuidar. Uma economia em frangalhos, os juros se preparando para a escalada contra uma inflação que, se não é real nos dígitos, certamente o é nas feiras e supermercados.  Não há mágica para que uma economia em crise abissal seja controlada tão cedo: a nau está sem rumo! (Não em uma calmaria que nos levará a um descobrimento, mas a uma grande borrasca que poderá arrastar boa parte dos vivos para junto dos que já se foram). Na tragédia, Desdêmona bradava “precisamos enterrar os nossos mortos”; Cristo (Lucas, 9:60) ensinava a seguirmos em frente: “deixa aos mortos enterrar os próprios mortos”.

gal. Vernon Walters, da CIA, com
Castelo Branco, no pré-golpe

Se em 1964 houve um conluio com os EUA, com participação “in loco” do embaixador Lincoln Gordon e do gal. Vernon Walters, da CIA, poderosas indústrias como a IBM, AT&T, Dow Chemical e muitos dólares, hoje há uma liderança ensandecida pela vaidade, uma classe militar em grande parte de boa índole, mas com uns tantos aboletados em privilégios sob a manipulação de um poder individual que parece crescer a cada dia. Nada a fazer senão esquecer o medo!                                                                        

 

sexta-feira, 4 de junho de 2021

BREVE GLOSSÁRIO DE NOMES E SOBRENOMES

 

Eduardo, O Confessor

Iair (iair), em hebraico “a luz de Deus que desperta”, foi nome de um guerreiro da tribo de Judá em Gileade, admirado por seu poder e riqueza. Em não muito tempo, Iair galgou os degraus do poder e foi juiz dos hebreus por 22 anos! Eadweard, entre os anglo-saxônicos, significava ‘o guardador da riqueza’, e deu nome a onze reis, só na Inglaterra. Edward, ambicioso soberano do século 11 e dos últimos anglo-saxônicos no trono, teve curto reinado: apenas 18 anos. Não exatamente por virtudes caras à Igreja Católica, mas pela sua ascendência na Casa de Essex e o exercício discricionário do poder, apesar de nem tanto cristão foi canonizado pelo Papa Alexandre III com o epíteto Eduardus Confessor.

São Carlos Borromeo

Flavius
, de origem latina, remete a “cor de ouro”. Entre os romanos do ocidente, no séc. 5, foi um imperador conhecido não exatamente pela piedade, como seu antecessor. Pelo contrário, tinha lá seu “saco de maldades” e gostava de ostentar a imagem de homem rico e poderoso. E Cárolus tem origem no germânico Karal, “o tal”, “o cara”, nome que em suas variações se refere a bom número de reis franceses, portugueses, ingleses, suecos, húngaros e espanhóis. Devem ter vivido muitos Cárolus, das piores maldades, e talvez por exceção um deles teve a alcunha de “O Bom”: o conde de Flandres no séc. 11, canonizado São Carlos Borromeo, que por sua menor envergadura não chegou a voo de maior alcance.  

Laila Andersson,
como Micaela

(Há ainda o bonachão Charles, príncipe de Wales, cuja maior fortuna foi ter se casado com a bela Diana - na mitologia romana, deusa da caça, e na grega, Artêmis, filha de Zeus e irmã de Apolo: o poder aliado à beleza).  Micaela deve sua origem ao hebraico: Michael (de Mikha, quem, e El, Deus: “quem é Deus”?) Uma recatada senhora, canonizada pelo Sumo Pontífice, ficou conhecida como Santa Maria Micaela, cuja data passou a ser celebrada todos os dias 24 de agosto. (Na belíssima ópera Carmen, de Bizet, Micaela era a loira que tinha queda pelo soldado Don José. É dona de uma linda ária que só não chega à altura daquela do papel-título Carmen, esfuziante em sua habanera. Micaela não era de grandes virtudes, seu papel e discrição não a permitiam, queria ter Don José mas não era do bas-fond como Carmen).

Omar Kayyámm

Do latim vem Mourus, de onde Mouro, Moro e outras variações, referindo-se a mourisco. Em Portugal é comum o sobrenome Mourão, e reza um agouro que, ao se tirar um dente de leite podre de uma criança deve-se jogá-lo no telhado e dizer três vezes: “Mourão, Mourão, me leva este podre e me traz outro bão”). Os mouros ocuparam a Península Ibérica de 711 a 1453, mais de dois séculos da vida do Brasil pós-descoberta de hoje! Omar, do árabe (âmara, vida longa), foi nome de diversos califas e um grande poeta e orador persa, O. Khayyámm, que viveu no séc. 11. (Omar Sharif, grande ator egípcio-americano falecido em 2015, entrou para a história do cinema com Lawrence da Arábia).

Ernest Renan

Ronan, de origem bretã, tem suas variantes Renan e Renano, de rena - pequena foca. Deu sobrenome ao francês Ernest Renan, eloquente orador e filósofo do séc. 19, intelectual do gênero l’homme universel, tantos os assuntos que dominava. De origem inglesa medieval é Randolph, de rim - shield, máscara de proteção - e wolf, lobo. Um dos grandes personagens da história com este nome talvez tenha sido Randolph Churchill, filho do estadista.  Político, escritor e jornalista celebradíssimo por sua sagacidade em tempos de guerra ou fora dela, arguto e articulador, fez jus ao sobrenome do pai, William Churchill.

Dimas, "O bom ladrão"

Há muitos coadjuvantes neste glossário. Dimas, por exemplo, pode ter cometido seus erros em vida, e foi crucificado à direita de Jesus, com Gestas à esquerda do Senhor. Arrependeu-se de seus pecadilhos e foi absolvido pelo Senhor, segundo o evangelho de Lucas, 23:43: “em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”, tornando-se conhecido como “o bom ladrão”. Confessou, foi desculpado e canonizado, exemplo símbolo da força do arrependimento e da bênção do perdão divino. Figura dos bastidores deste glossário é Olavo, nome vindo do anglo-saxão Oslaf, “o filho dos deuses”. Chamaram-se Oslaf seis monarcas da Noruega, dois da Dinamarca e um rei da Suécia. De vida aparentemente apagada, este último, Olof Sköttkonung (séc. 11), mantinha um domínio inebriante sobre seus súditos, que a ele se tornavam subservientes e crédulos, fosse nas verdades ou nas mentiras.

O rei Arthur (tapeçaria)

De grande poder e notável articulação foi Roderico, do alemão Hrodrik, de hrod, glória, e rik, senhor, por conseguinte “senhor da glória”, nome que em português é o popular Rodrigo. Na Espanha, do latim veio Roderichus, nome do último rei visigodo; espanhóis, como ele, foram o poderoso conde Rodrigo de Castela e, mais apagado, Queiroga, do galego “urze (uma erva) pequena”. Arthur tem origem celta (art, urso, e ur, grande), e foi soberano tão habilidoso que gerou diversas lendas, às vezes difícil é distinguir o real do imaginário. Era tão versado nas armas quanto no lidar com as palavras – assim, mostrava-se sábio e induzia todos a crerem em suas convicções com um discurso muito bem articulado.

Este texto não se pretende uma coleção de genealogias, mas um passeio ao redor de nomes de personagens a quem por algum motivo o leitor pode ter feito suas associações. Se não, que mal importa, ao menos fez comigo uma promenade em assunto no qual não sou especialista, só estudioso por paixão: a origem dos nomes e sobrenomes.