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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

ARNALDO JABOR E O IMBRÓGLIO COLEGIAL

 


Arnaldo Jabor estudou em um colégio de padres no Rio de Janeiro
onde me orgulho de também ter estudado. Era bem mais velho do que eu - aliás, quando ingressei, no ginásio, ele já havia saído com outros de seu tempo, como Cacá Diegues, também futuro cineasta, e Edu Lobo. Minha turma veio anos depois. Ainda colegiais, vimos Jabor se envolver com a turma do Cinema Novo, no rastro da Nouvelle Vague francesa. Aos 24 anos, um tanto precoce para a idade, já estreava como cineasta com um curta-metragem, Opinião Pública. Se nunca nos encontramos em meus tempos de colégio, dada a diferença de idade, anos depois foram duas vezes, em ocasiões fortuitas – uma, no tradicionalíssimo Bar Luiz (de 1887!), reduto da turma cult em que música, teatro, literatura e cinema passeavam livres entre as mesas. Ali fui apresentado ao Jabor, tendo como ‘gancho’ nossa origem escolar comum, o que gerou assunto com facilidade, são tempos de que nenhum ex-aluno vai se esquecer. Outra foi em uma peça do Plínio Marcos, não me lembro qual. Como disse, foram encontros fortuitos e rápidos.


Um punhado de anos depois
, já de volta dos EUA, eu havia ido ao Rio de Janeiro visitar meus pais. Estava no Aeroporto Santos Dumont aguardando o próximo voo para São Paulo, o que reservara havia sido cancelado. Sentei-me no saguão de espera e um sujeito alto, coisa de 1,90m, aboletou-se duas poltronas à esquerda. Não resisti, virei-me e perguntei: olá, Jabor, lembra de mim? Cenho franzido, disse sim, mas parecia não localizar em sua memória quem eu era e de onde. Falei de assuntos passados e do colégio, e a conversa logo engatou.

(Isto É)

Jabor vinha sendo atacado aqui e ali
, alvo de um movimento ultraconservador do próprio colégio - em um de seus artigos ele havia tocado em um assunto tabu na sociedade brasileira: os padres pedófilos. Em direção oposta, hoje o Papa Francisco diz que a pedofilia é um ato cruel, e que a Igreja como um todo deve pedir perdão (Isto É, 18/09/21). Lasquei no Jabor uma direta perguntando: quer dizer que você conheceu o padre João Bocão? Ele deu um salto teatral da cadeira e se colocou à minha frente, fazendo um gesto de tesoura com os braços cruzados à frente e dizendo alto: comigo, não! E perguntou-me se eu havia conhecido aquela pessoa folclórica, eu disse que sim, mas que o velho padre então se resumia a fazer para os alunos as mágicas que trazia nos bolsos da batina, objetos como bolinhas de espuma, lenços, cartas de baralho – ele já era assunto conhecido fazia tempo.


Ato contínuo, Jabor me chamou para um café
, dizendo eu pago! com aquela ironia meio espalhafatosa que o tornou tão peculiar. Sempre com jeito teatral, colocou a mão em meu ombro e disse: você vai ser minha testemunha! Eu ri, dizendo que não havia visto nada, mas que, claro, sabia como todos quem fora o tal de João Bocão – um diálogo para lá de histriônico. E assim terminamos nosso café, esticando o papo até a fila que já aguardava a chamada para o voo. Uma figura extremamente divertida, de inteligência fora do comum, um papo daqueles que se diz “para uma viagem de circunavegação” alternando política e o que é que estávamos fazendo da vida - ele em uma espécie de hiato em sua filmografia, depois do sucesso de “Eu te amo”. Mas escrevia para jornais e TVs, disparando a torto e a direito, da direita à esquerda, palavras às vezes amargas mas sempre carregadas de uma ironia que tinha o dom de envolver as pessoas.


O assunto João Bocão rendera pano pra manga
: alguns pais da classe média de cara amarrada e o colégio, excelente mas muito conservador, fechando-se em copas no assunto, para que não resvalasse em sua reputação. Nunca teriam levado os respingos do affaire João Bocão se tivessem ao menos dado uma resposta à sociedade, como faz exemplarmente o Papa Francisco, à frente da Igreja como um todo. Foi assunto de bastidores, piadas nos bares, sussurros nas clausuras, poderia ter sido um trunfo se averiguado e, se confirmado, punido, se não, desmentido. Jabor, polemista, escreveu, em O Tempo (19/12/11), “Só os anjos não têm sexo”, em que sustenta que a pedofilia na Igreja é resultado direto do celibato, quando o religioso, sem conseguir conter seus instintos orando, se deixa cair em tentação. Vê na lembrança do beija-mão na entrada do colégio uma cena em que signos e símbolos da paternal hierarquia religiosa envolvem um clima propício, segundo ele, para esses desvios. 


A Suprema Felicidade

O cineasta não descansou, rodou um filme que contou essa memória
. O cenário ideal fora o então desativado Colégio Sagrado Coração de Jesus, que já servira de set de produções diversas, como “Cazuza”. Para as externas, escolheu Marechal Hermes, bairro da Zona Norte do Rio, região de Madureira, onde, segundo ele, ainda havia um “espírito nostálgico em um Rio decadente”. Locações que remetiam à sua época de aluno, perfeitas para lembrar os seus tempos colegiais, que descrevia com estilo inimitável. No local foi encenada parte de seu primeiro longa-metragem após um jejum de 26 anos: A Suprema Felicidade, de 2010.

Créd.: Terra

Com uma pesada bolsa de couro a tiracolo
, Jabor, atrasado como nunca devido ao cancelamento do voo, correu em desabalada pela escada do avião e, entremeando aquele monte de gente, até o saguão de desembarque em Congonhas. Virando-se para trás, acenou umas duas vezes, com aquele sorriso enorme. Uma curta amizade de ponte-aérea que não prosperou por descuido do destino. Daquele jeito de ser do Jabor, bem seu espírito e estilo: simplesmente fascinante. Sentiremos muita falta dele.

 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

ÁGUA!


Um samba
: Água de beber, água de beber, camará... Toada: água de beber, bica no quintal, sede de viver tudo. Das mais belas: são as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no seu coração; chove, chuva, chove sem parar; traga-me um copo d’água, tenho sede, e essa sede pode me matar... Ó chuva, vem me dizer, se posso ir lá em cima pra derramar você... Lamentoso: E choveu uma semana e eu não vi o meu amor, o barro ficou marcado aonde a boiada passou; a noite está tão fria, chove lá fora, e essa saudade enjoada não vai embora; esta cidade, que ainda é maravilhosa, tão cantada em verso e prosa (...) qualquer chuva causa enchente. Com suingue: chove, chuva, chove sem parar, pois eu vou fazer uma prece pra chuva parar de molhar o meu divino amor.


Caiu tanta água, mas tanta
, que só com oração para falar com ela - seja para agradecer, seja para pedir uma trégua. Foi água molhando as plantações e nossas plantinhas, mas um volume fenomenal causou tragédias pelo país: Rio - em especial Petrópolis - , Bahia, Minas...Pessoas desabrigadas às centenas, muitas mortes. A água é implacável, tanto que Deus confidenciou a Noé, um homem de coração puro, que um imenso dilúvio sobreviria, cobrindo o mundo até que todos os seres vivos desaparecessem. E mandou-o construir um enorme arca, grande o suficiente para suportar a longa jornada do castigo. Queria que Noé sobrevivesse ao dilúvio, para depois recomeçar o repovoamento da terra e a vida animal. Com detalhes: “Você fará uma arca em madeira gofer, depois divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (Genesis, 6:14). O dilúvio seria um grande castigo pelo mal que imperava na terra, e a arca uma tentativa de recomeçar tudo.


É sabido que tomar coalhada e beber água “dá diabete”
, e que ao passar a roupa não se deve beber água fria para não estuporar, e uma desgraça pode acontecer com quem sai do banho quente e pega vento! (Minha bisavó usava muito da água panada - água com pão dissolvido - a fim de curar seus parentes. Todos criam, e às vezes dava certo: a panaceia é muleta amiga ciência). A tradição popular diz que a água serve tanto para o bem quanto para o mal (e como, eu diria!), que a sombra dos mortos não pode atravessar a água, e que o feitiço em um objeto é desfeito quando ao atirá-lo n’água. Aos que dormem com um copo d’água no criado mudo, antes de bebê-lo devem agitá-lo - sabe-se lá o porquê. Se for beber na hora de dormir, é necessário abanar a água, dizendo antes “acorda, Maria”; e quem sai de casa para a natureza antes de a aurora chegar deve, antes de beber dos rios, atirar uma pedra n’água, para acordá-la (GARCIA, Penha. Etnografia da Beira. Lisboa: Ed. Império, 1963).


Não se deve beber água com um candeeiro na mão
! Quem o fizer pode emudecer e cair morto, e nem se deve olhar o rosto refletido na água de uma poça porque o demônio pode arrastar a pessoa às profundezas do inferno. Rapazes, água que lavou camisa de uma mulher, se bebida fará com que vocês abandonem outros amores e se apaixonem pela dona da camisa! (FERREIRA, M. C. Superstições. SP: Edicon, n/d).

Water Music

Na música clássica
, temos a bela La Cathédrale Engloutie (A Catedral Submersa), de Debussy, que era magistralmente interpretada ao piano pela nossa Guiomar Novaes. Magnífica é a pomposa Water Music (Música aquática), de Händel, composta sob encomenda do rei George I especialmente para ser executada sobre o rio Tâmisa, em Londres. Apresentada pela primeira vez em um cabalístico 17/7/1717, tem a duração aproximada de uma hora. A corte seguiu em uma barcaça, enquanto outra levava cerca de 50 músicos, ambas as naves flutuando sem remos ao sabor da lenta correnteza. O trajeto começou no Whitehall Palace e terminou em Chelsea, a cerca de 5 km de distância, um longo e encantador passeio musical. Além da Catedral de Debussy, com aquela magia da sedução dos impressionistas, Ravel compôs Jeux d’Eau (Jogos d’Água), que tem uma memorável interpretação do virtuose Claudio Arrau ao piano. Chopin escreveu um lindo prelúdio, o nº 15, Op. 28, Raindrop (Gota de Chuva), e Schubert (Die schöne Müllerin, D 795, nº 20) Des Baches Wiegenlied (A Canção de Ninar do Riacho), uma obra magnífica para piano e contratenor (voz de homem que soa como o contralto feminino).


Água é o começo de tudo
, não há vida sem ela. Quando cientistas encontram vestígios de água em algum planeta ou satélite, é porque ali pode haver ou ter existido algum tipo de vida. Mas hoje têm acontecido fenômenos de extremas secas e calor ao mesmo tempo que tempestades em lugares nada usuais - rompem-se barragens em Minas e enchentes alagam na Bahia. Enfrentamos um aquecimento global, conforme explica a Drª Cíntia Leone, ambientalista e divulgadora científica, jornalista e doutora em ciência ambiental pelo Procam/USP, fazendo coro aos cientistas do mundo todo. Ela sintetiza: “A mudança climática é a principal notícia do nosso tempo. É fundamental informar o público sobre seus desdobramentos sociais, políticos e econômicos” (UOL Economia, 10/02/2022).

No Brasil ocorre um retrocesso: ignora-se o perigo da mudança climática, e hoje devasta-se mais do que nunca. A floresta cede ao agronegócio desenfreado e ao tóxico garimpo, faz-se vista grossa ao extrativismo insano, e enquanto uma pandemia nos dizima há quem exulte porque assim é mais fácil “deixar a boiada passar”. Se tivermos outro dilúvio não haverá uma nova arca, e o preço que custará a ignorância e ambição de uns deverá ser alto, muito alto para o ser humano. 

(InfoEscola)


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

SEM AÇÚCAR, SEM AFETO

 


Chico Buarque tem muitas canções e letras dedicadas a mulheres
, algumas para serem por elas cantadas. Em 1966, compôs para Nara Leão: “Com açúcar, com afeto / fiz seu doce predileto / pra você parar em casa”. Palavras de esposa submissa, como era costume no passado – aliás, realidade que teima em sobreviver até hoje: a mulher subserviente. Era a primeira música em que o compositor assumia sua porção mulher, cantando como se tal fosse. Nara havia dito que gostava de canções “em que a mulher fica em casa, chorosa, enquanto o marido fica na rua, farreando” (HOMEM, Wagner. Chico Buarque. SP: Ed. Leya, 2009). Nem o doce favorito pôde fazê-lo abrir mão da boemia: entra em um bar a cada esquina, chega em casa quando quer.


Chico repete o tema muitas vezes
, como em Cotidiano (1971): “todo dia ela faz tudo sempre igual / me sacode às seis horas da manhã / me sorri um sorriso pontual / e me beija com a boca de hortelã”, rotina servil do dia a dia. Em Feijoada Completa (1977), ele manda a esposa fazer comida ‘pra um batalhão’: “...bota a mesa no chão que o chão tá posto / e prepare a bebida e o tira-gosto” (...) / “Aproveite a gordura da frigideira pra melhor temperar a couve mineira” - assim, comandaria a sonhada festa de anistia para quando os exilados retornassem ao Brasil (op. cit.).


Em Mulheres de Atenas, fala em nome dos homens
: “Mirem-se no exemplo / daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / orgulho e raça de Atenas”. A veia poética do autor foi buscar na antiguidade grega o retrato em que as mulheres de hoje se espelhariam. Chico, machista da pior laia? Para quem o conheceu, claro que nunca. É sangue do poeta como que cantando o sofrimento da mulher no dia a dia: manda-a servir a mesa para os amigos se esbaldarem de feijoada e cachaça, ou se servem ao homem que retorna a Atenas após a batalha. Realidade que não é a dele, Chico, um gentleman, tímido que só. Mas é o que acontece, como foi no passado e ainda hoje insiste em rondar as páginas dos jornais – mulheres exploradas, seviciadas e até assassinadas. E como ainda há disso nesses brasis!


Mas de onde este assunto?
Chico declarou em um documentário sobre Nara Leão que não mais cantará Com Açúcar, com Afeto, dizendo-a uma canção machista, embora há décadas fora de seu repertório. Ou se arrependeu de cantar como se fosse uma mulher? Não proibiu a canção, nem haveria como, mas provocou um escarcéu.


Nosso cancioneiro estaria ceifado pela metade segundo a lógica pós-moderna
, a tal ‘politicamente correta’. E seriam proscritas tantas músicas, como as que os carnavais cantaram: “Olha a cabeleira do Zezé / será que ele é / será que ele é?”  (J. R. Kelly e Roberto Faissal, 1964). Homofóbica ao extremo, diriam hoje. Também politicamente incorreta, do “misampli a ferro e fogo / não desmancha nem na areia” e “nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia?” - com essa deliciosa aliteração percussiva, “tiquití” (R. Soares e David Nasser, 1942, ano de Amélia, do Ataulfo e Mário Lago). Homofóbica e racista, diriam hoje de uma e outra, com certeza.

Navio Negreiro (Rugendas, 1803)

O francês Debret (1768-1848) e o alemão Rugendas (1802-1858)
, pintores que viveram no Brasil e retrataram negros tratados como fossem animais de carga e recebendo chibatadas, deveriam ser esquecidos por mostrarem a dura realidade daquele tempo? E O Navio Negreiro (1868), do grande poeta Castro Alves, obra-prima de nossa literatura, falando dos negros sendo arrastados à força da África para serem trazidos em um navio a fim de servirem de escravos aos senhorios? Seria esse poema para ser esquecido? Mais: Cleo Monteiro Lobato, neta do escritor, trocou" a boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira", por "Nastácia deu uma risada gostosa").


Retrata-se o mundo tal como ele é ou era, coisas atuais, vivíssimas, ou de época. Pois se existiu - e de alguma forma ainda existe -, é como retrata Drummond, em Confidências de um Itabirano: “Itabira é apenas uma fotografia na parede, mas como dói!” A dura realidade do negro, da mulher, do índio, dos homossexuais e minorias ainda perdura, como no recente sacrifício do congolês Moïse Mugenyi Kabagamba, 24, em um quiosque da Barra da Tijuca chamado Tropicália, por cobrar duas diárias que lhe eram devidas como empregado (Caetano disse que chorou quando viu o nome do movimento que incluía Gil, Gal, Mutantes, Capinam e vários outros, além dele, e “sobretudo Hélio Oiticica, que criou o termo”, associado ao episódio).


Voltemos ao Chico
, que afirmou em um documentário sobre Nara Leão, para satisfazer as feministas, que não mais cantaria aquela faixa, (BBC News, 2/02). Mas foi mais razoável à revista Realidade, em 1972, quando disse que tem “controle limitado sobre o que compõe” – ou seja, podem cantar, fazer o quê? Mas ele não mais canta por apelo das feministas? Claro que explorar psicologicamente esse filão dá ‘pano pra manga’, é rosca sem-fim. Chico não precisa de autopromoção, mas o que o levou a declarar que não mais cantará uma música fora de seu repertório há mais de cinco décadas? E as tantas outras que falam da submissão e da exploração da mulher? Segundo Andreia Oliveira, a música “pode ser entendida como um modelo de relação de gêneros a não ser seguido” (UFRJ: Dissertação de mestrado, 2018). Nas redes sociais, mulheres que se declaram feministas afirmam que não veem nela a defesa da submissão da mulher

Enigmas o gesto do Chico, o lado feminino do homem, o machismo, o racismo e outros ‘ismos’ que nunca serão totalmente decifrados.



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

EDUCAÇÃO ESCOLAR E O MITO DA CAVERNA DE SOBRAL

 


Sobral, a 230 km de Fortaleza, no Ceará, com 210 mil habitantes, tem sido alvo de várias publicações e estudos, como a tese de doutorado de Ana Calil (PUC-SP). Mas o que faz a cidade despertar tanto interesse? Segundo Patrick Cassimiro e Gustavo Heidrich, em 2001 a cidade tinha 50% de alunos analfabetos do 3º ao 5º anos. Em 2015 as notas haviam dado um salto: média entre 4,0 e 8,8 nos primeiros anos. Uma escola municipal, a Emílio Sendim, chegou a uma média de 9,8! (Publicado em “O que explica o fenômeno de Sobral” - Nova Escola, com base no IDEB).


Lá, 95% dos alunos
mostraram “competência na leitura e interpretação de textos”, 38% acima dos 57% nacionais. A preparação de professores focou quatro pontos: Formação, Avaliação, Meritocracia e Seleção. No primeiro, Formação, 16 horas/mês de capacitação dos mais de dois mil docentes da cidade. Em Avaliação, provas semestrais de português, matemática, redação e ciências, aplicadas por especialistas externos, davam rumo às metas e incluíam prêmios e gratificações para os docentes. Na Meritocracia, um programa de metas que premiou com até R$ 2.800,00 os professores e outro tanto diretores e coordenadores; por fim, o item Seleção vedou a indicação política de diretores: a escolha dura três meses, entre provas, entrevistas, cursos e prova de títulos. Os aprovados têm autonomia para escolher sua equipe.

(AgoraSP Editorial)

Publicado em 10 de maio de 2019
com amparo da SBPC pela Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, “Sobral, um caso de sucesso educacional no semiárido nordestino” sustenta que, apesar de localizados em uma das regiões mais pobres do pais, os alunos locais têm excelentes índices nas “provas padronizadas de língua portuguesa e matemática (Prova Brasil)” e baixíssimos números de repetência - a performance dos alunos da cidade seria uma “enorme exceção” no contexto da educação no Brasil. Com trajetória apenas comparável à de Sobral, treze municípios estão no Ceará, dez em Minas Gerais e sete em São Paulo! Internacionalmente, a cidade é considerada um exemplo de que a escola “pode fazer a diferença” (Tomlinson, 2013).


O Comciência ressalta que Sobral ocupa a primeira posição em nível brasileiro, reserva espaço especial para a língua portuguesa e se destaca mesmo se comparada a municípios de renda muito mais alta. A prática da redação e da leitura são elementos primordiais não apenas para a formação do indivíduo - é por meio do raciocínio e da compreensão de textos que lógica e percepção encontram campo fértil para seu pleno desenvolvimento. Meu pai, em uma de suas tiradas, disse: “se todo mundo lesse Machado de Assis, menos pessoas morreriam nas mesas de cirurgia e menos viadutos cairiam” (em 1971, auge da ditadura Médici, acontecera o desabamento do Viaduto Paulo de Frontin, no Rio, citado na letra de Aldir Blanc para o sucesso de Elis Regina: “Caía / a tarde feito um viaduto” – poesia repleta de simbologias e referências, inclusive a Clarice Herzog, viúva do jornalista preso e assassinado).

Sobral: linha pontilhada

Analisado nacional e internacionalmente
, o sucesso de Sobral é creditado às
políticas educacionais e às lideranças políticas (Becskeházy, 2018; Pontes, 2016; Sumiya, 2015; Maia, 2006; Inep, 2005). Diversas teses e publicações científicas apontam para o plano de alfabetização de 2001, que chegou ao ápice com o novo currículo escolar do município, em 2015. Do ponto de vista político, em 1997 o governo decidiu “vencer práticas arraigadas pela cultura de gestão pública baseada no patrimonialismo, clientelismo e coronelismo”. Os alunos são alfabetizados no 1º ano do ensino fundamental e, a partir daí, passam a ler para aprender. “O primeiro segredo de Sobral foi acertar no processo de alfabetização e monitorar seu resultado continuamente” (Oliveira, 2015).


O Comciência destaca a evolução da leitura
entre os estudantes de Sobral: de 60,7% dos alunos incapazes de ler simples palavras em 2001 para 90% deles lendo textos, em 2014. As novas estratégias foram dirigidas e focadas em um objetivo bem definido e acompanhado, favorecido pela continuidade do processo, sem sobressaltos nas mudanças de gestão municipal que pudessem interromper o avanço educacional.

São Raimundo Nonato (PI)

Nos anos 1990
um banco francês resolveu fazer uma experiência. Em São Raimundo Nonato, no Piauí, a 576 km da capital, Teresina, seria criado um projeto-modelo experimental de educação. Em pleno agreste, calor medonho, seria criada uma espécie de imensa bolha física, com ar condicionado, onde alunos teriam uma educação de excelência em todas as disciplinas, incluindo literatura, música e artes plásticas, com professores de ponta. Fui sondado para coordenar o setor de ensino musical, posição que significaria muitas complicações na minha vida e de meus filhos; não valeria a pena, a despeito do salário irrecusável.


Não sei no que deu
, mas parece que o projeto do banco morreu na praia – ou, melhor, a centenas de quilômetros dela. O plano foi pensado para a cidade porque, apesar dos seus parcos 35 mil habitantes (IBGE), lá estão unidades do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, a Universidade Estadual do Piauí e a Universidade Federal do Vale do São Francisco. Portanto, uma grande concentração de cérebros voltados ao ensino.

São investidas diferentes em um mesmo problema: a educação escolar no Brasil. Se não dá mais para saber em que consistia o projeto experimental francês para São Raimundo, há muito o que aproveitar da vitória de Sobral, um Mito da Caverna de Platão no agreste.