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sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

RELÓGIOS, OBRAS DE ARTE, BARBÁRIE

 


O
que leva alguém a pagar milhões por uma obra de arte? Esta é uma pergunta bastante comum, mas explicável se há algum nome ou sinal que a associe a alguém, alguma época, ou se tem um contexto histórico. Às vezes um nome basta: meu pai dizia que se o Rockefeller quisesse sacar 200 milhões de dólares no Chase Manhattan os encarregados entregariam o numerário em carros-fortes com suas equipes de segurança – e um belo champanhe para espoucar na entrega. Já se ele, meu pai, tivesse pedido para sacar dois milhões no caixa teria sido preso. A questão maior reside em quem assinou o cheque. E claro, não pensamos em qualquer um se falamos de Michelangelo, Rafael ou Da Vinci: essas obras são eternas, as melhores não têm preço.


H
á dez anos, em um leilão promovido pela Philips em NY, a artista plástica brasileira Lygia Clark (1920-1988) teve uma obra, “Contra Relevo (objeto nº7)”, de 1959 (55,5cm x 55,5cm x 5cm), vendida pela bagatela de R$ 8,12 mi em valores de hoje. Um simples quadrado dividido em 4, sendo uma das partes branca e em relevo três pretas. Lygia Clark era a bola da vez. As obras podem ver seu preço variar com a idade – quanto mais antigas, grosso modo, mais valem. Mas creia, esta é uma regra imutável: ela poderá mudar sempre.

Os cinco violinos que alcançaram maiores valores foram o Stradivarius ‘Messias’ (R$ 104 mi, hoje), o Strad ‘Lady Blunt’ (R$ 88 mi), o Del Gesù ‘Vieuxtemps’ (R$ 82 mi), o Strad ‘Da Vinci’ (R$ 80 mi) e o Del Gesù ‘Kochanski’ (R$ 52 mi). Todos esses instrumentos têm os ingredientes certos para lançar os preços ao espaço em leilões: autor, perfeição da manufatura, ‘árvore genealógica’ dos proprietários anteriores bem estrelada, beleza e som próximos à perfeição. São obras de arte de grandes gênios. Do mesmo jeito, para se ter a dimensão do valor de uma pintura, peça arquitetônica, mural, um conjunto histórico ou arquitetônico, é preciso certa cultura. O idiota nunca irá lhes dar valor, não tem referências, não lhe serve para nada.


N
o Brasil, quando penso em artistas plásticos imagino Portinari, Iberê, Di Cavalcanti, Tarsila, Brecheret, tantos excelentes artífices que carregam em suas obras o peso do nome! (Eventualmente, o peso em ouro...) Para simplificar o raciocínio: o piano Steinway branco que pertenceu a John Lennon vale uma fortuna, mas se fosse de um Zé-Mané valeria apenas o instrumento em si, se estivesse em ótimo estado, para chegar a uma paga razoável.

(R7)

R
elógio de mesa que é belíssima obra de arte é um precioso trabalho de Balthasar Martinot, mestre relojoeiro de Luís XIV, rico em detalhes desenhados por André-Charles Boule. Uma linda peça, doada de presente a D. João VI e trazida ao Brasil em 1808, ano da Abertura dos Portos. Além desses atrativos e elementos de apreciação do valor, existe apenas mais um relógio igual no mundo, o que o levaria à estratosfera num eventual leilão. Duas peças únicas! A segunda se encontra nos aposentos de Maria Antonieta no Palácio de Versailles, e é bem menor em sua dimensões, fazendo do “nosso” o primus inter pares - “primeiro entre iguais”. Uma joia de grandes medidas.


N
o malfadado dia 8 de janeiro, em surto de macaquice de imitação, um bando copiou os norte-americanos de extrema direita forjados por Donald Trump e Steve Bannon: a massa treloucada avançou sobre os prédios dos 3 poderes (Palácio da Alvorada, Congresso Nacional e STF) e causou os danos que pôde – houve quem chegasse a dizer “que lhe permitiram”. Foi-se o precioso relógio ao chão e o mentecapto ainda tentou quebrar com um extintor as câmeras de segurança que filmaram o ato de vandalismo. Claro que os prejuízos ao nosso povo e ao Estado brasileiro foram incalculáveis. O painel “As Mulatas”, de Di Cavalcanti, uma obra-prima do modernismo brasileiro, mural inspirado no estilo mexicano, mostrava em sua enorme pintura as nossas belas mestiças. Al lado de Di, nomes célebres ao par de Brecheret, com sua Bailarina, e Marianne Peretti, com Araguaia, de 13,10 m x 2,45 m, um vitral incrível de 1977. (Para servir de parâmetro, “Bumba meu boi”, também de Di Cavalcanti, é um painel de 5m x 1,90m avaliado recentemente em 20 milhões). Por aí se vê o nível do que foi violentado, além da nossa democracia.


V
amos tirar uma lição dos lamentáveis acontecimentos do dia 8 de janeiro em Brasília! Vamos ensinar que não há civilização sem ordem e, antes de mais nada, futuro para um país sem que tenha educação, cultura e arte. O embotamento cultural e a estupidez caminham de braços dados na contramão do progresso, encardem o país com sua água imunda, lançam dejetos orgânicos e intelectuais sobre obras de arte e nossa memória, levam à destruição de uma relíquia, um relógio dos tempos de Luís XIV e D. João VI.


F
omos soterrados pela lama da estupidez pelos que, armados de ódio e violência, tentaram destruir riquezas e depredar alguns de nossos símbolos maiores, da democracia à patrimônio histórico de Brasília, já com 60 anos, arruinando, quebrando, rasgando, uma fúria bestial a ser registrada e exposta aos nossos filhos e netos, para que não seja esquecida. Mas, a despeito da leniência de alguns setores oficiais, do pouco caso e da desfaçatez de certos servidores da segurança, ainda somos um povo que ostenta dignidade antes de tudo. Os “santos guerreiros” da civilização e da democracia venceram o “dragão da maldade” e a horda de bárbaros. Mas é bom repetir: aquelas absurdas violações não poderão ser esquecidas, assim como o monstro: mesmo dominado, ele ainda respira.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

MORREU DE QUÊ?

 


A
curiosidade humana não tem limites. Não gosto de responder a perguntas invasivas da minha vida ou de terceiros, opto pela evasiva: não sei, digo, mesmo sem saber sabendo. Uma vez, atacado por algum insight poético, ao ser perguntado sobre o falecimento de um avizinhado comum, lembrei João Cabral, em Morte e Vida Severina: “e foi morrida essa morte, irmão das almas, essa foi morte morrida ou foi matada?” Aproveitei a ideia súbita e respondi: essa morte foi morrida (apesar de que em Cabral a resposta foi “até que não foi morte morrida, irmão das almas, esta foi morte matada numa emboscada”). Devolvi uma reposta com a licença poética do mestre pernambucano, não era da conta do meu interlocutor, ele que ficasse sabendo por terceiros. E se eu dissesse que morreu de síndrome edemigênica, causa mortis de uma personalidade famosa que nos deixou recentemente, ou, talvez, paniculite com sepse, já diria outro. Bastaria ao curioso? Não, o franco-atirador fuxiqueiro quer uma resposta banal, que lhe baste aos ouvidos sem esforçar-lhe o cérebro. (Ressalvas para os que extravasam sua angústias em oração nas redes ou, se for de sua escolha: “tiro, porrada ou bomba”, como disse o ícone das comunidades Valesca Popozuda, artista menos conhecida por seus dotes vocais do que por outros predicados).



E
ntrevero semelhante surge com “quanto custou?”, “vendeu por quanto?”, “pagou quanto?”, “quanto você ganha?” Que diabos interessa a um curioso a vida financeira de alguém? (Aprendi com minha mãe que este não é assunto para voz alta, se não por fofoca ao menos por segurança). Já dei sermão, expliquei que não se pergunta isso, fora se tiver muita intimidade, ou, como no caso da morte matada, aguarde-se elucubrando que alguma hora vai se tornar público. A imaginação nesses tempos de hoje nos remete à dos tempos de antanho: foi Covid, no primeiro caso, ou foi Aids, como no passado. No caso de doença infectocontagiosa, ainda há algum sentido: a prevenção, o controle endêmico, o alerta, se o “de cujus” era amigo ou parente, mas não convém sair por aí cuspindo suposições sem que haja absoluta convicção: Pode criar preconceito ou terror que não deveria existir, caso a informação seja falsa. Nos idos da eclosão da Aids, ninguém podia mudar de comportamento e principalmente emagrecer - quem não se lembra do sucesso da Rita Lee “Não, titia, eu não tô com leucemia”, a respeito de boatos? (“Que ideia mórbida, há há há há / que ideia sórdida, há há há há”).


Operou de quê?” Ora, se a pessoa não diz é provável que não quer que se espalhe. Já se sabe que operar tem múltiplo significado: João opera uma máquina, Hans opera um cálculo, Márcia opera no mercado de capitais – e, na literatura, há o cortejado romance “Ópera dos Mortos”, de meu pai, Autran Dourado. (Mas, acima de tudo, só Deus opera milagres!). Como substantivo, há o italiano “opera”, obra, trabalho: como deixar de mencionar as belas encenações lírico-dramáticas do repertório operístico: La Traviatta, Don Giovanni, Nabucco, Il Guarany? Já cirurgicamente, opera-se uma verruga, o panarício de uma unha encravada, apendicite, pontes de safena ou mesmo um transplante de fígado ou coração. Então, operou o que ou de quem? Em A Ópera, 9° capítulo de Dom Casmurro, Machado de Assis deixa no ar: “Deus é o poeta. A música é de Satanás”.


O
tipo curioso é uma daquelas crianças que mexe e fuça, cresce assim, quer saber de tudo e, salvo honrosas exceções, hoje quer buscar seu instinto e paixão embotados às custas da vida alheia. “E os teus desejos ferventes vão / batendo as asas na irrealidade / O que tu chamas paixão / é tão-somente curiosidade” – Manuel Bandeira, em “Poemeto Irônico” (1917) de “A Cinza das Horas”. Eu confesso que fui uma criança curiosa! Meu pai, bom mineiro interiorano da sabença de passarinhos, chamava-me “menino-curió” - em tupi-guarani curió é ‘amigo do homem’, que vive ciscando nas aldeias. Mas aquela curiosidade infantil, com os tempos, fui trocando pelo desejo indomável de saber, daí minha carreira de educador e pesquisador. ‘Mas veja, ilustre passageiro’, as grandes descobertas nasceram da curiosidade, com a mãozinha de algum acidente que derruba uma maçã na cabeça ou transborda a água do banho do cientista. Não me proponho a descobrir ou inventar nada grande como Newton ou Arquimedes, apenas sinto-me feliz quando compreendo alguma coisa nova, conquisto um degrauzinho de formiga que seja.


M
as afinal, fulano morreu de quê? E sicrano foi operado de quê? Se em sigilo, permanecerá guardado – “segredo entre três só matando dois”, diz o vulgo -, se importante para a comunidade, basta o suficiente, e se for para ajudar a desvendar um crime, uma ladroagem, abre-se o saco de verdades. Há de haver sempre um bom propósito. Delação não, delação é interesseira, embora ferramenta útil em nosso direito, nossa velha política, passando pela alcaguetagem. Com o advento descontrolado das redes sociais, o direito à vida privada anda cada vez mais rarefato! Mas veja, que curioso (opa!): no mundo político e das ‘celebridades’ o que é privado pode tornar-se interessante para o (bem) ou malfalado se lembra aquela frase atribuída ao Carlos Imperial, inspirada no escritor Oscar Wilde e este no irlandês Henry King: “falem mal, mas falem de mim”.  

Pensei em chamar este texto “A taxonomia dos curiosos”, mas pode servir de pós-título. (Taxonomia, segundo o Houaiss, “é a ciência que lida com a descrição, identificação dos organismos, individualmente ou em grupo”).

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

COMO UMA ONDA

 

Adrenalina: fórmula química

N
ão faz muito tempo escrevi neste espaço um artigo - “Pensando a Copa” - sobre música, esporte, adrenalina e as interações deste hormônio com a performance (desempenho presencial), característica de ambas atividades. Discorri tanto do ponto de vista benéfico dessa droga natural produzida pelo corpo quanto a hora em que ela chega a derrubar o artista ou atleta, um nocaute mental. Falei dos efeitos de um quase popular “antídoto” para controle da adrenalina, entre músicos, os betabloqueadores – de prejuízos sensíveis à performance musical. Aliás, digamos que “mecaniza” a interpretação, submetendo uma pretensa segurança do músico em desfavor da criação artística. Cabe ao músico sucumbir diante do caminho mais fácil e confortável ou trabalhar por uma interpretação que realmente cative o espectador (toda arte performática sempre tem como objetivo ser ao vivo, é bom lembrar).  Mas hoje abro espaço para ainda outra tendência: os esportistas que buscam algum tipo de catarse (libertação) via adrenalina em fortíssimas doses.

Bungee jumping

S
ão os chamados esportistas radicais, ou de aventura, cujo prazer é exatamente a busca pelo máximo, o que se traduz em rápida pulsação cardíaca aliada a uma intensa pressão sanguínea. Filosoficamente, pode-se dizer que é brincar com o risco, que remete ao limiar da morte – ou seja, o indivíduo busca emoção sentindo, às vezes muito perto, a mórbida sombra da velha e temida “senhora”. Quase todos esses esportes - a maioria inventada nos EUA, daí os nomes em inglês – são cultivados lá e cá, tal como o arborismo, a asa delta, o balonismo, o bungee jumping, o kitesurf, o longboard, o mountain board, o parapente e o trekking, entre outros. É claro que, sob um raciocínio bem simplório e reducionista, uma volta de bicicleta, um passeio na calçada, um descer de escadas ou alimentar-se na rua oferecem algum perigo, enfim, em tudo há certa mínima dose de risco, involuntária, que seja. Quero falar dessa busca determinada e voluntária pelo perigo, e, mais uma vez, de certo obscuro jogo de cartas com a morte.  Claro que todos esses esportes radicais têm de ser monitorados, executados sob supervisão e praticados em ambiente preparado para resgate e socorro: enfim, tudo para oferecer maior segurança – dentro do perigo de que é consciente do esportista.  E o surfe é um desses esportes, especialmente se for levado às modalidades mais radicais, como as ondas de grande altura.

Nazaré, Portugal

A
praia de Nazaré, oeste de Portugal, além de aprazível local turístico, é famosa por suas altas ondas, sempre desafiadoras. Surfistas de todo o mundo procuram-na pela fama – hoje, enquanto escrevo, ondas chegaram a até 4m de altura, trazidas por dóceis vagas (no Rio de Janeiro já seriam chamadas de “calhaus”, ondas muito grandes). Abrem-se enormes túneis, fascinantes e desafiadores para os surfistas, que aguardam ansiosamente por aquela onda gigante especial, de 15 metros ou mais de altura, o equivalente a um prédio de 4 andares. (O recorde em Nazaré foi estabelecido 2022, quando um alemão, Sebastian Steudtner, surfou a 26,21m de altura, quase uma construção de perto de oito andares).



Lorelei

N
a tarde do dia 5 de janeiro deste ano de 2023, Márcio Freire, brasileiro de 47 anos aficionado por ondas gigantes, foi seduzido por uma dessas vagas enormes e, como sempre, atirou-se com a prancha para uma viagem pelo túnel do tempo que mais uma vez parecia abrir-se de forma alucinada à sua frente. A partir daí, pouco se pode imaginar além do que ele próprio diria, se pudesse. Guiava-o uma descarga volumosa de adrenalina, companheira inseparável nessas viagens, mestre na sedução dos surfistas radicais como a sereia Lorelei dos navegantes do rio Reno, cantando e lançando-os contra os rochedos após se submeterem aos seus chamados voluptuosos.

Da Vinci: o homem vitruviano

I
magine agora Márcio, aventureiro, na boca de um desses túneis de água salgada, ante mais um verdadeiro convite ao desconhecido.  Ele vê apenas um clarão à sua frente, mas o túnel é mais veloz e afasta a luz mais e mais a cada segundo, até que ele se vê no escuro, no breu. Sabendo que há uma arrebentação na areia para onde confluem poderosas ondas - outro perigo de Nazaré, junto a um esfomeado refluxo de corrente a puxar-lhe para trás e para baixo. Daquele turbilhão imenso surge um caleidoscópio tridimensional girando em todas as direções, um globo imaginário sob o desenho vitruviano de Da Vinci, agora com pés e mãos torcidos e trançados, até o apagar geral da ribalta, um globo girando perdido e sem piedade para os lados, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Corte para outra cena: de fora, vê-se a Marinha portuguesa retirando um corpo multifraturado  e já sem vida por conta de uma parada cardiorrespiratória. A busca pelo limite despertada pela adrenalina levou Márcio, bom baiano, para junto de Iemanjá, rainha do mar.

É doce morrer no mar”, cantaria o também baiano Caymmi, “nas ondas verdes do mar”. Mas não houve poesia nas imensas ondas verdes onde ele foi se afogar, “fez sua cama de noivo / no colo de Iemanjá”. Segundo os colegas do Mad Dog Márcio - de “Cachorros loucos”, como o trio de amigos surfistas era conhecido na Bahia - o companheiro de ondas em Salvador e no Havaí está no lugar onde gostaria. Talvez mais na poesia do Nelson Motta (feita para música de Lulu Santos) do que na do Caymmi, ele poderia cantar: “Não adianta fugir / nem mentir / pra si mesmo agora / há tanta vida lá fora / aqui dentro sempre / como uma onda no mar”.

In memoriam.

Márcio Freitas (RMS)