Antonin Artaud, teatrólogo, ator e gênio louco |
Por estar
imerso dias inteiros no pensamento musical, no trabalho artesanal diário
intensivo, no almoçar, jantar e dormir música, o artista se deixa envolver
tanto que às vezes perde o tino da realidade, de seu lugar no mundo e até do
tempo. Claro é que, quase intoxicada pela música, como aliás acontece em muitas
outras artes, a introspecção vira neurose com extrema facilidade, já que é tênue
a linha divisória entre uma e outra.
Quixote por Jules David (1828) |
Lembro-me
de uma gravura do escritório de meu pai que retratava Cervantes, sobre quem sobrevoavam
as fantasias do escritor castelhano, seu Quixote, Sancho e outros de seus
personagens, a atormentá-lo entre livros e papeis. Embaixo, a frase reveladora:
“embebeu-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. E lá estava
Cervantes, largado sobre uma poltrona, embriagado por volumes, tomos, fantasias
e fantasmas.
Clarice Lispector, em autorretrato |
Para encurtar o título deste artigo, usei hobby, mas
poderia incluir ‘outra ocupação’ ou ‘outra profissão’, 'artistas', 'pintores'. Assim, prossigo agora um pouco mais amplamente. Clarice Lispector, das
letras como Cervantes, pintava para fazer transbordar um pouco a inteligência e
cultura enormes que sobrecarregavam sua mente. Outro escritor, também amigo de
meu pai como Clarice, Lúcio Cardoso, autor da “Crônica da casa assassinada” (1958), subjetivista
como Clarice, foi vítima de um AVC e como ela gostava de pintar.
Lucio Cardoso |
Obra de Lucio Cardoso |
Lembro-me de ter ido com meu pai um dia visitá-lo, e, ainda
garoto, fiquei estarrecido ao vê-lo criar uma tela com um pincel entre os
dedos dos pés, molhando-o nas tintas da palheta e criando, pela dificuldade de
controle do pincel, cenas com jeito de Van Gogh. Ele apenas precisou trocar o
meio de expressar em arte sua visão do mundo. O irlandês George Bernard Shaw
(1856-1950), mestre do teatro, também dividia seu tempo como ensaísta e crítico
musical, área em que era um analista de mão cheia.
Schumann (bachcantatas.com) |
Grandes compositores como Robert Schumann (1810-1856), Hector
Berlioz (1803-1869) e Richard Wagner (1813-1883), dividiam o dom da arte da
escrita. Schumann, autor de quatro importantes sinfonias e um vasto repertório de
canções (os Lieder) e para piano, também escrevia. Diagnosticado psicótico,
assumia seu comportamento bipolar e claramente esquizoide: ora escrevia como
Florestan, seu lado apaixonado e volúvel, ora como Eusebius, o sonhador austero,
voltado para si mesmo.
Richard Wagner |
Berlioz,
aos 12, aprendeu latim, a ponto de fazer uma tradução precoce de Virgílio, com
revisão de seu pai. E Wagner, autor da monumental ópera Tristão e Isolda, apaixonado
pela literatura de Goethe e admirado por Nietzsche, escrevia textos com a
mesma intricada técnica de suas composições, deixando uma obra polêmica, "O Judaísmo na Música", entre numerosos artigos e livros.
Messiaen: compositor e ornitólogo |
Olivier
Messiaen (1908-1992), importante compositor francês do século 20, é autor,
entre outros, do fabuloso Quarteto para o Fim do Tempo. Foi capturado pelas tropas
nazistas em 1940 e levado ao campo de concentração Stalag VIII, na Polônia. Com
a complacência de um oficial amante da música, compôs uma peça para os três
instrumentistas aprisionados, acrescentando depois um piano. Mas havia um outro
lado, o bucólico, o lírico do compositor: o do ornitólogo estudiosíssimo, e
seus pássaros devem ter-lhe feito muita falta nas agruras de Stalag.
Marcos Szpilmann à frente da Rio Jazz |
Marcos Szpilman
(falecido em 2011), médico, também tinha paixão pela música, despertada desde
criança no violino, e fundou a lendária Rio Jazz Orchestra, que liderava com
seu saxofone. E há os que nunca ou quase nunca exerceram suas profissões de
advogado: o querido amigo compositor Osvaldo Lacerda, o tenor Jarbas Braga, o celebrado
professor Dante Cavalheiro e até Noel Rosa, formado médico. Graduaram-se por
imposição paterna, costume da época, ou simplesmente caíram de amores pela
música largando a carreira.
"Ops, onde estão as chaves?" |
O saxofone
também é um instrumento muito querido por outros profissionais, a exemplo do
Szpilman. Tive um cardiologista em São Paulo que deixava seu instrumento no
consultório. Esperava fechar a clínica na Vila Clementino, em São Paulo, para
tocar – a esposa dele não era muito chegada ao som que ele extraía. Certo dia,
uma emissora de TV quis fazer uma matéria sobre músicos amadores, e eu pensei
nele. Gravou com algumas guinchadas e harmônicos fora de hora, mas no caso isso
não era relevante para a matéria, e sim o papel da música na vida de um médico.
Albert Einstein |
Grande exemplo
foi o físico Albert Einstein (1879-1955), um dos maiores de todos os tempos. “O
que posso dizer sobre a obra de Bach? Nada. Ouvir, tocar, amá-la. E ficar
calado”, disse ele. Aficionado do compositor alemão, tinha predileção pela sua
obra para violino. E tocava Bach e Mozart com uma técnica básica para um amador,
mas conseguia exprimir seus sentimentos com paixão. Nos momentos de exaustão de
seus cálculos, teorias e investigações científicas, buscava na música um apoio
especial – quem sabe daí não surgiram nesses momentos suas elucubrações sobre a
relatividade e as equações de campo? (Veja e ouça abaixo gravação supostamente
única de Einstein tocando a sonata em Si bemol KV 378 de Mozart)
Iberê Camargo (1914-1994) (regiaoceleiro.com.br) |
Tudo o que temos de bom veio dos neuróticos. Foram eles, e não os outros, que fundaram as religiões e compuseram as obras-primas. Jamais o mundo saberá o quanto lhes deve e, principalmente, o quanto sofreram para lhe dar tudo o que deram. (Marcel Proust)