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sexta-feira, 25 de março de 2016

A PAIXÃO DE MATHEUS, SEGUNDO BACH

Não faz muito tempo, publiquei neste espaço um artigo chamado Bach e sua Catedral de Sons, no qual citei a grandiosa Paixão de Mateus, entre diversas outras obras do compositor alemão. Com os pensamentos de todos os homens e as orações de todos os cristãos voltados a esta última sexta-feira, a sexta da Paixão, nada mais oportuno do que relembrar esta obra bachiana mais detalhadamente, para assim dividirmos com o compositor sua visão de alguns dos momentos de maior sofrimento já registrados, que os religiosos transformam em luto, culto e oração anual, e os demais em reflexão.


A Flagelação, por Caravaggio
Em toda sua simbologia, a Paixão de Mateus mostra o caminho de Cristo rumo ao flagelo, à crucifixão e, martirizado, descendo rumo ao calvário, “de onde há de ressurgir para julgar os vivos e os mortos”, conforme os textos sagrados. Imbuído profundamente desse espírito, de incomum reverência submissa ao sofrimento do Senhor, Bach revelou ao mundo seu Passio Domini Nostri J. C. Secundum Evangelistam Matthaeum – do latim, Paixão de Nosso Deus Jesus Cristo Segundo o Evangelista Mateus, obra grandiosa que estreou na Igreja de Santo Tomás, em Leipzig, em 1727.

Órgão Litúrgico
Bach requer, nessa longa partitura composta em forma de oratório, coros duplo e triplo e orquestra dupla, com libreto (texto) de Christian Henrici. Esta Paixão (existe ainda uma outra, a de João) se baseia nos capítulos 26 e 27 do evangelho segundo Mateus, em tradução alemã de Martinho Lutero, textos narrados em forma de recitativo pelo Evangelista com acompanhamento de contínuo (instrumento de cordas de voz grave), por violoncelo ou violone (antecessor do contrabaixo) entremeados de impressionantes corais e árias.
Violone
Em 1736, para outra apresentação, Bach acrescentou dois órgãos à orquestra e, obcecado, ainda realizou mais duas revisões, em 1742 e 1743/1746, ora devido à ausência de órgão em local onde a obra seria apresentada, o que fazia o compositor trocar o instrumento por um cravo, ora por capricho perfeccionista – ou ambos.


Mateus, evangelista
Os textos bíblicos são recitados musicalmente pelo Evangelista, enquanto árias e ariosos comentam e ilustram as passagens, desde a unção de Cristo até o Monte das Oliveiras, do falso julgamento a Pedro e Judas. No recitativo nº 45, o evangelista narra o episódio em que Pilatos pergunta ao povo a quem eles querem que seja solto: Jesus ou Barrabás, mesmo ante o clamor pelo inocente feito pela mulher de Pilatos. Já no nº 48, é a vez de a soprano lamentar: “Ele fez o bem para todos nós. Aos cegos ele fez enxergar e aos paralíticos andar. Ele nos ensinou a palavra do Pai, afastou os demônios, consolou os aflitos. Recebeu e aceitou de volta os pecadores”.


Partitura com autógrafo
A riqueza de detalhes na partitura, a escolha das tonalidades e modulações (mudanças de tonalidades), todos os artifícios do melhor ourives da partitura foram empregados, em consonância com a preciosidade do texto e a enorme devoção de Bach: “Tudo o que fiz dedico a Deus”. E, submisso, como se prostrado diante da infinitude do Criador, assumiu-se, como nós, mais um, um a mais: “quem trabalhar quanto eu trabalhei obterá os mesmos resultados”.

Oboé da caccia
Ambos os coros empregam dois traversos (flautas transversais de madeira), dois oboés, 2 violinos, viola, viola da gamba (um dos precursores do violoncelo moderno) e um baixo contínuo (instrumento de cordas de voz grave), além de, às vezes, um oboé d’amore (um oboé, como o nome já diz, com som mais doce) e um oboé da ‘caccia’ (de caça, voz tenor). Essa orquestração, nos últimos tempos, tem sido muito ampliada pelos regentes nas apresentações, visando a maior impacto e um efeito magnífico.
O imponente coro de abertura é talvez uma das mais espetaculosas introduções musicais de todos os tempos, é uma verdadeira elevação dos espíritos ao Altíssimo (Veja e ouça abaixo: Venham vocês, filhas, ajudem-me a lamentar” com os English Baroque Soloists e o Monteverdi Choir, regência de J. Eliot Gardiner) 



Crucifixão: Gerard David
Os manuscritos requerem oito solistas, em que soprano e dois baixos cantam as partes de Pedro, Judas, a mulher de Pilatos e outros. Às palavras finais de Cristo, escritas em aramaico, Eli, eli, lama sabachthani (Deus, Deus, por que me abandonaste?), Bach reserva uma orquestração especial, que faz ressaltar na voz do solista a súplica, e ergue ainda mais a fé dos que aguardavam aqueles momentos finais do Salvador. São 78 (ou 68) movimentos (partes); porém, mesmo longa, a obra consegue envolver a plateia e os músicos de forma impressionante.


Lorna Cooke deVaron
Devo ter tocado esta Paixão algumas vezes, mas inesquecível foi a versão de uma grande especialista, Lorna Cooke deVaron, considerada uma das maiores regentes corais do século 20, responsável pela primeira audição de obras de compositores do porte de Bernstein, Britten, Copland, Schuller, Barber e outras tantas lendas. A apresentação, incluindo intervalo para um bufê, durou quatro horas, quatro longas, profundas e inesquecíveis horas. Ao terminá-la, a sensação era de estarmos irmanados em espírito aos colegas das orquestras, coros e público, em um quase silêncio, à beira da exaustão. Uma imersão na grandiosidade de uma obra-prima, com a orquestra da NEC tendo Mrs. deVaron à frente é um mergulho na própria mente e na espiritualidade humana, independentemente do credo religioso e mesmo de fé. 

Interessante  é a sensação, logo na abertura, de que aquele grande número de artistas no palco está a bordo de um enorme barco, perto de zarpar rumo a uma grande viagem, uma grande imersão, da angústia final à morte de Cristo: o maior drama dos cristãos, gerador de uma das mais arrebatadoras obras de arte jamais esculpidas pelas mãos de um homem. Talvez a que mais nos faça respirar em patamares um pouco mais próximos de Deus.

Nos minutos finais, Wir setzen uns mit Tränen nieder (Nós nos Sentamos entre Lágrimas), o coro I dialoga com o coro II, que repete, insistentemente: Ruhe sanfte, sanfte ruh  ("Reste em Paz, em Paz Reste!"), ao que a seguir o coro I revela: "Vossa sepultura e vossa lápide deverão ser, para a consciência do sofrimento, um conforto e um local de repouso para a alma. Em grande júbilo, ali os olhos do Senhor adormecem". (Veja e ouça acima).

O Salvador havia morrido.







sexta-feira, 18 de março de 2016

MUDAR, MUTATIS MUTANDIS
A poesia que transforma

“O que não muda, não se move. E o que não se move está morto”. Foi assim, depois do silêncio da grande fermata, pausa que só os grandes dominam, que o histórico maestro Eleazar de Carvalho respondeu a uma pergunta de um músico que havia ingenuamente reclamado “mas o senhor não fazia assim”. Ora, se não fazia, agora o faz, pensei com os botões imaginários de minha camiseta. Ele via na sua transformação, na mudança de sua concepção um sinal de vida, de juventude, do pedestal alto de seus 75 anos, erguido com seu invejável currículo.
Machado de Assis
Transformação é evolução, sinal de vida, e não de morte matada ou morrida. Evoluem a lagarta para borboleta, o girino para sapo, todos os seres vivos transformam-se ou se transmutam, cada qual a seu ritmo, forma e tempo, obedecendo à batuta implacável da natureza, regente às ordens do compositor maior, o Criador (lembro aqui o capítulo “A ópera”, de “Dom Casmurro”, do Machado de Assis).
Criar uma nova casa, que seja outra, ou que seja ali mesmo, onde já se mora, colorir na mente com a aquarela dos olhos o projeto de redesenhar a decoração, trocar ou mudar de posição alguns móveis que seja, namorar o belo imaginário, tudo é sinal de vida acesa, chama da vela que baila sedutora, sinuosamente suave para ser vista, vivida, vida que pulsa em todos os momentos de sua existência: “É o projeto da casa, é o corpo na cama / é o carro enguiçado, é a lama, é a lama / (...) São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração”
(oloboeocordeiro.blogspot.com)
Renascer é reviver o belo, é a redescoberta, o reabrir de janelas, mesmo sabendo dos riscos, sabendo arriscar e desfrutar de suas chances, quaisquer sejam elas: “até que plenitude e a morte coincidissem um dia / o que aconteceria de qualquer jeito / Mas eu prefiro abrir as janelas / pra que entrem todos os insetos” (2). Ou, em outros versos, “quero inventar o meu próprio pecado / quero morrer do meu próprio veneno / (...) quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém me esqueça” (3).
João Cabral de Melo Neto
O novo espreita a esperança, que vem de esperar mas não é do verbo palavra: esperar é ficar parado, não se mover, mas “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (4). Sopra sobre os vivos o sopro novo no velho da vida, vislumbra a beleza onde já não se podia vê-la, pois que escondida: “belo porque tem do novo / a surpresa e a alegria / belo como a coisa nova na prateleira até então vazia / (...) e belo porque o novo todo o velho contagia / belo porque corrompe com sangue novo a anemia / infecciona a miséria com vida nova e sadia” (5).
Esperar que o casamento ou a sociedade comercial dure para sempre, quando de fato o que antes foi já era? Fica a convivência, mas onde a união, ungida até onde as partes se suportem? Ou a morte os aparte, diz sempre o celebrante. Seja qual tipo de união, ungida assim até onde se pensa, ela é ampla com seus perigos em forma de tragédia: “Ele fala em cianureto / e ela sonha com formicida / vão viver sob o mesmo teto / até que alguém decida”.
Descobrir o novo onde parece não mais existir, retocar o quadro esmaecido, que em branco e preto suado e desbotado já está, “deitar à sombra de uma palmeira / que já não há / colher a flor / que já não dá” (7), refazer o belo jardim que de tão abandonado ficou seco e, sem perceber, no dia a dia, “nos intervalos de pedra (se) plantava palha” (5).
Percy Shelley
“Ouça um bom conselho que eu lhe dou de graça / inútil dormir que a dor não passa / Espere sentado ou você se cansa / está provado, quem espera nunca alcança” (8). Não basta noite de sono, mesmo se dormir bem, eis que quando o dia nasce, renascem com ele a fé e angústia, siamesas e recidivas. Resta reviver a vida, mudando como uma nuvem: “Eu sou a filha da terra e da água, amamentando do céu / eu passo através dos poros do oceano e da praia / eu mudo, mas não posso morrer” (9).
Umberto Eco
Esta é uma breve reflexão sobre este momento brasileiro, em que esperança tem de prevalecer sobre desespero, falta de rumos e mesmo sobreviver ao pecado do conformismo, que é sinônimo de tudo aceitar e esperar, resignado, pelo pior. Ou que sobrevenha algum milagre dos peixes. Deixando esta brevíssima obra aberta em tributo ao recém-falecido Umberto Eco, lembro que mutatis mutandis é uma expressão latina surgida na Idade Média que significa “uma vez feitas as necessárias mudanças”, comumente usada em diversos idiomas e frequente no vocabulário da economia, do direito, da lógica e da filosofia, entre outras áreas do conhecimento.
Daí o título deste artigo. O Brasil não precisa de uma mudança, precisa mudar todo, a começar pela cultura do “cafezinho”, da “comissão”, do “por fora”, da “breja”, do “pixuleco”, do “acarajé” e todos os codinomes que a palavra mais utilizada nos dias de hoje, despudorada, rouba como gatuna oportunista, sem pedir licença: a corrupção. Muda, Brasil.
[1- Antonio Carlos Jobim, “Águas de março”. 2 - Caetano Veloso, “Janelas abertas”. 3 - Chico Buarque, “Cálice”. 4 - Geraldo Vandré, “Caminhando”. 5 - João Cabral de Melo Neto, “Morte e vida Severina”. 6 - Chico Buarque, “O casamento dos pequenos burgueses”. 7 - Vinicius de Morais, “Sabiá”. 8 - Chico Buarque, “Bom conselho”. 9 - Percy Shelley (1792-1822), “A nuvem”]

sexta-feira, 11 de março de 2016

OS JOVENS, A VERDADE E A ERA DA INCERTEZA

Alethea, em grego, significa ‘verdade’. Em diversas línguas, entre elas o inglês, é também um nome feminino cujo significado se revela bastante forte. Uma operação policial recente foi batizada Aletheia (com “i”), a exemplo de outras investigações, ora inspiradas na língua grega, ora em Platão ou na mitologia. Esse título serviu como codinome de uma ação mantida em segredo até ser deflagrada.

Há um nítido contraste entre dois lados, sendo um a taxa de desemprego que se aproxima de 20% entre jovens em idade de trabalhar ou procurar serviço (18 a 24 anos) ou até subemprego. Trato dos que necessitam trabalhar. Dividem agora com suas famílias, desde cedo, o sustento e ajuda dentro de casa, especialmente entre os chamados “3 milhões que ascenderam à classe média”, bordão com que maquiaram uma realidade sem ter sustentação mais profunda e com frágil prazo de validade, fora as panaceias sociais que já começam a cambalear. “O sonho acabou, quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou”, cantou Gilberto Gil em sua melhor fase.

O outro lado da moeda é a deterioração da sociedade por mais do que uma simples radicalização, há uma polarização que tende a assumir contornos de embate único entre dois lados, e só eles. O senso crítico foi para o espaço, porque polarizações são cegas, corrompem mentes e criam patrulhas. E o clímax desse fenômeno são o descrédito e o ceticismo que pairam sobre todas as instituições republicanas.  

Temos uma “contribuição sindical” (no Brasil, contribuição não quer dizer em primeiro lugar colaboração, como em inglês, e sim tributo) disposta entre artigos 578 a 610 da CLT de Getúlio Vargas, inspirada na Carta del Lavoro de Mussolini. Taxa-se com essa “contribuição” todos os trabalhadores empregados, quer sejam ou não sindicalizados em suas categorias, pois é livre a associação sindical no país (Art. 8º da Constituição Federal).

Boa parte do que é arrecadado vai para as centrais, federações e confederações, e sustenta alguns grupos poderosos que apoiam, claro, governantes que defendam a manutenção dessa verba por interesse político. Esse grupo será um dos principais atores a partir de agora.

Do outro lado, os que acham que têm o direito de se manifestar sobre seu futuro da forma que entenderem correta, longe de patrulhamentos. Difícil será evitar os embates e mesmo combates de consequências imprevisíveis em uma massa cada vez mais revoltada. O balão de ensaio será no domingo, 13 de março, dia de manifestações. 


"Receio o surgimento de um cadáver", disse o Ministro Marco Aurélio de Mello sobre a manifestação. Espero que não seja profético, pois lembrou-me o assassinato do estudante Edson Luís (aos 18 anos de idade), no Restaurante Calabouço, no Rio, em março de 1968, a que se seguiu a histórica passeata dos 100 mil, em junho, e a gota d'água, o discurso do deputado Marcio Moreira Alves, em setembro, após o qual o ministro Gama e Silva começou a trabalhar no famigerado AI-5, publicado em dezembro. Foi o estopim para o golpe dentro do golpe. Vi o cortejo levando o caixão do Edson chegar a Botafogo, uma multidão enorme, já entrando no Cemitério São João Batista. Um clima pesado, lúgubre e apavorante, enquanto a massa cantava em recitativo: "mataram um criança, podia ser teu filho". Espero que não se repita a máxima do pensador Marx, in "O Dezoito  Brumário de Louis Bonaparte",1852: "A história se repete, da segunda vez como farsa". Mesmo porque não há correlação de forças para intervenção militar, guardiã da Constituição, mas, seguramente, a depender do lado em que ocorrer uma indesejável baixa, radicalizações serão imprevisíveis. Deus queira que não. 

Lorelei e os náufragos
Essa crise sem precedentes recai com grande vigor sobre aqueles a quem foi oferecida a ilusão e o sonho de repartir o "biscoito fino" social: os mais pobres ou menos favorecidos. Os que cederam ao "canto da sereia" e se veem na iminência de se chocarem contra os penhascos, tal como a Lorelei fazia com os pescadores dos barcos nas reentrâncias dos rochedos do rio Reno. O som do vento, principalmente na parte alemã do rio (que atravessa seis países) cria uma espécie de canto sensual, cuja prima donna povoa a imaginação dos navegantes, que pensavam ouvir uma linda sereia, e em busca dessa visão inebriante iam de encontro aos rochedos, espatifando-se.

Agora, desculpe-me o Raul Seixas (na verdade, é um pensamento de Mao-Tsé-Tung, ideologias à parte): o sonho que se sonhou junto não se tornou realidade, “foi tudo ilusão passageira, que a brisa primeira levou” (Chico). Vivemos a “Era da Incerteza” citando um livro de John Kenneth Galbraith (1977), que recomendo.
[Abaixo, o episódio 6 do filme rodado a partir do livro de Galbraith, dublado em português, uma breve história do dinheiro e do capital até meados do século 20]


Rua Maria Quitéria, Ipanema
Eu tinha 18 anos de idade e um fusca que dividia com minha irmã – ela de dia, para ir à faculdade, e eu à noite ou fins de semana. Saindo com amigos, exatos oito meses depois de obtida minha carteira de habilitação, envolvi-me em um acidente em um cruzamento em Ipanema. Um carro acertou em cheio meu fusca, e eu praticamente derrubei um pequeno muro em um predinho de esquina enquanto o outro veículo foi parar encostado em um poste, de lado. A cena, inicialmente, parecia trágica. No entanto, ficamos aliviados porque apesar de ferimentos leves (“por intercessão divina”, diriam muitos), não houve vítima fatal.

O antigo Palácio da Justiça, no Rio
Isso, claro, levou a um processo na Justiça, após passagens para depor na polícia civil, consequência natural que apuraria eventual dolo para uma das partes. Ao receber a intimação, fiquei apreensivo com o aviso de que deveria comparecer, e se não o fizesse haveria “condução coercitiva”. Meu pai havia sido Secretário de Imprensa da Presidência da República e à época do acidente – e até se aposentar – era oficial de distribuição da Justiça do Rio de Janeiro.

Ele dava o exemplo, então nada o faria tentar um ‘pulo do gato’ - mesmo porque esse costume era privilégio da repressão na ditadura Médici, que imperava à época -, até hoje prática arraigada ao interminável leque de vícios brasileiros, como a “carteirada”. Eu era – e sou – um cidadão comum, e fui à audiência prestar depoimento espontaneamente, evitando a “condução”. Ambas as partes terminaram absolvidas, e o velho juiz arrematou a sentença com uma frase poética: “não se deve jogar pedras no caminho da juventude, e sim flores”. É nosso dever abrir estradas para o futuro dos jovens, cuidar de mostra-los opções, e trazer-lhes a paz, não como sinônimo de acomodação, e sim a espada – não a da luta, mas a da justiça, a exemplo das palavras de Cristo (Mateus, 10:34).


A história se arrasta com enorme lerdeza, até o final dos tempos, mas nossas vidas são muito curtas para nossa missão, um átimo na eternidade. Como cantou um angustiado George Harrison em My sweet Lord: “mas demora tanto tempo, Senhor”!
Billy Preston, com McCartney, Ringo, Eric Clapton e todo mundo em tributo a George Harrison: My Sweet Lord

sexta-feira, 4 de março de 2016

O CONSERVATÓRIO E SEU TERMÔMETRO SOCIAL DA CRISE

O Brasil tem assistido a inúmeras demonstrações sobre a crise econômico-política que se abateu sobre o país como foi o lamaçal derramado com o rompimento da barreira da Samarco. É preciso ler os jornais diariamente, assistir aos noticiários com atenção, conversar com amigos, vizinhos e colegas de trabalho, toda informação é pouca. A escalada nos impostos, nos juros, a queda no PIB e na Bolsa de Valores, a alta nas moedas estrangeiras, o quebra-quebra de indústrias e construtoras, da cadeia de empregos, o tombo na renda familiar, enfim, tudo aquilo que vem fazer contraste com outro prato da balança, um verdadeiro tsunami que foi a relação direta entre empresários, políticos, empreiteiras e paraísos fiscais nesses últimos anos, fatos que mesmo escancarados são apenas parte do que nós sabemos.

Claro que não vou me aventurar a “chover no molhado”, tentando me aprofundar na parte econômica sobre a qual não tenho alguma informação, por mais diminuta que seja, que possa acrescentar ao que profissionais da Polícia Federal, do Ministério Público, da Justiça Federal, tribunais superiores e imprensa dispõem. Nesse caso, tornamo-nos observadores e críticos, espectadores diários de uma cena da qual não conheço precedentes, entre todas as crises por que passamos nas últimas décadas.

Conservatório: formandos
Volto-me ao nosso próprio microcosmos, para verificar como os fatos e a dura realidade econômica, com suas consequências imediatas, apesar de singulares, são bem palpáveis. Não tenho estudos de anos anteriores para efeito de comparação para o que vou expor, mas tendo sentido como a realidade afetou o Conservatório este ano, pedi um levantamento de dados não sobre a procura por vagas, que sempre foi e deverá ser grande, mas nas razões da chamada evasão, ou abandono de cursos, que alcançou 267 alunos, ou 11,6%, número até baixo para uma escola livre de crianças a adolescentes e adultos.

GPPUSP
Há 4 anos, a Veja (13/05/2012) e a Folha publicaram matérias sobre evasão em um curso universitário, cujo título na revista era “Evasão da Usp Leste chega a 37%” - isso, para alunos determinados a se formarem para seguir a carreira pela qual optaram decididamente no exame vestibular. Mas os reflexos da atual crise são imediatos do lado qualitativo, bastando desconsiderar nesse universo os que saíram para ingressar em faculdades e universidades (12,9%), o que é ótimo, e procedimentos cirúrgicos e tratamentos em geral (3,22%). Excetuamos também, nessa pesquisa, ligações telefônicas não completadas, entre os que não atenderam ou foram constatados números incorretos (25,8%), ainda restou um grupo razoável (74,2%) que nos forneceu dados qualitativos sobre trancamentos e abandonos: 45,19% saíram por necessidade de trabalho, em grande parte para ajudar no sustento familiar, dadas as dificuldades financeiras atuais, perda de emprego ou de renda ou falta de serviço para seu sustento, 3,22%, somam-se ao percentual anterior, de 45,19%, perfazendo 48,41% das saídas de alunos regulares. Apenas 3,22% saíram sem mais explicações. Arredondando para simplificar, quase metade dos abandonos e evasões se deram por motivos econômicos, aparentemente de forma exclusiva.

Claro que sentimos de perto os efeitos da crise quando os sintomas afetam a inflação particular de cada um – filhos, escola, transporte, combustíveis, aluguel, vestuário, saúde, remédios, alimentação – que sempre ultrapassam os índices oficiais, como o IPCA e outros. Isso, sem falar nos cortes em toda forma de lazer – cinema, viagens, etc. -, tudo compondo o retrato fiel dessa “inflação particular”. E não é verdade o que disse um economista, bem lá atrás, ainda durante a ditadura, cujo nome infelizmente não me ocorre: “a única coisa que sobe igual ao índice de inflação é o índice de inflação”? (E o genial Millôr Fernandes, sobre os mistérios da nossa economia: “o trabalhador ganha cada vez menos para produzir coisas que vão custar cada vez mais”).
1954: ano da instalação e primeiras inscrições
Que há candidatos às vagas do Conservatório em grande número, sim, há. Mas o que se pode medir, aqui, é a dificuldade de dedicar-se à música por parte de um público seleto de crianças, adolescentes e jovens, em sua quase totalidade, sujeito às tormentas que assolam suas vidas familiares. E é um público que se pode dizer bastante vulnerável, de classe média a média baixa (grande maioria) até os mais pobres, que sonham, com seus familiares, com um lugar ao sol onde possam sobreviver com seu talento em um mercado que não há de se fechar tão cedo: ouve-se música independentemente de crise, local, gênero, estilo e outros fatores, seja no rádio, na TV, nos carros, nos celulares, nas ruas, sem entrar no mérito da qualidade ou apreciações estéticas e de outras naturezas.
Nietzsche
Simplesmente não se vive sem música. Não foi à toa que o grande filósofo alemão Nietzsche (1844-1900) criou aquela frase que se tornou famosa: “sem música, a vida seria um engano” (a gente lê por aí sempre a palavra erro"). Aqui aproveito para tratar desse equívoco da tradução feita para o português a partir da versão em inglês do original alemão (Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum): without music life would be a mistake. Em português, seria mais como uma acepção que mestre Houaiss dispõe para o verbo errar: “andar errando, andar de um lado para o outro, vaguear”. Em inglês, o correto seria err. “Fez-se do amigo próximo distante / fez-se da vida uma aventura errante” (Vinicius, in Soneto de Separação. Abaixo, com música magistral de Tom Jobim).

Pois enquanto erramos por aí, vagando a esmo neste país, esperando a cura para todos os males, melhor ficarmos com o velho pensador: “sem música...”