(Iacessu) |
Todos deveriam ser cadeirantes por um dia! “Pra mim, basta um dia, não
mais que um dia, um meio dia” (Chico). Segundo o IBGE, 6,2% da população
brasileira apresenta algum tipo de deficiência, seja visual, de locomoção ou
outra. Em 2010, incluindo subtipos de deficiências visual, auditiva ou mental, 24%
mostraram-se portadores de algum tipo de perda, o equivalente a 45,6 milhões de
brasileiros. Muitos usam muletas, bengalas, andadores e cadeiras de rodas, fora
os desvalidos que não têm condição de comprar uma. A idade é agravante entre os
vários tipos de deficiência, quando não é o bilhete para ingresso definitivo de
um a mais nas estatísticas.
Alguns dizem “não
vejo tantos cadeirantes nas ruas”. Ora, os de maior poder aquisitivo passam despercebidos dirigindo
seus carros adaptados, ou são levados para lá e para cá por seus motoristas, amigos
ou parentes. Estacionam nos bancos nas vagas reservadas e são identificados pelo
adesivo de cadeirante no para-brisa. Alguns usam boas cadeiras, e os mais bem aquinhoados aquelas
motorizadas, que chegam a custar mais de 13 mil dólares (R$ 45 mil). Já artefatos
robóticos são para muito, muito poucos.
Sonhar é preciso: ônibus em Londres |
Nossos ônibus, calçadas e prédios não estão preparados para receber
deficientes físicos, e muitos nem saem de casa porque ficam confinados como se
estivessem presos. São párias da sociedade, alijados de estudo, trabalho e
lazer, e geralmente ignorados pelos que tiveram a bênção de poderem desfrutar de
todos os movimentos do corpo.
Fíbula |
Minha preocupação
com o assunto veio à tona quando vi-me cadeirante e portador de muletas por
três meses, após uma ridícula fratura na fíbula (altura do tornozelo). Digo ridícula
porque nem fui ao chão, torci o pé em um degrau de escada, caindo de pé sobre o
de baixo, com o tornozelo virado. Raios-x feitos em um hospital de São Paulo, o
remédio de sempre: gesso. Durou um dia. Comprei uma daquelas botas e voltei ao
hospital para arrancar aquele chumbo da perna. Começara ali minha vivência de
uma realidade que até então apenas supunha existir.
Para tirar licença de trabalho da Prefeitura, fui ao prédio da Perícia
Médica, no centro. Levou-me um vizinho, senhor de idade, motorista aposentado e
‘faz-tudo’, de pintura a pequenos reparos (retorno a ele adiante). Para entrar
no prédio, uma escada sem corrimão e, claro, fora dos padrões da ABNT. Era colocar as duas muletas sob uma
axila e a outra mão na parede para ajudar. Ao entrar - local de pessoas
acidentadas e doentes! -, não havia mais cadeiras na sala de espera. Para ir ao
banheiro, tive de passar por um corredor com as muletas, só que de lado: uma
“reforma” do espaço havia espremido a passagem com uma divisória.
Escola Municipal de Música: rampa dos fundos (prédio antigo) |
Nem cheguei ao terceiro dia de licença: enlouquecido, desci sentado a
escada do quarto, peguei as muletas, coloquei a cadeira de rodas que alugara
dentro do porta-malas do carro e fui para o trabalho. Chegando, entrei pela rampa
dos fundos e comecei a tocar o serviço da cadeira de rodas.
Teatro Municipal: escada favorita dos skatistas |
Após o susto do
prédio da perícia, sucederam-se vários outros. Haveria um belíssimo concerto no
Teatro Municipal, e eu não queria perder. Fui, estacionei e arrastei o corpo
com as muletas até a escadaria da frente, subindo aqueles degraus enormes, um
grande risco (o prédio é de 1911, tombado, impossível alterar) – coisa para esportes
radicais. Lá dentro, encontrei o Lauro Machado Coelho, cadeirante, o crítico de
conhecimento musical mais vasto que conheci. E ele me contou seu truque: sempre
telefonava antes, entrava com a cadeira pela passagem de serviço lateral, subia pelo
elevador de palco e descia à plateia.
Campinas: Centro de Convivência |
Episódios de frustração no acesso aos bens culturais repetiram-se algumas
vezes, como no Centro de Convivência de Campinas, onde fui ver um recital.
Descer até a plateia foi uma aventura cheia de sustos. Apesar de muito mais
recente do que o Municipal de SP, o Centro não tinha as mínimas condições para portadores
de necessidades especiais.
Flagrante em vaga especial para cadeirantes |
Confesso que houve momentos de ódio como quando uma lépida senhora saiu
de seu carro na vaga da rampinha para deficientes, e entrou no banco. Veio o instinto
da raiva, certo vandalismo oculto, em solidariedade para com os que sofrem o infortúnio de terem de passar
suas vidas assim. Bloqueei a vaga e somente saí depois de servir à madame um
“chá” de 15 minutos de espera. Que chamasse a polícia, pois! Daria um belo
flagrante.
O grande e saudoso professor emérito Ruy Laurenti, ouvidor da USP |
A quase totalidade dos municípios ignora as leis 11.263/02, de SP, a 13.146/15,
federal, e as que as antecederam. Pior, desrespeitam quem tem dificuldades de
locomoção e acesso. As minhas duraram apenas três meses, mas trouxeram uma luz
positiva: ajudaram-me na conscientização sobre o problema. Conheci Renato
Laurenti, filho do professor emérito da USP Ruy Laurenti – que, coincidência
absurda, foi para quem meu motorista bissexto havia dirigido! Conhecido como
“repórter saci”, tornado tetraplégico após um acidente, Renato tinha uma ONG para
auxílio a deficientes. Conversamos algumas vezes, falamos sobre acessibilidade
na Prefeitura, missão impossível. Propus-me a ajuda-lo e colaborei em outros projetos
como pude.
Teatro Procópio Ferreira Tatuí |
O Conservatório de
Tatuí ampliou a acessibilidade no Teatro, em todas as unidades onde possível e
permitido por lei, e estimulou o curso de musicografia Braile. Em 2010, recebeu
o Prêmio Estadual de Ações Inclusivas, entre 300 projetos avaliados. Neste mês
de junho de 2016, por iniciativa de Rogério Vianna, a Cia. de Teatro do Conservatório inovou com a leitura de uma peça com
tradução em libras. Basta cada um fazer a sua parte, pouco que seja, nada mais.
É dever cívico! Pegue uma emprestada, alugue, seja cadeirante por um dia. Basta
um dia, um meio dia!
Alunos, o gerente de Secretaria Cristiano Guimarães, prof. Moacir e as profªs Karla, Sueli e Darli na premiação |
Não somos limitados , somos limitantes . Parabéns pelo texto e pela experiência narrada . A gente que lute .
ResponderExcluirexcelente, querido Henrique. somente quando passamos por uma situação como essa, e ainda temporariamente, podemos ter um mínimo de clareza do que acontece. imagine quem vive a situação constantemente. somos um país é um povo despreparado completamente para alguém com alguma deficiência. e, infelizmente, não mudou muito …
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