O mais
ilustre cidadão da Córsega, nascido logo após a ocupação da ilha pela França,
aos 16 anos Napoleão já era oficial de artilharia. Sua trajetória política
alinhava-se ao seu engajamento intelectual e sua formação filosófica; com isso,
tornou-se cônsul de grande poder no triunvirato francês. O país estava arrasado
pela corrupção e a crise geral, o povo revoltado com toda a classe política,
que assaltava os cofres públicos e deixava as mentes entorpecidas ante os desmandos
dos governantes.
Partitura adulterada por Beethoven |
Napoleão
como cônsul foi implacável com a corrupção, colocando o país de volta nos
eixos, e tornou-se um ícone para a França, que o inflou de forma tal que em 1804
sagrou-se Imperador. (Corte de cena: desde 1803 Beethoven vinha trabalhando em
sua terceira sinfonia, concluída pouco antes da sagração napoleônica. Revoltado
com a autocoroação do imperador e
convicto de suas ideias republicanas, Beethoven tomou-se de raiva tal que riscou
a dedicatória na partitura original de orquestra da obra, chegando a rasgar o
papel. Riscou do frontispício o nome “Buonaparte”, a quem havia dedicado a peça,
fato narrado por seu aluno e secretário Ferdinand Ries. A sinfonia passou a se intitular
“Eroica”, e triunfou abrindo caminho para a transição que mais adiante haveria
de revolucionar a música, do classicismo ao romantismo. A partitura original com
a profunda rasura feita com fúria pelo compositor se encontra na biblioteca
Gesellschaft der Musikfreunde, em Viena).
Luís Bonaparte |
Luís,
sobrinho de Napoleão, sagrou-se imperador, à sombra e semelhança de seu tio. No
célebre 18 brumário, aliás muito bem analisado pelo historiador Karl Marx em “O
18 brumário de Luís Bonaparte”(1852), Luís seguiu o modelo do tio, Napoleão, dando
um golpe de estado e assumindo-se monarca absoluto.
Mas o Napoleão cônsul
havia modernizado o estado e a educação e criado os códigos penal e civil, além
de reduzir o poder do clero. Era também, dentro de suas atribuições geniais, ótimo
analista de Machiavelli: há uma edição de O Príncipe comentada e com diversas
críticas suas ao pensador florentino. Gosto de um exemplo em especial: “Preocupações pueris. A glória
acompanha sempre o poder, independentemente dos meios utilizados para sua
obtenção” - sobre atitudes criminosas e o assassinato de compatriotas para se chegar
ao poder. Mas “A arte da guerra” (Dell'Arte de la Guerra), de Machiavelli, foi sim a maior inspiração de
Bonaparte! Estudioso da história, dono de uma soberba e uma fome de
poder que aumentava com sua popularidade, escrevia sobre sua própria inteligência
de estratego e líder. Sua volúpia pelo poder descambou na determinação de
dominar a Europa, feito que inspiraria outros estrategistas, do século 20 ao
atual.
Santa Helena |
A ambição
dominadora do Napoleão imperador terminou por dilapidar os cofres públicos cuja
sangria ele mesmo havia antes estancado, e o país, a exemplo do que acontece após
os grandes genocídios e guerras, entrou em colapso político e econômico. Sem
saída, foi forçado a abdicar ao trono e isolou-se na ilha de Elba, perto da
costa da Itália. Mas voltou à França, reassumiu o controle dos exércitos, e sobreveio a histórica batalha de Waterloo. Em 1815, foi exilado na ilha de Santa
Helena, uma distante possessão atlântica inglesa, onde veio a morrer em 1821.
Vale
conhecer o pensamento de Napoleão, suas reflexões políticas, aforismas e
análises. No livro Manuel du chef.
Aphorismes choisis (“Manual do chefe. Aforismas escolhidos”), com material compilado
por Jules Bertaut, há pérolas de toda ordem. Napoleão comparava sua paixão pelo
poder com a de “um violinista ao seu instrumento, que dele extrai acordes,
harmonia e notas”, confissão de que o poder era a vocação mais profunda de sua
alma. Achava que a frieza era a maior virtude de um homem predestinado a ser um
líder, e que era preferível ser amado do que proferir lindos discursos. Por
isso, para ele a inteligência de usar seus atributos era maior do que a força, mero
instrumento para fazerem avançar suas ambições. Napoleão narrou em seus
escritos um contraponto com grandes comandantes do passado, como Aníbal frente
ao exército de Cartago e César na conquista da Gália, ambos fortes líderes sem
os quais “seus exércitos não seriam bem-sucedidos”. E considerava-se sábio ao
dizer que nunca dava sua palavra, e essa seria a melhor forma de mantê-la. E
que ouvia a todos, mas nunca dizia o que iria fazer.
Golpe de Getúlio: O Estado Novo |
Adiantando o
relógio da história e a longa distância no mapa, o Brasil vem de turbulências e revoltas, com intervalos de
alguns aparentes sucessos, mas graves ruínas provocadas nos pós-golpes – e eles foram
tantos, e tantas foram as tentativas -, entre os quais se destaca o longo retrocesso
de 1964/1985, após o qual já estava enraizada a corrupção, e a economia foi
entregue aos civis em frangalhos. Leis e Constituição rasgadas, as atrocidades cometidas lembrariam
as do Napoleão imperador. Se sobreveio
depois um ordenamento legal e constitucional, hoje transborda, emoldurada por
um aparente estado democrático de direito, a corrupção em todos os níveis
públicos e privados em suas múltiplas facetas, mascaradas por vaidades extremas que
despertam suspeitas na conduta de boa maioria dos integrantes dos três poderes.
Não há mais lugar para um novo clone de Luís Bonaparte, a repetir trechos de
nossa desastrada história. O Brasil parece já ter se descolado dessa fase, e não
haverá mais Napoleões e Luíses com suas tropas ou milícias na atual correlação
de forças, ao menos enquanto perdurar o estado de direito, mesmo que respirando
por aparelhos.
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