Escrito a partir do meu artigo para
a Veja de 13 de julho
Minha posição sobre o projeto que ora
corre no Senado Federal (SUG n° 17/2017), que pretende a criminalização do Funk,
corre fora do escopo de qualquer credo ou ideologia; é técnica, e dentro do contexto
social, como convém a um estudioso da música. A “Sugestão” foi feita pelo
paulista Marcelo Alonso, ‘que ninguém sabe quem seja’, talvez candidato a
candidato. Só que o cidadão arrastou 22 mil assinaturas de apoio – o suficiente
para colocar a “SUG” em pauta na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Alonso
considera o gênero musical “um crime de saúde pública desta ‘falsa cultura’
denominada ‘funk’” (sic). Acusa ainda os bailes funk de “recrutar redes
sociais” (...) “para atender criminosos, estupradores e crime contra a criança
e o menor adolescente” (...) “uso de drogas, agenciamento, orgias e exploração
sexual, estupro, pornografia, pedofilia, arruaça, sequestro, roubo e etc.” -
sem explicar o que vem a ser esse “etc.”
O Senador Romário |
A reação que mais repercutiu veio da
cantora Anitta, hoje em franca ascensão internacional, e dirigida aos seus perto
de 5 milhões de seguidores no Twitter. Ela convida “os 22 mil desinformados”
que assinaram a petição a conhecerem melhor o seu país. Afirma que o funk é
gerador de trabalho e renda, e pede que antes de tudo invistam em Educação.
Pondera que se o conteúdo das letras não agrada, é por causa da vida nas
periferias, os jovens “cresceram vendo e vivendo aquilo que cantam” – pois há
dificuldade de acesso das classes mais pobres a outros assuntos, e que se
tivessem tido a oportunidade hoje poderiam estar cantando sobre outras coisas.
A cantora também critica a precariedade da saúde pública, além de desafiar se
“quem decide nosso futuro fosse obrigado a frequentar uma escola pública sem
cursinho particular”. O relator da proposta será o senador Romário, que se diz
“carioca e funkeiro”, e é um dos mais assíduos e elogiados representantes do
Legislativo. Tenho certeza de que o parecer do ex-jogador será contundente e
certeiro. Como seus gols.
Todo brasileiro deveria conhecer, ao
menos por alto, a Constituição da República. Nos EUA, é matéria da escola. Um
dos pilares de nossa Carta Magna é o direito à livre manifestação. Mais ainda,
a Lei Maior é de absoluta clareza especificamente no caso do respeito às manifestações
artísticas, frontalmente atingidas pela proposta de criminalização de um gênero,
em golpe que se pretende mortal.
Julius Cæsare |
Não sou linguista ou historiador, mas
por dever de ofício frequentemente a música me lança além da fronteira dos sons.
Cabe, por causa disso mesmo, uma breve digressão sobre a censura, cuja origem é
a mesma de cesura, que em música se traduz como um ‘corte’ em uma melodia: é
o ato de suspender, interromper. Igualmente, ela passa por César (lat.: cæsare, de onde cirurgia ‘cesariana’). A censura é cirurgia dolorosa, e quem
passou por ela sabe o que é.
Hitler e Goebbels |
O Brasil sobreviveu aos enormes
prejuízos de diversos períodos de censura aguerrida, a exemplo do Estado Novo,
com seu DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), sob o comando de Lourival
Fontes, à semelhança do Goebbels de Hitler. Também foi o caso do regime de
exceção que chegou ao ápice a partir de 1968, com o AI-5. A censura atingiu os intelectuais,
escritores, professores, artistas e a imprensa. No período mais negro do regime
a espada rondava os artistas, as faculdades, escolas, festivais, e se instalava
nas redações dos jornais. Chico Buarque cansou-se de submeter suas músicas ao
crivo dos censores, elas passaram a ser invariavelmente proibidas. Chegou a
adotar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, e com ele conseguiu ver liberadas pérolas
como “Acorda, amor / eu tive um pesadelo agora / sonhei que tinha gente lá fora
/ batendo no portão, que aflição / era a ‘dura’, numa muito escura viatura...”
Ouça e veja "Acorda, amor", com Chico
Stalin em um exemplo perfeito de "realismo socialista" |
Na União Soviética de Stalin
(1922-1953) imperou o chamado realismo socialista bolchevique, sob o comando de
Jdanov, fiel escudeiro e censor-mor do regime. Não buscavam apenas coibir ‘vícios
burgueses’, queriam obrigar todo artista a escrever, compor ou pintar sob a
ótica militarista, propagandeando os soviéticos e suas ‘maravilhas’. O regime obrigou
compositores a reverem sua estética, período em que a qualidade da produção
musical decaiu acentuadamente. As pinturas tinham jeito de fotografias, já que elas,
como arte, não serviam à revolução (leia-se: o poder do Estado).
Volonté, como o Chefe de Polícia |
O que ajuda a manter um regime ou, nesse
caso do funk, um ‘pensamento de exceção’, é a censura da liberdade de que têm
medo e não apraz aos falsos profetas por alguma razão obscurantista. Em um
filme de Elio Petri (1970), “Investigação sobre um cidadão acima de qualquer
suspeita”, o Chefe de Polícia italiano reúne seus policiais para um discurso
que entrou para a história do cinema. Do alto de sua soberba e prepotência, ao
final de sua fala exaltada, o personagem maravilhosamente representado por Gian
Maria Volonté gritou: repressione è
civiltà – repressão é civilização! E tome aplausos da claque. Quando
assisti ao filme, a ameaça me arrepiou: vi ali, na Itália, o espelho do que
acontecia no Brasil.
Fahrenheit 451 |
Esse projeto que quer criminalizar o
funk também me fez lembrar outro filme, o Fahrenheit 451, de 1966, obra do cineasta
François Truffaut, sobre o livro de Ray Bradbury. Na fita, bombeiros não apagavam fogo, apenas queimavam
armas perigosas com lança-chamas: os livros! (Daí o título: 451 graus
Fahrenheit é a temperatura da queima do papel, equivalente a 233 Celsius). Nesse
ritmo, chegaremos lá.
(Continua na próxima semana)