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sábado, 22 de julho de 2017

CRIMINALIZANDO O FUNK – PARTE I

Escrito a partir do meu artigo para a Veja de 13 de julho

Minha posição sobre o projeto que ora corre no Senado Federal (SUG n° 17/2017), que pretende a criminalização do Funk, corre fora do escopo de qualquer credo ou ideologia; é técnica, e dentro do contexto social, como convém a um estudioso da música. A “Sugestão” foi feita pelo paulista Marcelo Alonso, ‘que ninguém sabe quem seja’, talvez candidato a candidato. Só que o cidadão arrastou 22 mil assinaturas de apoio – o suficiente para colocar a “SUG” em pauta na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Alonso considera o gênero musical “um crime de saúde pública desta ‘falsa cultura’ denominada ‘funk’” (sic). Acusa ainda os bailes funk de “recrutar redes sociais” (...) “para atender criminosos, estupradores e crime contra a criança e o menor adolescente” (...) “uso de drogas, agenciamento, orgias e exploração sexual, estupro, pornografia, pedofilia, arruaça, sequestro, roubo e etc.” - sem explicar o que vem a ser esse “etc.”
O Senador Romário
A reação que mais repercutiu veio da cantora Anitta, hoje em franca ascensão internacional, e dirigida aos seus perto de 5 milhões de seguidores no Twitter. Ela convida “os 22 mil desinformados” que assinaram a petição a conhecerem melhor o seu país. Afirma que o funk é gerador de trabalho e renda, e pede que antes de tudo invistam em Educação. Pondera que se o conteúdo das letras não agrada, é por causa da vida nas periferias, os jovens “cresceram vendo e vivendo aquilo que cantam” – pois há dificuldade de acesso das classes mais pobres a outros assuntos, e que se tivessem tido a oportunidade hoje poderiam estar cantando sobre outras coisas. A cantora também critica a precariedade da saúde pública, além de desafiar se “quem decide nosso futuro fosse obrigado a frequentar uma escola pública sem cursinho particular”. O relator da proposta será o senador Romário, que se diz “carioca e funkeiro”, e é um dos mais assíduos e elogiados representantes do Legislativo. Tenho certeza de que o parecer do ex-jogador será contundente e certeiro. Como seus gols.

Todo brasileiro deveria conhecer, ao menos por alto, a Constituição da República. Nos EUA, é matéria da escola. Um dos pilares de nossa Carta Magna é o direito à livre manifestação. Mais ainda, a Lei Maior é de absoluta clareza especificamente no caso do respeito às manifestações artísticas, frontalmente atingidas pela proposta de criminalização de um gênero, em golpe que se pretende mortal.
Julius Cæsare
Não sou linguista ou historiador, mas por dever de ofício frequentemente a música me lança além da fronteira dos sons. Cabe, por causa disso mesmo, uma breve digressão sobre a censura, cuja origem é a mesma de cesura, que em música se traduz como um ‘corte’ em uma melodia: é o ato de suspender, interromper. Igualmente, ela passa por César (lat.: cæsare, de onde cirurgia ‘cesariana’). A censura é cirurgia dolorosa, e quem passou por ela sabe o que é.

Hitler e Goebbels
O Brasil sobreviveu aos enormes prejuízos de diversos períodos de censura aguerrida, a exemplo do Estado Novo, com seu DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), sob o comando de Lourival Fontes, à semelhança do Goebbels de Hitler. Também foi o caso do regime de exceção que chegou ao ápice a partir de 1968, com o AI-5. A censura atingiu os intelectuais, escritores, professores, artistas e a imprensa. No período mais negro do regime a espada rondava os artistas, as faculdades, escolas, festivais, e se instalava nas redações dos jornais. Chico Buarque cansou-se de submeter suas músicas ao crivo dos censores, elas passaram a ser invariavelmente proibidas. Chegou a adotar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, e com ele conseguiu ver liberadas pérolas como “Acorda, amor / eu tive um pesadelo agora / sonhei que tinha gente lá fora / batendo no portão, que aflição / era a ‘dura’, numa muito escura viatura...”
Ouça e veja "Acorda, amor", com Chico

Stalin em um exemplo perfeito de "realismo socialista"
Na União Soviética de Stalin (1922-1953) imperou o chamado realismo socialista bolchevique, sob o comando de Jdanov, fiel escudeiro e censor-mor do regime. Não buscavam apenas coibir ‘vícios burgueses’, queriam obrigar todo artista a escrever, compor ou pintar sob a ótica militarista, propagandeando os soviéticos e suas ‘maravilhas’. O regime obrigou compositores a reverem sua estética, período em que a qualidade da produção musical decaiu acentuadamente. As pinturas tinham jeito de fotografias, já que elas, como arte, não serviam à revolução (leia-se: o poder do Estado).

Volonté, como o Chefe de Polícia
O que ajuda a manter um regime ou, nesse caso do funk, um ‘pensamento de exceção’, é a censura da liberdade de que têm medo e não apraz aos falsos profetas por alguma razão obscurantista. Em um filme de Elio Petri (1970), “Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita”, o Chefe de Polícia italiano reúne seus policiais para um discurso que entrou para a história do cinema. Do alto de sua soberba e prepotência, ao final de sua fala exaltada, o personagem maravilhosamente representado por Gian Maria Volonté gritou: repressione è civiltà – repressão é civilização! E tome aplausos da claque. Quando assisti ao filme, a ameaça me arrepiou: vi ali, na Itália, o espelho do que acontecia no Brasil.

Fahrenheit 451
Esse projeto que quer criminalizar o funk também me fez lembrar outro filme, o Fahrenheit 451, de 1966, obra do cineasta François Truffaut, sobre o livro de Ray Bradbury.  Na fita, bombeiros não apagavam fogo, apenas queimavam armas perigosas com lança-chamas: os livros! (Daí o título: 451 graus Fahrenheit é a temperatura da queima do papel, equivalente a 233 Celsius). Nesse ritmo, chegaremos lá.

(Continua na próxima semana)

sábado, 15 de julho de 2017

RÁDIO, BOLACHÕES E AS MÚSICAS DE ANTIGAMENTE

Chatô
A TV brasileira foi inaugurada no final de 1950 em SP, e quatro meses depois em 1951, no Rio, pelo nosso “Cidadão Kane”, nosso tycoon Assis Chateaubriand. Era a TV Tupi abrindo caminho para o futuro. Antes disso, nas rádios, na ausência de luzes de efeito, gestos e danças para glamorizar as apresentações, como na TV, a clareza da voz, a dicção e a impostação eram cruciais. Mas os ídolos radiofônicos surgidos nesse período até 1950 eram mitos que só se poderia ver ao vivo nos Teatros de Revista da Praça Tiradentes, em algumas boates de Copacabana ou do Bixiga paulistano, ou em grande estilo nos elegantes cassinos: Urca, Quitandinha, Pampulha, e todos a preços bem salgados.

O fascínio do rádio
Assim como as notícias, que vinham pelo rádio, às músicas era imposta a necessidade de uma dicção perfeita, irrepreensível. Irradiavam até cantores com orquestras inteiras, mas não havia mesas digitais com dezenas de canais, como as de hoje, apenas um único canalzinho, sendo os participantes distribuídos nos comprimidos espaços das emissoras, cantora ou cantor à frente de um solitário microfone. A orquestra era disposta no estúdio, logo depois da voz, em ordem crescente de volume: violinos, acordeão e assim por diante, até chegar na bateria, no fundo do ambiente. Assim, com criatividade, eram feitos os programas.

Carmen e Aurora Miranda
(Há um documentário de Gil Baroni, de 2009, chamado “Cantoras do Rádio”, que bem retrata a chamada “era de ouro”, disputada pelas cantoras. Isso, por causa de uma marchinha chamada Cantores de Rádio, do trio Lamartine Babo, João de Barro e Alberto Ribeiro, que estourou na voz das irmãs Carmen e Aurora Miranda: “Nós somos as cantoras do rádio / levamos a vida a cantar / de noite embalamos teu sono / de manhã nós vamos te acordar”).
Nássara: cartunista e compositor
Até o final de 1950, ano em que a TV viria para ocupar seu espaço no Brasil, ainda surgiram sucessos do rádio como a marchinha Balzaqueana, da dupla Nássara e Wilson Batista, referência à “Mulher de 30 anos”, do escritor francês Honoré de Balzac. Quem sabe um afago nas mulheres mais vividas após o sucesso de Normalista, da mesma dupla, que cantava “Vestida de azul e branco / trazendo um sorriso franco / no rostinho encantador / minha linda normalista / rapidamente conquista / meu coração sem amor?" Do mesmo ano é Antonico, de Ismael Silva, grande sucesso na voz de Gal Costa, longos anos depois: “Ó Antonico / vou lhe pedir um favor / que só depende / da sua boa vontade”.
Donga
A curiosidade é que o rádio no Brasil só veio a surgir no centenário da Independência, no mesmo 1922 da Semana de Arte Moderna, inaugurado com pompa pela transmissão de um discurso do então presidente Epitácio Pessoa! Desde antes das rádios, as músicas eram registradas em “bolachões” de 78 r.p.m., tendo sido Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, o Donga - um samba nascido em um terreiro de Candomblé -, o primeiro do gênero gravado, há exatos cem anos, em 1917! Os “bolachões”, traziam apenas uma música por lado, e fizeram a alegria de gerações de brasileiros. Mas o grande conforto de se poder ouvir músicas sem comprar discos veio apenas com a maravilha chamada rádio, depois de popularizado.
O "moderno" vinil
Essas gravações coexistiram com as rádios, e, no final dos anos 1940, passaram a ser registradas em HI-FI (de high fidelity, alta fidelidade), em vinil. Conseguiam comprimir doze ou mais músicas em um simples álbum, o LP (Long Playing). Depois vieram os discos estereofônicos, até que recentemente a tecnologia trouxe o CD e o DVD, MP3, MP4 e outros formatos.

Voltemos a 1949, ano do choro Brasileirinho. Segundo o pesquisador Zuza Homem de Mello, em 1947 Valdir Azevedo já havia composto um trecho da primeira parte. Um dos maiores sucessos de nossa música popular, Brasileirinho, que se tornou famoso nos gorjeios virtuosísticos de Ademilde Fonseca,  já foi tocado e gravado por uma infinidade de intérpretes até hoje: Baby Consuelo com Os Novos Baianos, Armandinho e o trio de Dodô e Osmar, Altamiro Carrilho, Yamandú Costa e o Grupo de Choro do Conservatório de Tatuí (bis de sucesso nos finais de show), entre tantos outros.
Lupicínio Rodrigues e sua caixa de fósfors
De 1947, Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues, é um samba-canção amargurado, de fossa mesmo: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? / Ter loucura por uma mulher / e depois encontrar esse amor, meu senhor / nos braços de um tipo qualquer”. Do mesmo ano é um clássico da Música Brasileira, Asa Branca, toada de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, um lamento candente sobre a seca no Nordeste brasileiro: “Que braseiro, que fornalha / nem um pé de plantação / por falta d’água perdi meu gado / morreu de sede / meu alazão”. Pior: ainda perdeu seu amor Rosinha, fugida da praga da seca nordestina.

Emilinha Borba, "Rainha do Rádio"
Em 1944, o lindo samba carnavalesco Atire a Primeira Pedra, de autoria do Ataulfo Alves e o versátil Mário Lago, virou sensação, e as primeiras quatro palavras da frase inspirada no Evangelho de João tornaram-se de domínio popular: “atire a primeira pedra, ai, ai, ai / aquele que não sofreu por amor”. Os filmes musicais já estavam em plena voga, e a eterna Emilinha Borba emplacou na fita 'Tristezas não Pagam Dívidas”. O cinema também fez Carmen Miranda, a “Pequena Notável”, chegar aos EUA, onde esbanjou sucesso tremendo, chegando a amealhar, por treze anos a partir de 1940, a fortuna de 35 milhões de dólares, em dinheiro de hoje, e ainda foi coroada com o apelido de Brazilian Bombshell (brasileira explosiva, atordoante).  Pois salve os cantores do rádio! Vivamos a vida a cantar!

sábado, 8 de julho de 2017

CITAÇÕES BÍBLICAS, ARTÍSTICAS E A COLUNA DO IBRAHIM

Castro Alves
Na semana retrasada publiquei neste espaço um artigo intitulado “Língua Portuguesa, onde estás, que não respondes?” Talvez o pessoal de minha geração para trás, até um pouco mais para a frente, tenha sido o de felizes alunos que tiveram boas aulas de português, e deve ter percebido ali uma citação a Castro Alves, em “Vozes d’África”. E, por achar a pergunta do poema tão familiar, eu não tenha indicado o autor. Nos versos, Alves fala de sua própria citação: “Há dois mil anos te mandei meu grito / que embalde desde então corre o infinito... / Onde estás Senhor Deus?” O poeta não precisava mencionar que seu verso aludia às palavras de Cristo, já na cruz, vislumbrando sua morte iminente: Eli, Eli, lamá sabachtháni (Mateus, 27:46, por sua vez citando o Salmo 22 de Davi). Alves citava Mateus, que citava Jesus, que citava Davi, e eu citando aqui um poema do Drummond). O Eli, Eli, lamá sabachtháni, é “Deus, Deus, por que me abandonastes?”

Alfred de Musset
Ora, no decorrer do texto fiz outra citação, coisa de meu costume: falo sobre o mal do século, em um contexto totalmente diverso do Le Mal du Siècle, de Alfred de Musset, sobre a tomada de consciência da juventude do século 19. Pode passar despercebida, mas é coisa do autor usar uma citação, seja ela oculta, explícita, óbvia, com ou sem aspas, e, quando necessário, optar pela referência. Às vezes, o contexto e o meio em que se escreve (artigo, blog, tese, publicação científica) exigem a identificação – “Castro Alves, in Vozes d’África”, por exemplo.

Em um discurso que não estava lá entusiasmando muito o público, JK bradou “Deus poupou-me o sentimento do medo”, frase repetida literalmente mais tarde por Collor de Mello. No caso de JK, meu pai, Autran Dourado, seu Secretário  de Imprensa, havia escrito a frase de efeito em um pedacinho de papel e a enfiou no bolso do paletó do Presidente. Logo, Sucesso! A plateia aplaudiu com entusiasmo! Meu pai apenas lembrara de cabeça Timóteo II-1:7: “Deus não nos deu o espírito do medo”.

Marcos e Paulo Sérgio
Há citações na Bíblia, em poesia e literatura, e claro que na música. Elis Regina foi consagrada com “Eu preciso aprender a ser só”, do Marcos e Paulo Sérgio Valle – samba-canção que muitos erroneamente atribuem a Jobim, e contagiou gerações: “sem teu amor eu não posso viver / que sem nós dois o que resta sou eu / eu assim.../ tão só”. Gilberto Gil compôs “e quando escutar um samba-canção / assim com ‘Eu preciso aprender a ser só’ / reagir e ouvir o coração responder / eu preciso aprender a só ser”. A citação era tão óbvia que a referência tornou-se desnecessária, não é costume musical.

Em um trabalho acadêmico, uma tese, um TCC, convém fazer as citações mencionando-as em rodapé, no fim do texto e na bibliografia, como manda o figurino. Se no passado Umberto Eco era a referência, com seu Como se Faz uma Tese (SP: Editora Perspectiva), o Brasil passou a normatizar tudo, como parte da ISO (International Organization for Standardization) e da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Um bom auxílio é um livrinho do prof. Gilson Monteiro, Guia para a Elaboração de Projetos, Trabalhos de Conclusão de Cursos, Dissertações e Teses (SP: Edicon, 1998). Nele, o autor discorre sobre a escolha do tema, precauções com a redação, projeto de pesquisa, revisão, metodologia, referências bibliográficas, cronograma, bibliografia e seus formatos segundo as normas.
O Houaiss tem duas acepções para o termo citação. A primeira versa sobre o que escrevi até agora, com o sentido de mencionar, fazer referência a. A outra é utilizada no meio jurídico como “intimação para que alguém, em data fixada, compareça ou responda perante autoridade judiciária...”, o que o linguista Deonísio da Silva descreve como vindo do latim ‘citatione’, declinação de ‘citatio’, chamamento, intimação” (De Onde vêm as Palavras. RJ: Lexicon, 2014). A citação, se escrita com erros graves ou for feita de forma incorreta, pode tornar-se uma “citação circunduta” e até ensejar a invalidação de todo o processo. O primeiro registro de uso da palavra data da Idade Média (1322), diz Deonísio. E essa acepção é a que mais me preocupa, nos dias de hoje, pela nossa santa protetora, a Língua Portuguesa.

A grande imprensa escrita, falada, televisada e mídias diversas tem usado “citação” com sentido de ‘menção’, em pleno assunto judicial. Pode ser sobre alguém intimado ou tornado réu no caso da Operação Lava Jato ou aquele cujo nome simplesmente foi mencionado, erro que presta um péssimo serviço à informação, à língua portuguesa, ao direito e, claro, à imagem do cidadão inocente. O fato de alguém ter sido “citado” pode ter a gravidade de uma intimação do STF para torná-lo réu ou apenas a menção na imprensa sem nenhuma referência jurídica ao cidadão, prejudicando-lhe a vida, de seus familiares e seu trabalho. Se você esteve em uma festa de casamento e é pessoa conhecida ou pública, cuidado! Você poderá ser mencionado em uma dessas delações e a imprensa pode lhe... citar! Citado na Lava Jato! Coisa feia! Os amiguinhos de seus filhos podem fazer bullying na escola e você ver sua clientela encolher.


Ibrahim Sued
Com essa confusão, prefiro apenas mencionar pessoas e voltar às minhas citações poéticas, de prosa, discursos e afins. Concluo citando Miguel Gustavo, autor de Café Society (1955), grande sucesso do passado: “Enquanto a plebe rude na cidade dorme / eu ando com Jacinto que é também de Thormes / Teresas e Dolores falam bem de mim / já fui até citado / na coluna do Ibrahim”. 


Gravação de Jorge Veiga

sábado, 1 de julho de 2017

MÚSICA NO CINEMA: FORMANDO GERAÇÕES

Uma das paixões do cinema de minha juventude, uma época tão rica culturalmente - as artes em franca explosão, a rebeldia dos jovens queria mudar o mundo com paz - foi o filme Easy Rider, uma aventura sobre duas motos com Peter Fonda, que já vinha de um filme sobre uma viagem alucinógena com LSD (The trip, 1967) - meio apavorante pela tensão e pela sensação de se estar perdido em um labirinto. Já Easy Rider, com Dennis Hopper como coadjuvante, traz o jovem Fonda, filho do lendário Henry Fonda e irmão da belíssima Jane. Na trama, Fonda e Hopper correriam o longo caminho entre Los Angeles, na costa oeste dos EUA, até New Orleans, terra natal do blues e do jazz no centro-sul do país (3.030 Km de estrada!). O custo total da produção foi, em dólares corrigidos para 2017, de 2,6 milhões – valor insignificante nos dias de hoje. No entanto, o sucesso foi tal que arrebatou a quantia de U$ 333,4 milhões (também corrigidos) de bilheteria nas primeiras semanas.
Típico shotgun
Talvez o maior segredo para sucesso tão estrondoso não tenham sido as motos Harley Davidson, paixão dos jovens rebeldes da Califórnia, mas principalmente a trilha sonora, que lançou o sucesso Nascido para ser Selvagem (Born to be wild): “Ligue o seu motor / encare a estrada / procurando aventura / do jeito que ela vier / (...) tome o mundo em um abraço de amor / dispare todas as suas armas de uma vez / e... exploda no espaço”. Para descrever a cena final, só o jargão americano: dois rednecks (“pescoços vermelhos”, queimados pelo sol na estrada ou no trabalho braçal) em uma picape típica do interior, avistam a dupla de hippies motoqueiros. Logo, o shotgun (“arma de fogo”, termo usado genericamente até hoje para o passageiro, o “assento do carona”) puxa o rifle que está pendurado em um suporte por trás de sua cabeça, costume que ainda persiste na região, abre a janela e derruba os dois viajantes, em uma cena inesquecível do mestre cinegrafista húngaro László Kovács.
A trilha sonora teve ídolos da época, como Hendrix (Easy rider), The Byrds (The ballad of easy rider), de Bob Dylan, e o grupo Steppenwolf (Born to be wild e The pusher - O Traficante). A música embalou o filme e atraiu público, apesar da atuação de Fonda, sem maiores atrativos, mas com o sobrenome de seu pai ajudando. E Hopper foi um mero papel secundário na trama e sofrível ator. Quem assistiu ao filme uma vez, na época, deve ter retornado várias outras ao cinema.
Cabe aqui menção a Noviça Rebelde (The sound of music), ainda de 1966, premiadíssimo sucesso com Julie Andrews baseado na história da Família Trapo (1949), que rendeu monumentais 2,5 bilhões de dólares de hoje, logo nas primeiras semanas de exibição. Mas, claro, minha geração torceu o nariz: achávamos infantil, “coisa de maricas”, “água com açúcar”.
Marilyn, com Tony Curtis (sax) e Jack Lemmon (contrabaixo), atrás
Ironicamente, Quanto mais Quente Melhor (Some like it hot, de 1959) fora blindado da ácida crítica dos jovens porque contava uma história de músicos estrelada pela diva Marilyn Monroe, frente a uma banda formada por mulheres que tinha Tony Curtis e Jack Lemmon – só que travestidos. Marilyn era uma diva perfeita, idolatrada mais pelo seu charme e seu corpo do que propriamente sua atuação como atriz. Era venerada por todos, do presidente JF Kennedy ao fenômeno da cultura pop, o artista plástico Andy Warhol.
Cyd Charisse
Antes de Julie e Marilyn, o histórico Cantando na Chuva (1952) arrebatou pela dança perfeita de Gene Kelly e Debbie Reynolds, sem falar nos passos das memoráveis longuíssimas pernas da Cyd Charisse, que fez suspirar corações e imaginações. Era o apogeu dos sucessos musicais da MGM (Metro-Goldwin-Mayer), que havia eclodido com Um Americano em Paris (1951, com Gene Kelly), Era uma Vez em Hollywood (1974), e antes de tudo O Mágico de Oz (The wizard of oz), de 1939, com uma infantil Judy Garland, então com 17 anos, imortalizada pela interpretação de Over the rainbow: “Em algum lugar / além do arco-íris / bem lá em cima / há uma terra / de que ouvi uma vez falar / em uma canção de ninar”.
Chaplin (1940, já com som) em O grande Ditador
Antes de o som surgir no cinema, havia legendas ou simplesmente se “falava” com imagens, a exemplo do mestre Charles Chaplin e seus grandes sucessos com Carlitos, um ícone e símbolo mundial. Lindos são O Garoto (1921), O Circo (1928) e Tempos Modernos (1936). Muitos músicos cresceram fazendo acompanhamento musical em cinemas de todo o mundo, sentados ao piano ou outros instrumentos e musicando as cenas conforme as imagens. Salas antigas do Rio, como o Cine Odeon, na chamada Cinelândia, hospedaram pianistas ou pequenos grupos, dando-lhes emprego.

Mas trilha sonora não foi a opção principal de todos, caso da cineasta Suzana Amaral, que filmou A Hora da Estrela (1985), baseada em obra de Clarice Lispector, que deu à amadora Marcélia Cartaxo o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim. Suzana filmou também um livro de meu pai, Autran Dourado: Uma Vida em Segredo (2001, com a estreante Sabrina Greve, melhor atriz no Festival de Brasília). Nele, muito pouca música de fundo, às vezes apenas um Sakuhashi (flauta japonesa usada na meditação Zen) suave e distante, outras um absoluto silêncio, fora os poucos diálogos. Suzana é devotada budista e adepta da meditação oriental, o que explica sua concepção. Achava que a música, quando existisse, não poderia interferir no que suas imagens queriam transmitir. Lembrei-me do que pensava Beethoven: o som é prata, e o silêncio é ouro.