O
músico é um dos raros empregados que adquire e mantém seu próprio uniforme de
gala (o de orquestra e similares) e sua ferramenta de trabalho. Investe no instrumento
todas as suas economias, às vezes a poupança de uma vida. Tudo isso, diga-se de
passagem, por salários geralmente medíocres e poucas vezes compensadores. Somente
uns raros chegam ao topo fazendo fortuna, ao contrário do que levam a pensar os
frequentadores dessa praia tão pequena e restrita do chamado sucesso. Na música
popular, a piada é um certo “kit fama”: corrente de ouro, carro importado e loira
na cama. São aqueles convidados da Ilha de Caras e dos programas de auditório, que adotam o chamado “jabaculê”, espécie de “pixuleco” para que suas músicas
sejam executadas.
|O 'Ensaio', segundo Felini |
Prosseguindo,
a descrição deste personagem, seja ele regente,
instrumentista, cantor ou compositor medíocre ou de reconhecidos méritos ou
ainda, quem sabe, genial, só poderia ser complementada pelo pitoresco, o
exótico, o absurdo ou o simplesmente ridículo. Existe retrato mais cruel de uma
categoria profissional do que o burlesco e surreal que o do cineasta
Federico Felini, por ele criado em seu filme Ensaio de Orquestra? Nele, cada
instrumentista, exaltando suas próprias qualidades e a superioridade de seu
instrumento, desnuda suas neuroses mais íntimas. No final das contas, como
resultado de um embate que vem de séculos, no filme os músicos da orquestra acharam
por bem substituir o maestro por um enorme metrônomo para marcar o tempo.
Qualquer
um que tenha trabalhado em uma orquestra ou conheça bem a área deve saber que
quem inventou de colocar dezenas de músicos juntos, além de inovador, perpetrou
uma absoluta loucura. É muito artista junto! É tão estressante, nas grandes
orquestras, viver aquilo diariamente! Bem brasileiramente, alguém defenderia
uma espécie de aposentadoria especial para a categoria.
O
psiquiatra britânico Oliver James empreendeu uma pesquisa que sustenta a tese
de que toda obra de arte resulta de algum tipo de instabilidade mental. Os
resultados do trabalho foram exibidos pela BBC de Londres em um especial que
versava sobre o tipo de pessoa que se dedica à criação artística – o indivíduo
exótico, desajustado, melancólico e não raro depressivo. Retrato mais contundente
dessa faceta do artista está no livro Darkness Visible (no Brasil, Perto das
Trevas), do estadunidense William Styron, autor também de A Escolha de Sofia.
Styron
expõe ali sua própria experiência, uma relação promíscua na linha tênue entre a
criação e a psicopatia. Não surpreende ver que os artistas mais propensos ao
desequilíbrio são – talvez mais do que outros – pintores, compositores, músicos
e escritores, sendo os últimos, à sua imagem e semelhança, o objeto maior do livro, relato de seu calvário pessoal. Já o músico que o público vê encarna-se
de corpo e alma em uma performance que começa e termina a cada momento, a cada
fração de segundo. É um trabalho, em grupo ou não, solitário, suado, frequentemente
neurotizante e muito pouco compreendido. É uma missão e uma espécie de doença.
Um psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo, Táki Cordás, concorda
em parte com as conclusões de Oliver James. Ele observa, indo além, que, ultrapassados
certos limites para a melancolia que antes fertilizava, ela passa a comprometer
o processo criativo. Infelizmente, a divulgação pública desse perfil contribui
para o charme gauche que costuma envolver certos desvios dos padrões sociais
- às vezes, apenas oscilações de comportamento bem da natureza do artista. Cordás
observa que, apesar de alguns serem recorrentemente melancólicos, isolados e
mesmo depressivos, artistas produzem melhor quando libertos de suas crises, o
que leva a crer que aqueles estados anteriores são meros acidentes de percurso
– mas também contribuem, contraditoriamente, como férteis à gestação
criativa.
Com
essas teorias, é natural rever incontáveis causos sobre músicos. Qualquer
um que tenha convivido com um deles pode, com certeza, lembrar-se de inúmeras
estórias, seja sobre os músicos mais simples, daqueles que animam as modestas churrascarias
da Zona Leste paulistana ou dos subúrbios cariocas. Exceções são os “megastars”
da música pop internacional - os que pedem suíte presidencial pintada de azul,
caixas de água Pérrier e belos champanhes Moet & Chandon de série especial.
Fora aqueles que, como Michael Jackson, tinham entre suas exigências trenzinhos
de ferro e jogos de Pinball, fora hospedagem para seus cães Rottweiler nas
acomodações hoteleiras das suas excursões.
Liberace, deslumbrante |
É característica
frequente no músico o exotismo. O troféu do suprassumo do gênero, superando em
muito qualquer limite do kitsch, do ridículo e da cafonália, vai para o
pianista norte-americano Liberace, conhecido pelo seu toque inconfundível,
rebuscado de rococós de mau gosto e pleno de floreios inúteis, entre o pinguim
de geladeira e o candelabro de plástico no piano. Liberace tornou-se famoso por
suas excentricidades: piano de acrílico transparente, lustres de ouro, blusas
de seda com mangas bufantes, perucas, um monte de pulseiras, colares, anéis e muita
maquiagem. Poderosa.
Jackson em sua Disney particular |
Na
esteira do pianista Liberace, seu conterrâneo Michael Jackson (1958-2009),
sempre foi um tanto apegado ao exótico. Eram públicos os esforços do cantor
para adquirir tez branca, nariz de manequim e voz andrógina. Sua Disneyland particular
era frequentada por nove entre dez estrelas do show bizz. (Continua)
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