Così fan Tutte, encenação da Ópera Nacional de Bucareste |
Voltamos a falar de Wolfgang Amadeus
Mozart (1756-1791), mas desta vez por outro ângulo que não o do gênio brincalhão
e gozador. É uma outra vida dentro da vida, com final triste. Mozart amargou a
decadência imposta pela nobreza, que passou a retirar-lhe o valioso subsídio à sua
labuta. O comportamento do compositor, que às vezes afrontava os costumes da
época (como nas óperas Don Giovanni, então
por muitos vista como imoral, e Così Fan
Tutte – Assim Fazem Todas), fora a sua adesão à tanto quanto obscura
maçonaria local da época, passaram a incomodar os mecenas.
Com a doença - e depois a morte - de
Joseph II, a vida de Mozart entrou em parafuso. Em seus últimos anos, endividado,
gastava o que recebia. Passou a recorrer a um amigo e seu editor, Hoffmeister,
que lhe emprestava alguns trocos, mas adotou o lema ‘devo, não nego, pago
quando puder’. Hoffmeister disse-lhe que, se não saldasse a dívida, adeus empréstimos.
E pior: se não compusesse pecinhas fáceis e popularescas para vender rápido, não
mais editaria as músicas dele. Mozart não lhe poupou desaforos: preferiria
morrer de fome. Cada vez mais desbocado, adorava falar e escrever besteiras.
Mozart e Constanze, em lua de mel |
Já maduro, durante suas viagens
mandava cartas à amada Constanze repletas de toda sorte de maluquices, entre
declarações e juras de amor e saudade: ‘beijo-te 1.095.473.082 vezes’. Criava
nomes e expressões existentes apenas em suas caraminholas. Para ela, criava frases e apelidos entre infantis, curiosos e ridículos, como: do teu stu! Knaller-paller. Schnip-schnap-schnur. Schneppeperl-snail’
cujo sentido parecia residir no som das palavras. Elogiava raramente seus ‘escolhidos’,
e massacrava todos os incompetentes.
A corte de Mannheim |
Frustrado e meio que possesso de
raiva, escreveu ao pai que a orquestra de Mannheim era formada por pessoas
jovens e honestas, ‘e não por velhos bêbados’, como as demais. De
Leipzig, escreveu zombando da orquestra local, dizendo que era formada por
gente muito velha que tocava arrastando e não conseguia chegar no andamento desejado. Claro, aquele jovem homem tornou-se siderado pelo mito da criança e
adolescente prodígio e continuava ambicioso musicalmente, apesar da sombra da idade
se aproximando impiedosamente: já não era mais a criança ‘predileta dos deuses’.
Pasquale Anfossi |
A prolixidade do mito vienense já foi
objeto de inúmeros estudos, como o dos musicólogos italianos Enzo Amato e
Alberto Vitolo, que buscavam achar defeitos na obra dele, na falta de outra coisa
para fazerem. Argumentaram que trechos de seu compatriota Pasquale Anfossi, de
voos bem mais rasantes mas popular na Itália da época, aparecem nas óperas A
Flauta Mágica, Don Giovanni e As Bodas de Fígaro, além do Réquiem. Segundo eles,
Mozart utilizara mudanças de tempo, de harmonias e de orquestração, além de inversões
de trechos da música do italiano.
Como não me dediquei a pensar nisso,
restam-me as hipóteses: um muito improvável furto musical ou, o mais plausível,
simples consequência da prodigiosa memória do vienense, que captava e
assimilava com naturalidade tudo o que ouvia, dos pios de pássaros aos sons das ruas, trote de cavalos e, claro, melodias,
convivendo na cabeça dele sons musicais e natureza. Fico com a segunda
hipótese, da influência de que músico algum, em qualquer época, conseguiu
escapar, e penso inspirado no químico francês Lavoisier, contemporâneo de
Mozart: em música – assim como nas outras artes – nada se cria do nada, nada se
rejeita, e sem querer ou saber tudo se aproveita.
Lavoisier |
Muito doente, Mozart começou a compor
um Réquiem, música fúnebre. Trabalhava por insistência de um misterioso
freguês, sempre vestido de luto, que o atormentava com frequência. Transtornado
e provavelmente já confuso por alguma estranha doença, tomado por quase alucinações,
elucubrava que a obra teria sido encomendada para seu próprio funeral. Talvez
já perturbado pelo medo do fim, a fraqueza avançando, além de suspeitas infundadas
de envenenamento pelo compositor Antonio Salieri - na verdade um amigo e, por que
não, invejoso do prodígio. A ilação sobre o envenenamento, aliás, foi romanticamente
explorada no filme Amadeus, de Milos Forman, sobre texto de Peter Shaffer.
Monumento em homenagem - tardia |
Mozart morreu aos 35 anos de idade encerrando
sua incomparável carreira tão precocemente quanto a iniciou. Foi enterrado, conta-se
que na presença de uma ou duas pessoas e seu cão, que acompanhavam a charrete que
levava o féretro. Cabe o cruel dito popular: ‘morreu com a boca cheia de
formiga e um cachorro velho lambendo-lhe a cara’, retrato de um final desafortunado.
Somente dezessete anos depois a viúva Constanze, que à época do enterro estava
severamente adoentada, buscou visitar o túmulo do amado, ficando arrasada pois
não encontrara onde o corpo havia sido enterrado.
Reconstrução facial de Mozart |
Para completar, o crânio de Mozart teria
sido roubado - não para que se pesquisasse o que havia na cachola daquele gênio,
mas por motivo fútil: um idiota apropriou-se da peça, dando-a de presente ao
irmão de um anatomista de nome Hyrill. O crânio fora recuperado, muito se
especulou, mas em 2006 um exame de DNA refutou definitivamente a teoria. (E
como há teorias sobre a vida e a morte desse gênio! Autores bem qualificados tecem
diferentes ideias, de similares a divergentes ou... dissonantes). A alegria da
criança genial e prodigiosa descambou para a penúria e a desgraça, até que lhe
sobreviesse a morte. Restou viva sua grandiosa obra, uma contribuição de impossível
mensura para a humanidade, e que assim será até o final dos tempos.