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sábado, 21 de julho de 2018

O LADO OBSCURO DA VIDA E DA MORTE DE MOZART

Così fan Tutte, encenação da Ópera Nacional de Bucareste

Voltamos a falar de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), mas desta vez por outro ângulo que não o do gênio brincalhão e gozador. É uma outra vida dentro da vida, com final triste. Mozart amargou a decadência imposta pela nobreza, que passou a retirar-lhe o valioso subsídio à sua labuta. O comportamento do compositor, que às vezes afrontava os costumes da época (como nas óperas Don Giovanni, então por muitos vista como imoral, e Così Fan Tutte – Assim Fazem Todas), fora a sua adesão à tanto quanto obscura maçonaria local da época, passaram a incomodar os mecenas.
Com a doença - e depois a morte - de Joseph II, a vida de Mozart entrou em parafuso. Em seus últimos anos, endividado, gastava o que recebia. Passou a recorrer a um amigo e seu editor, Hoffmeister, que lhe emprestava alguns trocos, mas adotou o lema ‘devo, não nego, pago quando puder’. Hoffmeister disse-lhe que, se não saldasse a dívida, adeus empréstimos. E pior: se não compusesse pecinhas fáceis e popularescas para vender rápido, não mais editaria as músicas dele. Mozart não lhe poupou desaforos: preferiria morrer de fome. Cada vez mais desbocado, adorava falar e escrever besteiras.
Mozart e Constanze, em lua de mel
Já maduro, durante suas viagens mandava cartas à amada Constanze repletas de toda sorte de maluquices, entre declarações e juras de amor e saudade: ‘beijo-te 1.095.473.082 vezes’. Criava nomes e expressões existentes apenas em suas caraminholas. Para ela, criava frases e apelidos entre infantis, curiosos e ridículos, como: do teu stu! Knaller-paller. Schnip-schnap-schnur. Schneppeperl-snail’ cujo sentido parecia residir no som das palavras. Elogiava raramente seus ‘escolhidos’, e massacrava todos os incompetentes.
A corte de Mannheim
Frustrado e meio que possesso de raiva, escreveu ao pai que a orquestra de Mannheim era formada por pessoas jovens e honestas, ‘e não por velhos bêbados’, como as demais. De Leipzig, escreveu zombando da orquestra local, dizendo que era formada por gente muito velha que tocava arrastando e não conseguia chegar no andamento desejado. Claro, aquele jovem homem tornou-se siderado pelo mito da criança e adolescente prodígio e continuava ambicioso musicalmente, apesar da sombra da idade se aproximando impiedosamente: já não era mais a criança ‘predileta dos deuses’. 
Pasquale Anfossi
A prolixidade do mito vienense já foi objeto de inúmeros estudos, como o dos musicólogos italianos Enzo Amato e Alberto Vitolo, que buscavam achar defeitos na  obra dele, na falta de outra coisa para fazerem. Argumentaram que trechos de seu compatriota Pasquale Anfossi, de voos bem mais rasantes mas popular na Itália da época, aparecem nas óperas A Flauta Mágica, Don Giovanni e As Bodas de Fígaro, além do Réquiem. Segundo eles, Mozart utilizara mudanças de tempo, de harmonias e de orquestração, além de inversões de trechos da música do italiano.
Como não me dediquei a pensar nisso, restam-me as hipóteses: um muito improvável furto musical ou, o mais plausível, simples consequência da prodigiosa memória do vienense, que captava e assimilava com naturalidade tudo o que ouvia, dos pios de pássaros aos  sons das ruas, trote de cavalos e, claro, melodias, convivendo na cabeça dele sons musicais e natureza. Fico com a segunda hipótese, da influência de que músico algum, em qualquer época, conseguiu escapar, e penso inspirado no químico francês Lavoisier, contemporâneo de Mozart: em música – assim como nas outras artes – nada se cria do nada, nada se rejeita, e sem querer ou saber tudo se aproveita.
Lavoisier

Muito doente, Mozart começou a compor um Réquiem, música fúnebre. Trabalhava por insistência de um misterioso freguês, sempre vestido de luto, que o atormentava com frequência. Transtornado e provavelmente já confuso por alguma estranha doença, tomado por quase alucinações, elucubrava que a obra teria sido encomendada para seu próprio funeral. Talvez já perturbado pelo medo do fim, a fraqueza avançando, além de suspeitas infundadas de envenenamento pelo compositor Antonio Salieri - na verdade um amigo e, por que não, invejoso do prodígio. A ilação sobre o envenenamento, aliás, foi romanticamente explorada no filme Amadeus, de Milos Forman, sobre texto de Peter Shaffer.
Monumento em homenagem - tardia
Mozart morreu aos 35 anos de idade encerrando sua incomparável carreira tão precocemente quanto a iniciou. Foi enterrado, conta-se que na presença de uma ou duas pessoas e seu cão, que acompanhavam a charrete que levava o féretro. Cabe o cruel dito popular: ‘morreu com a boca cheia de formiga e um cachorro velho lambendo-lhe a cara’, retrato de um final desafortunado. Somente dezessete anos depois a viúva Constanze, que à época do enterro estava severamente adoentada, buscou visitar o túmulo do amado, ficando arrasada pois não encontrara onde o corpo havia sido enterrado.
Reconstrução facial de Mozart
Para completar, o crânio de Mozart teria sido roubado - não para que se pesquisasse o que havia na cachola daquele gênio, mas por motivo fútil: um idiota apropriou-se da peça, dando-a de presente ao irmão de um anatomista de nome Hyrill. O crânio fora recuperado, muito se especulou, mas em 2006 um exame de DNA refutou definitivamente a teoria. (E como há teorias sobre a vida e a morte desse gênio! Autores bem qualificados tecem diferentes ideias, de similares a divergentes ou... dissonantes). A alegria da criança genial e prodigiosa descambou para a penúria e a desgraça, até que lhe sobreviesse a morte. Restou viva sua grandiosa obra, uma contribuição de impossível mensura para a humanidade, e que assim será até o final dos tempos.


sábado, 14 de julho de 2018

O PRODÍGIO E A PRECOCIDADE NA ARTE

PERIGOS QUE SEDUZEM 
CRIANÇAS E PAIS


Já pensei, falei e escrevi sobre Mozart (1756-1791) muitas vezes. E será difícil, sempre, pensar o futuro da música sem nos lembrarmos do prodígio de Salzburg, menino travesso como qualquer outro, embora quase sobrenaturalmente bem-dotado. Já vi ilações sobre a data de registro de nascimento feita ‘a posteriori’, forçando para baixo a idade do menino, mas isso, diria meu pai, é coisa de especula. Poderiam as mãos habilidosas de papai Leopold ter colaborado nas composições precoces de monumental talento? Talvez um pouco, é coisa que não saberemos. Nada há que levante dúvidas quanto à predestinação daquela criança. Não dá para bater de frente com o torrencial de informações sobre o pequeno Wolfgang, precoce como raros, se não o topo da lista.
O tricordiano Godofredo Rangel
[Meu pai, o escritor Autran Dourado, contava sobre os conselhos que, ainda adolescente, recebeu do autor mineiro Godofredo Rangel após ler um dos contos dele, a pedido: ainda bem que você não é precoce. Estude, leia, leia. Orientou-o a mergulhar nos grandes clássicos, bebendo na rica fonte dos mestres da literatura. Godofredo achava que o canto da sereia da precocidade poderia atrapalhar grandes talentos que deveriam se desenvolver per ardua, e não apenas per talentum. A trilha construída por meu pai foi lembrada por um crítico como a de uma ‘formiguinha da literatura’, da labuta diária – talvez aludindo à fabula atribuída a Esopo e narrada por La Fontaine, sobre esse animalzinho e a cigarra.]

É certo que, no caso de Mozart, cabem aquelas palavras atribuídas (embora não seja comprovadamente o real autor) a Abraham Lincoln: pode-se enganar a todos por algum tempo; é possível enganar alguns por todo o tempo, mas ninguém pode enganar a todos o tempo todo. Não enganou Mozart, perenizado como gênio inconteste, precocidade a toda prova.
O que se sabe é que o menino, aos tenros quatro anos, já tocava muito bem o cravo, memorizando peças com facilidade. Aos seis, escreveu pequenos minuetti e um allegro. Aos sete, já teria tido publicadas algumas pequenas peças e aos treze já enveredava por um dos mais complexos gêneros musicais, a ópera. Tendo ouvido um Miserere que era sempre cantado na Capela Sistina, o adolescente, chegando em casa, sentou-se ao cravo executou-o de memória, com perfeição.
Mozart: finalizando Don Giovanni
Ciente de sua genialidade mas nunca tomado pela soberba, Mozart não sucumbiu à clássica estupidez de muitos gênios. Um dia, foi procurado por um jovem compositor iniciante que lhe pediu orientação sobre como escrever uma sinfonia. Mozart, já consagrado na Europa, disse-lhe para escrever primeiro coisas simples como baladas. Surpreso, o aspirante o questionou, dizendo que ele, Mozart, havia composto sinfonias aos dez anos de idade. E ouviu como resposta que, diferentemente do curioso, não perguntara a outros como fazê-lo.
Linz, a antiga beleza arquitetônica
O compositor produzia prolixamente, encabularia até copistas de seu tempo (hoje há softwares que fazem cópias no lugar dessa classe de profissionais infelizmente em vias de extinção). Bom exemplo dessa fertilidade exuberante é que, já adulto, de retorno à Áustria, em 1783, Mozart escreveu ao pai dizendo que não tinha sinfonia alguma pronta na bagagem, mas que estava confirmada uma apresentação em Linz. Sem mais problemas, o concerto foi realizado na data prevista. O compositor havia chegado na cidade apenas quatro dias antes, em trinta de outubro, e foi após esse ínfimo prazo que viu executada com sucesso sua nova sinfonia, que levou o subtítulo Linz, de número 36.
Encenação de Don Giovanni,: Metropolitan Opera de NY
Na véspera da estreia da magnífica Don Giovanni, Mozart ainda trabalhava na abertura da peça, a ser ensaiada e executada no dia seguinte. A ópera obteve grande sucesso. As suas sinfonias de número 39 a 41, aliás entre as mais belas, três sinfonias inteiras, friso, já eram dotadas da boa arquitetura de um compositor maduro. E foram compostas em menos de dois meses. Se há estudiosos que apontam no conjunto de obras de Mozart nada menos do que cinquenta e duas sinfonias, achando um trecho do que seria uma aqui, talvez um movimento acolá, no frigir dos ovos restam-nos 41 completas, sendo a última a elaborada Jupiter, conhecida pelo número K. 551, na catalogação de Köchel, adotada no mundo inteiro. Mas 41 sinfonias são parte de um caudaloso repertório, na juventude de seus 35 anos , e já seriam suficientes para justificar uma longa vida de trabalho de qualquer bom compositor.
Para fazer um contraponto entre a precocidade e  a ourivesaria, pensemos em Brahms (1833-1897), que, na contramão de Mozart, teria sido um bom exemplo para Godofredo Rangel dar ao meu pai, a fim de que ele não se deixasse seduzir pelo que chamei, no início deste texto, de ‘canto da sereia’ do prodígio. Ainda passeando entre os gênios – o prodígio e o elaborado, da complexidade, da reflexão imensa -, lembro-me sempre de Brahms (1833-1897) e sua grandiosa Sinfonia nº1, que já foi chamada por alguns de 10ª de Beethoven, embora pessoalmente ache que essa obra pouco tem a ver com 9ª do outro. O primeiro movimento teve uma versão no início dos anos 1860, e o esmero e a tapeçaria de vozes, solos, harmonia, enfim, a complexidade da obra, levaram longos, longos anos para serem magistralmente concluídos à perfeição. Cada artista deve saber seu lugar, sua época e seu ritmo, que lhe mostrarão o caminho a seguir. Deve-se estimular crianças desde cedo, claro, mas com cautela para não ver embotar algum talento que não logre, por excesso, ascender ao topo tão cedo quanto parece atrair o canto da sereia. Há um infindável número de grandes artistas e mesmo gênios que amadureceram a seu tempo, sem terem sido prodígios.

sábado, 7 de julho de 2018

DO TESTAMENTO DE HÄNDEL A VON KARAJAN


E OS DEGRAUS PARA A PERFEIÇÃO

Frontispício autográfico do oratório Messias
Handel, Händel ou Haendel? Nós já falamos aqui das brigas que aprontavam Bach e Händel, cada um de seu lado. Mas vejamos o último não como pessoa, sim como brilhante e prolífico compositor, de quem se destaca, entre incontáveis obras, o monumental Messias. Foi músico contra a vontade do pai, mas o Príncipe da Saxônia o fez aceita-lo assim, diante do enorme talento. O jovem Händel mudou-se para a Inglaterra, onde por questão de idioma, por seu interesse, retirou o trema de seu sobrenome. Alguns adotam literalmente a pronúncia correta, com a contração das vogais ‘a’ e ‘e’ por extenso: Haendel. Eu, particularmente, opto sempre pela grafia original, com o saudoso trema sobre o ‘a’.
O testamento: Händel teria pedido ao Criador, já no leito derradeiro, que o levasse em uma sexta-feira santa. E assim cumpriu o Senhor: morreu em uma sexta da Paixão e foi enterrado como inglês honorário na Abadia de Westminster, com direito a pomposo funeral. Em seu testamento, de 1750, deixou certa quantia em dinheiro para o criado Peter. Já biblioteca, instrumentos e grande parte de sua poupança ficaram para Christopher Smith. Para o primo Christian e a prima Johanna Friderika, sobrinha, e alguns amigos, deixou quantias que variavam de cem a duzentas libras. Teve certo conforto em vida, porém bastante menos do que merecia o seu patrimônio musical. (Aqui cabe uma dúvida levantada pelo insuspeito historiador Hans Neunzig: por que Händel teria premiado Christopher com altas benesses especiais na divisão? Por que não há registro de mulheres na vida de Händel? A pergunta pode soar ao leitor ‘moderno’, cheio de preconceitos,  como uma ilação e convida a possíveis visões machistas, quando não homofóbicas).
Karajan. (Foto: The Guardian)
O mito Karajan: Herbert von Karajan foi um dos mais famosos regentes de todos os tempos. Desfrutou das mordomias que Händel e outros não tiveram, e à frente da Filarmônica de Berlim exerceu como poucos um poder quase ilimitado. Marca registrada, regia de olhos cerrados, em profunda introspecção. Em uma gravação para TV, pediu aos técnicos que o focalizassem de olhos fechados, parte de seu mise-en-scène, a maior parte do tempo. Sentado, pernas cruzadas, teria comentado que achava simplesmente enfadonho ver músicos tocarem.
Toscanini e Karajan
Disputa no Céu: Isto evoca mais anedotas: encontraram-se no Céu Toscanini, Furtwängler e Karajan, que tentavam, a todo custo, decidir no berro quem teria sido o regente número um. Furtwängler disse que seu domínio técnico e o amplo conhecimento da cultura europeia o fizeram o melhor de todos. Ao que Toscanini retrucou que não, por causa de sua precisão rítmica,  fidelidade ao autor e, entre outras virtudes, porque Deus o havia feito assim. Karajan, indignado, deu um salto a esbravejou ‘eu não fiz ninguém não’! Por essas e outras, diz a sabedoria das anedotas, é que falam que a diferença entre Deus e um regente é que Deus não fica pensando que é um maestro!
Músicos e regentes descem ao Inferno: Há também a do músico que chegou ao Inferno para cumprir sua pena, sem direito a infindáveis recursos, embargos e instâncias de todos os níveis. Percebeu que havia vários enormes caldeirões sobre fogo intenso, onde eram cozinhados músicos de todas as especialidades. Os caldeirões tinham à sua frente capetas-fiscais, para evitar que algum esperto saltasse fora da água escaldante: usavam seus tridentes para que os recalcitrantes retornassem ao fundo. Porém, o noviço percebeu que havia um caldeirão sem capeta para fiscalizar, mas apesar disso algumas cabeças subiam e logo afundavam, misteriosamente. O novato indagou o porquê. O capeta-chefe, pernas sobre um banquinho e palitando os dentes, respondeu-lhe que aquele caldeirão era o dos maestros, ele nem se preocupava. E explicou que cada vez que um deles tentava subir, outros puxavam-no por baixo. Claro, uma pilhéria sobre histórica disputa entre os regentes. Se não há orquestra para todos os que querem ser músicos, existem senão raríssimas oportunidades para bons regentes, cálculo por demais óbvio.
Os degraus do Paraíso: Bernard Haiting, por décadas regente da famosa Concertgebouw de Amsterdam, conta que um dia, convidado, Karajan subira as imponentes escadas de onde se vislumbra o augusto órgão de tubos, rosto erguido e nariz empinado como um monarca dirigindo-se ao seu altíssimo trono, deixou escapar que aquelas escadas foram feitas para ele. Seriam elas um gradus ad parnassum (degraus para o paraíso, a perfeição)? Não se sabe se esse folclore todo é realmente verdade, mas que é um quadro da profissão, lá isso é. Diz um amigo linguista que, entre a verdade oficial e a lenda, às vezes é melhor ficarmos com a segunda.
George Philipp Telemann
Telemann e as redes sociais: Retornando aos velhos tempos, seu contemporâneo George Philipp Telemann (1681-1767), prolífico como boa parte de seus pares, escreveu quase uma cantata para cada domingo, setenta e oito ofícios, quarenta óperas, 44 paixões, concertos, sonatas e música de câmara, entre tantas. Amparados pelo Poder Público ou Igrejas, sobrava tempo para que os compositores se dedicassem com exclusividade à sua nobre arte – além de comer, beber, amar e nada mais. E com um detalhe: sem smartphones, redes sociais, trânsito e outros males de hoje a atrasá-los.
O pequeno Mozart: apresentando-se em Versailles
O menino mágico: Um pouco adiante no tempo, encontramos um outro grande compositor cujo volume de produção alcançou, em sua boa parte, insuperável qualidade: Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) talvez o maior talento da história. Desde cedo, papai Leopold se aproveitava dos extraordinários dotes de seu moleque para explorá-los e faturar na Europa, fazendo crescer-lhe a fama no piano e no violino. Chamavam-no “o pequeno mágico”, consumação do músico extremamente precoce, exótico, indomável e de habilidades tidas como divinas, por isso mesmo conhecido também como “o predileto dos deuses”.