CRIANÇAS E PAIS
Já pensei, falei e escrevi sobre
Mozart (1756-1791) muitas vezes. E será difícil, sempre, pensar o futuro da
música sem nos lembrarmos do prodígio de Salzburg, menino travesso como
qualquer outro, embora quase sobrenaturalmente bem-dotado. Já vi ilações sobre a
data de registro de nascimento feita ‘a posteriori’, forçando para baixo a
idade do menino, mas isso, diria meu pai, é coisa de especula. Poderiam as mãos
habilidosas de papai Leopold ter colaborado nas composições precoces de
monumental talento? Talvez um pouco, é coisa que não saberemos. Nada há que levante dúvidas quanto à predestinação daquela criança. Não dá para bater de frente com o torrencial
de informações sobre o pequeno Wolfgang, precoce como raros, se não o topo da
lista.
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O tricordiano Godofredo Rangel |
[Meu pai, o escritor Autran Dourado,
contava sobre os conselhos que, ainda adolescente, recebeu do autor mineiro
Godofredo Rangel após ler um dos contos dele, a pedido: ainda bem que você não é precoce.
Estude, leia, leia. Orientou-o a mergulhar nos grandes clássicos, bebendo na
rica fonte dos mestres da literatura. Godofredo achava que o canto da sereia da
precocidade poderia atrapalhar grandes talentos que deveriam se desenvolver per ardua, e não apenas per talentum. A trilha construída por meu
pai foi lembrada por um crítico como a de uma ‘formiguinha da literatura’, da
labuta diária – talvez aludindo à fabula atribuída a Esopo e narrada por La
Fontaine, sobre esse animalzinho e a cigarra.]
É certo que, no caso de Mozart, cabem
aquelas palavras atribuídas (embora não seja comprovadamente o real autor) a Abraham
Lincoln: pode-se enganar a todos por algum tempo; é possível enganar alguns por
todo o tempo, mas ninguém pode enganar a todos o tempo todo. Não enganou Mozart,
perenizado como gênio inconteste, precocidade a toda prova.
O que se sabe é que o menino, aos tenros
quatro anos, já tocava muito bem o cravo, memorizando peças com facilidade. Aos
seis, escreveu pequenos minuetti e um
allegro. Aos sete, já teria tido
publicadas algumas pequenas peças e aos treze já enveredava por um dos mais complexos
gêneros musicais, a ópera. Tendo ouvido um Miserere que era sempre cantado na Capela Sistina, o adolescente, chegando em casa, sentou-se ao
cravo executou-o de memória, com perfeição.
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Mozart: finalizando Don Giovanni |
Ciente de sua genialidade mas nunca
tomado pela soberba, Mozart não sucumbiu à clássica estupidez de muitos gênios. Um dia,
foi procurado por um jovem compositor iniciante que lhe pediu orientação sobre
como escrever uma sinfonia. Mozart, já consagrado na Europa, disse-lhe para escrever
primeiro coisas simples como baladas. Surpreso, o aspirante o questionou,
dizendo que ele, Mozart, havia composto sinfonias aos dez anos de idade. E ouviu
como resposta que, diferentemente do curioso, não perguntara a outros como
fazê-lo.
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Linz, a antiga beleza arquitetônica |
O compositor produzia prolixamente,
encabularia até copistas de seu tempo (hoje há softwares que fazem cópias no lugar dessa
classe de profissionais infelizmente em vias de extinção). Bom exemplo dessa fertilidade
exuberante é que, já adulto, de retorno à Áustria, em 1783, Mozart escreveu ao
pai dizendo que não tinha sinfonia alguma pronta na bagagem, mas que estava
confirmada uma apresentação em Linz. Sem mais problemas, o concerto foi
realizado na data prevista. O compositor havia chegado na cidade apenas quatro
dias antes, em trinta de outubro, e foi após esse ínfimo prazo que viu executada
com sucesso sua nova sinfonia, que levou o subtítulo Linz, de número 36.
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Encenação de Don Giovanni,: Metropolitan Opera de NY |
Na véspera da estreia da magnífica
Don Giovanni, Mozart ainda trabalhava na abertura da peça, a ser ensaiada e
executada no dia seguinte. A ópera obteve grande sucesso. As suas sinfonias de número
39 a 41, aliás entre as mais belas, três sinfonias inteiras, friso, já eram dotadas
da boa arquitetura de um compositor maduro. E foram compostas em menos de dois
meses. Se há estudiosos que apontam no conjunto de obras de Mozart nada menos
do que cinquenta e duas sinfonias, achando um trecho do que seria uma aqui, talvez um
movimento acolá, no frigir dos ovos restam-nos 41 completas, sendo a última a elaborada
Jupiter, conhecida pelo número K. 551, na catalogação de Köchel, adotada no
mundo inteiro. Mas 41 sinfonias são parte de um caudaloso repertório, na juventude de seus 35 anos , e já seriam suficientes para justificar uma longa vida de trabalho
de qualquer bom compositor.
Para fazer um contraponto entre a precocidade
e a ourivesaria, pensemos em Brahms
(1833-1897), que, na contramão de Mozart, teria sido um bom exemplo para
Godofredo Rangel dar ao meu pai, a fim de que ele não se deixasse seduzir pelo que
chamei, no início deste texto, de ‘canto da sereia’ do prodígio. Ainda
passeando entre os gênios – o prodígio e o elaborado, da complexidade, da
reflexão imensa -, lembro-me sempre de Brahms (1833-1897) e sua grandiosa
Sinfonia nº1, que já foi chamada por alguns de 10ª de Beethoven, embora pessoalmente ache que
essa obra pouco tem a ver com 9ª do outro. O primeiro movimento teve uma
versão no início dos anos 1860, e o esmero e a tapeçaria de vozes, solos,
harmonia, enfim, a complexidade da obra, levaram longos, longos anos para
serem magistralmente concluídos à perfeição. Cada artista deve saber seu lugar, sua época e
seu ritmo, que lhe mostrarão o caminho a seguir. Deve-se estimular crianças desde
cedo, claro, mas com cautela para não ver embotar algum talento que não logre, por excesso, ascender ao topo tão cedo quanto parece atrair o canto da sereia. Há um infindável
número de grandes artistas e mesmo gênios que amadureceram a seu tempo, sem terem
sido prodígios.
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