Da vida
do húngaro Franz Liszt (1811-1886), farta em sortilégios de todos os tipos, da infância
até cruzar rumos com Wagner, poderia ser elaborada uma enorme lista de fatos e
causos. Aos que se surpreendem com o marketing musical da vida do compositor,
como as moçoilas da plateia afagadas com uns trocos para se emocionarem nos
recitais, é fato que nada mudou nos dias mais recentes. Eu mesmo testemunhei,
no início da década de 1970, participando em uma gravação do programa Som Livre
Exportação, da Globo, o diretor Walter Lacet acomodar meninas junto ao piano do
ainda pouco conhecido Ivan Lins. Para fazer jus às gorjetas, elas tinham de
fazer caras e bocas, quiçá chorar. Os Rolling Stones dão um ‘por fora’ para
atitudes extravagantes de nudes e topless que invadem o palco, e até grupos
contratados que provocam brigas, como a que culminou com a tragédia de
Altamond, em 1969, pelos Hell’s Angels: uma morte cruel.
O Czar Nicolau |
A
vida de Liszt era cheia de coisas absurdas e exóticas, naturais ao gênio do
pianista e regente. Uma vez, pau para toda obra que era, ele se apresentava
para o Czar Nicolau, dado a festanças mas não versado nas sutilezas da boa música.
Nicolau conversava animadamente com seus convivas até que Liszt, cada vez mais
irritado, parou e simplesmente fechou o teclado do piano. O Czar demorou um
pouco para perceber que a música havia sumido e, virando-se para Liszt,
perguntou-lhe por que parara. Ouviu como resposta que quando um Imperador fala
todos ficam em silêncio.
Condessa Marie D'Agoult |
Em
outra ocasião, Liszt tocava ao piano a Ave-Maria de Schubert para a princesa,
que se pôs a tossir já logo no segundo compasso. O compositor aguentou com
discrição até lá pelas tantas, quando resolveu interromper o recital. Prova da
pouca educação da nobreza da época, a princesa desandou a gargalhar, achando
tudo engraçado. Liszt, por sua vez, abriu um vinho e desandou a beber. Do lado namorador,
ressaltam-se duas grandes paixões: a aluna Caroline e um longo affair com a
condessa Marie D’Agoult. Fugiu com a primeira, correndo do marido dela, e fez o
mesmo, dez anos depois, com D’Agoult. Mesmo à distância de Caroline, Liszt
cedeu às fortes convicções religiosas da moça, até resolver-se pelo sacerdócio
– tarde demais, dada a vida pregressa do músico, na mais pura gandaia.
Liszt e a filha, já Cosima Wagner |
Em
1835 ele se tornou pai de Cosima, seu segundo rebento, nascida na Itália. Como
que prevendo os rumos que a música compartilharia com os de sua família, o
destino fez com que Cosima se casasse com ninguém menos do que Richard Wagner
(1813-1883), o grande nome da ópera. E essa ligação musical e familiar era tão
forte que Liszt passou a conduzir as obras de seu genro com grande frequência.
Em 1886, doente, padeceu por ter sido impedido, por falta de condições de saúde,
de reger a estreia da histórica Tristão e Isolda. E foi a partir daí que Liszt,
autor de obras virtuosísticas para o piano e também de grandes poemas
sinfônicos como Fausto, Prometeu e Hamlet, viu seu genro chegar à criação de Tristão,
a grande reviravolta na música ocidental, divisor das tendências entre os
seguidores de Brahms e os da nova era, a dos wagnerianos.
Wagner (à esquerda) e Liszt, ao piano |
Mas
Liszt não pôde viver a grande revolução de Wagner, que abriria as portas para tudo
o que viria a partir dele, no final do século 19 e já entrado o 20: morreu em
1886, entregue aos braços de sua filha Cosima, em Bayreuth, onde se realizam até
hoje os grandes festivais de óperas do alemão. Wagner assumiu a liderança do
cenário musical e, adepto da chamada Obra de Arte Total, compôs Os Mestres
Cantores de Nürnberg, cuja apresentação completa leva quase cinco horas e meia.
(Mas longe de ostentar o recorde, alcançado pela sinfonia ‘Victory at Sea’, do
americano Richard Rodgers, com arranjos de Russel Bennett para a NBC de NY,
cuja duração é de aproximadas treze longas horas).
O Judaísmo na Música |
Ironias
da vida, Wagner cedo havia sido desenganado à frente de seus pais pelos
professores Numann, de piano, e Robert Sitt, violino, que informaram aos responsáveis
que Wagner era inteligente, poderia fazer outras coisas e abraçar qualquer
profissão, mas nunca a de músico (decepção não rara na infância e adolescência
de inúmeros grandes talentos). Não podiam prever que o menino haveria de ser o
grande marco da história da ópera e o revolucionário musical que transformou o século.
Mais ainda, quase tudo o que sucederia sua obra traria vestígios de seu
talento. Wagner ainda foi um literato e crítico de mão cheia, à parte obras de
cunho antissemita e panfletário como Das
Judentum in der Musik (O Judaísmo na Música) e suas perseguições a compositores
como Felix Mendelssohn, judeu mais tarde convertido ao cristianismo.
Wagner e Liszt, em ilustração |
Wagner,
parada final da enorme lista do sogro Liszt em seus anos derradeiros, merece um
artigo à parte, após os caminhos cruzados entre os dois na música e na vida, tendo
Cosima, amada do alemão, como ponto de união desse abraço musical, marco indelével
da história de nossa arte e civilização.
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