AS MUSAS
DA MPB DO PASSADO - II
Billy Blanco |
No artigo anterior, abordamos o
repertório da MPB dedicado às musas, às mulheres inspiradoras: casos
platônicos, flertes, amores ‘a prima vista’, namoradas, esposas ou amantes. Passeamos
desde os idos de 1901, com Yara (Rasga Coração) até Sebastiana, de 1952. Dos
amores cantados já vistos, vamos agora para 1954 com Tereza da Praia, do Tom
Jobim e o paraense Billy Blanco, arquiteto de formação, autor também da
divertida Piston de Gafieira.
Praia do Leblon |
Tereza da Praia gerou uma pequena
dúvida entre os fãs, pois a mulher de Jobim também se chamava Tereza e a letra,
está claro, não seria para ela (quem sabe se a dedicada era alguma ‘garota do
Leblon’?) Divertida é uma brincadeira sobre uma rixa entre Dick Farney e Lúcio
Alves: “Lúcio, arranjei novo amor no Leblon / que corpo bonito / que pele
morena”, versos que continuaram com declarações de fantasia entre Dick e Alves “ -
é a minha Teresa da Praia / - se ele é tua é
minha também”, para juntos concluírem que “Teresa da praia / não é de ninguém”.
Klecius Caldas (IMMuB) |
E veio “Maria Escandalosa”, de 1955, marcha
carnavalesca de Klecius Caldas e Armando Cavalcânti, mulher que seria hoje uma ‘piriguete’:
“Maria Escandalosa / desde criança / sempre deu alteração / na escola / não
dava bola / só aprendia / o que não era lição”, para concluir de forma ousada,
para a época – “é muito prosa / é mentirosa / mas é gostosa”. As marchinhas
carnavalescas, dado o espírito voluptuoso da festa pagã, eram mais apimentadas
do que as músicas do resto do ano.
Cauby, a grande estrela de 'Conceição' |
Há um samba-canção que marcou época na
MPB e foi o maior sucesso de 1956: Conceição, de Jair Amorim e Dunga, ‘estouro’
nas paradas e repertório de 9 entre 10 estrelas e sucesso imortal de Cauby Peixoto. Trata-se da história de uma
mulher que não se conformava em viver na pobreza: “Conceição / (...) vivia no
morro a sonhar / com coisas que o morro não tem”. Pois não é que a musa subiu
de vida, mas a ascensão social terminou em um tombo infeliz para ela? “ E agora
daria um milhão / para ser outra vez Conceição”. No mesmo ano (na verdade,
composta em 1953), também causou frisson a Iracema, de Adoniran Barbosa, uma
dor de cotovelo profunda: “...Iracema / meu grande amor foi embora / chorei, eu
chorei de dor porque / Iracema / meu grande amor foi você”.
Jobim e Dindi |
Saltemos para 1959, com Dindi, de Tom
Jobim e Aluízio de Oliveira, um samba-canção que rodou o mundo, gravado mais de
uma centena de vezes (incluindo Ella Fitzgerald e Sinatra) e que teve seu modesto
début com Sylvia Telles. Tom inspirou-se no riacho de uma fazenda - que tem
esse nome, ‘Dirindi’, ou Dindi - atrás de seu sítio próximo a Petrópolis (RJ). Sabe-se
lá se imaginou um idílio com misteriosa ninfa dos bosques petropolitanos. “Ah,
Dindi / se soubesse do bem que eu te quero / o mundo seria, Dindi, tudo, Dindi,
lindo, Dindi”.
O jovem Carlos Lyra |
O anonimato de Maria Ninguém, samba
de Carlos Lyra (também de 59), cativa. (Ele, também o autor da mais bela declaração
de amor da bossa-nova, Minha Namorada). É um canto à mulher misteriosa, difícil
de conquistar: “Maria Ninguém / é um dom que muito homem não tem / haja visto
quanta gente / que chama Maria / e Maria não vem”. Musas que ninguém sabe quem
foram, como Kalú, Tereza da Praia, Dindi e Maria Ninguém são moldura para
qualquer mulher com que se possa sonhar.
Passados a era JK, a renúncia de
Jânio e o famoso show que tornou a bossa-nova um ritmo universal via concerto
no Carnegie Hall (a nata do jazz presente), veio o golpe de 1964. As letras de
Chico Buarque tornaram-se mais intimistas e ricas em poesia. Um bom exemplo é A
Rita (1966), ainda com o toque mais conservador, mas de uma inteligência extraordinária:
“A Rita levou meu sorriso / no sorriso dela / meu assunto”. E prossegue, de jeito
literato: “...levou seu retrato, seu trapo, seu prato / (...) uma imagem de São
Francisco / e um bom disco de Noel”. Levaram
tudo do poeta, e há quem diga que Chico se referia à ditadura: Rita, suas
coisas, a imagem de São Francisco e o bolachão do Noel Rosa.
No mesmo ano, o artista plástico
Rubens Guerchman (falecido em 2008) pintou sobre um espelho A Bela Lindonéia,
ou Gioconda do Subúrbio. Rosto deformado, a boca meio que repuxada e o olho
esquerdo arroxeado, cara de quem teria sido espancada. Em 1968, ‘o ano que não
terminou’ - com o aperto geral do nó do cinquentenário AI-5 -, surge outra Lindonéia,
esta de Caetano, um bom exemplo do duplo sentido, das imagens ocultas a que
passaram a ser obrigados os artistas, sob os trancos dos coturnos e à tesoura
da censura: “Despedaçados / atropelados
/ cachorros mortos nas ruas / policiais vigiando / (...) Lindonéia desaparecida
/ a solidão vai me matar de dor”. Eram tempos difíceis os das Lindonéias de
Guerchman e Caetano!
Madalena, de 1970, é um ritmo
balançado de Ivan Lins, então egresso do movimento universitário de música. A letra
muito bem casada com a música é de Ronaldo Monteiro de Souza, e o título,
fictício, foi inventado por precaução - a musa real, Vera Regina, era par de
Ronaldo, mas o nome ‘não dava samba’. Elis Regina resolve gravá-la e a emplaca
definitivamente em seu repertório, com enorme sucesso. Quem não se lembra da
poesia, mais uma dor de cotovelo escancarada: “Ê Madalena / o meu peito
percebeu / que o mar é uma gota / comparado ao pranto meu”. A fase de universitários
como Ivan Lins foi profícua e enriquecedora. A MPB ganhou com jovens cultos e estudados.
(Cont.)
[ Título: ‘Ó
musas, ó altos gênios, agora me ajudem’ – Dante: Divina Comédia. Inferno, Canto
II]
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