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sábado, 29 de junho de 2019

BARDOS, POETAS, SERESTEIROS, MENESTRÉIS E TROVADORES


Trovar, segundo o Houaiss, é verbo que vem do provençal, e significa compor versos, provavelmente do latim vulgar tropare, fazer comparações. Para Francisco Fernandes (Dicionário de Verbos e Regimes, 1940), trovar seria cantar trovas, e trovar de repente, bem do jeito que soa, é falar sem refletir: “Não trove de repente, afirme a vista!” (Do terrível Mefistófoles, no Fausto de Goethe). Trova seria uma obra poética acompanhada de música. Mais nos dias de hoje do que na Idade Média, quadrinha seria uma espécie de trova, estrofe de quatro versos, geralmente heptassílabos, versos de sete sílabas. O grande poeta lusitano Fernando Pessoa ilustrou: “a trova é o vaso de flores que o povo põe à janela de sua alma”.
Mário  Quintana (Instituto Moreira Sales)
O trovador paulista Pedro Ornellas (1951) escreve seus versos com facilidade e inteligência: “O acerto, sim, amedronta / mas creio que estamos quites: / para os meus erros sem  conta / Deus tem perdão sem limites”. O poeta Mário Quintana sabia usá-la com simplicidade: “Coração que bate-bate / antes deixe de bater! / Só num relógio é que as horas / vão passando sem sofrer”. Geralmente trazendo mensagens de sabedoria, as trovas são parte da cultura popular, e frequentemente anônimas: “O tal ditado é um conselho / não te mostres desolado / há sempre um chinelo velho / pra um pé doente e cansado”. Ou de troveiros conhecidos, como Débora de Castro: “Vão troteando, galopeiras / as trovas pelos caminhos; / singram águas pantaneiras / ganham asas, passarinhos”.
Zé Geraldo
Chico Buarque, em O Que Será, fez um quadro das assombrações da ditadura, entre ‘profetas embriagados’ e ‘romaria de mutilados’: “O que será, que será / que andam suspirando pelas alcovas / que andam sussurrando em versos e trovas”, murmúrios para dizer à boca miúda o que não poderia ser dito por medo. O mineiro José Geraldo cantou suas trovas em um rock rural: “Teus olhos de brilho rouco / a tépida voz denuncia / prendas pousadas de pouco / no arco da porta de um dia” (1986).
Se temos Chico, em sua fase mais arrojada, e Zé Geraldo, rock-trovador urbano, tivemos também o ultrarromântico Altemar Dutra (O Trovador das Américas) com seu grande sucesso, na verdade modinha carioca criada por mais outro mineiro: ”Sonhei que eu era um dia um trovador / dos velhos tempos que não voltam mais /  cantava assim a toda hora / as mais lindas modinhas / do meu Rio de outrora” (O Trovador). Dutra fazia tanto sucesso na comunidade latina dos EUA que para lá terminou se mudando, falecendo aos 43 anos, em Nova Iorque.
Já na Aquarela do Brasil, quase um hino pátrio, Ary Barroso canta o eterno apaixonado: “...deixa / cantar de novo o trovador / à merencória luz da lua / toda a canção do meu amor”, seguindo o espírito, mas não a forma padrão. Vinicius de Moraes também revela, em Modinha, o poeta apaixonado: “mulher, abre a tua janela / aqui vela o teu trovador / que em pranto soluça / os seus últimos cantos / ao nosso amor”. O “Poetinha” carioca insiste nessa comunhão homem apaixonado-trovador, na letra da bela parceria com Carlos Lyra (1962): “Sabe você o que é o amor?”, respondendo ele mesmo pelo seu interlocutor: “não sabe, eu sei”, e insiste nas perguntas: “sabe o que é um trovador?”, dando a si mesmo outra vez a resposta: “não sabe, eu sei”. O trovador, independentemente da forma, reaparece como personagem romântico, sempre a cantar e encantar sua enamorada.
Trovadores medievais
Os primeiros registros datam do final do século 11. O gênero chega à Itália e Espanha e logo se espalha por toda a Europa. Dante definiu a prática como ‘ficção retórica, musical e poética’. Logo, criou-se uma distinção entre os criadores e os que simplesmente se apresentavam, repetindo trovas alheias: eram os joglars, espécies de menestréis. Entre gauleses e celtas, eles eram os bardos, que compunham e declamavam frequentemente com acompanhamento de uma lira.  
O personagem Assurancetourix, no Brasil Chatotorix, da maravilhosa saga em cartum Astérix, o Gaulês (Uderzo e Goscinny), é um bardo que deixa todos os aldeões loucos quando começa a cantar aos gritos, dedilhando sua lira. Terminava sempre amarrado para ao final dar lugar às festanças da aldeia. Na França, os troubadours eram músicos provençais, enquanto os trouvères, do norte do país, eram mais dados às elaborações poéticas.
Guseppe Verdi (1813-1901) escreveu Il Trovatore, uma de suas mais encenadas óperas, inspirada em peça do espanhol García Gutiérrez, passada na província de Aragão, início do séc. 15. Leonora, já prometida em casamento para o conde de Luna, diz à criada, em segredo, que estava apaixonada por um trovador de nome Manrico. Os rivais duelam sem saber que são irmãos. Sucesso absoluto.
Gil (Fundação Joaquim Nabuco)
Gilberto Gil fez uma conclamação aos bardos em Lunik 9: “poetas, seresteiros, namorados / é chegada a hora de escrever e cantar / talvez as derradeiras noites de luar”. A gravação foi em 1967, mostrava a decepção do poeta ao saber da tão decantada lua dos namorados ‘invadida’ por uma espaçonave soviética de meros cem quilos que pousou no satélite. Gerou controvérsias até no carnaval: “lua, ó lua, querem te passar pra trás”, para enfim decidir que “todos eles / estão errados / a lua é / dos namorados” (marchinha de Armando Cavalcanti). A guerra fria em seu coté espacial foi vencida pelos americanos, em 1969, com o primeiro homem pisando na lua. Mas o brilho lunar permanecerá (“que seja infinito, enquanto dure”, diria Vinicius) a ser dos namorados, bardos, poetas, menestréis, seresteiros e trovadores.


sábado, 15 de junho de 2019

A TRISTEZA DO JECA QUE RESIDE EM NÓS


(Dedicado ao José Pinto)

Angelino de Oliveira
Dia desses, dei de ouvir de novo Tristeza do Jeca (melodia de 1918, poesia de 1926), do Angelino de Oliveira, consagrada por Tonico e Tinoco. Um júri da Folha de São Paulo elegeu Tristeza a melhor música caipira de todos os tempos! A letra diz assim, lamentosa: “Eu sou como o sabiá / que quando canta é só tristeza / (...) “Lá no mato tudo é triste / desde o jeito de falar / pois o jeca quando canta / dá vontade de chorar”.
Tinoco
Conheci José Salvador Perez, o Tinoco, em 2010, garoto de 90 anos em ismôque brilhante vermelho. Foi no II Torneio Estadual de Cururu, que idealizei para o Conservatório de Tatuí na Concha Acústica. Cantou sozinho (que falta do cumpádi véi Tonico, chamado lá de cima catorze anos antes). Exalava simpatia, carisma, conversa miúda e, vaidoso que só, chegou a prosear umas gentis cantadas nem tão musicais em alguma prenda bonita, sem ofender ou relar. Morreu de morte morrida em 2012, no dia de meu aniversário, só pra me dar um desgosto e deixar mais triste o Brasil naquele 4 de maio. Era o adeus de um Jeca-Tatu, criação do Monteiro Lobato no conto Urupês, de 1918, o ano em que veio à luz a melodia do Angelino.
Carro de boi
De Tonico e Irvando Luiz é a toada Triste Mudança, sucesso na voz do primeiro em dupla com o mano Tinoco: “Carro de boi vai cantando / no alto do chapadão / é o jeca que vai mudando / (...) bagage que vai levando / só tristeza e ingratidão”. O caipira havia sido chutado pela chefia, porta da rua, serventia da casa! Parece até a história do Jó: derrubaro o rancho dele, moero até a roçada, a muié caiu matada. Desabafo de um Milton Nascimento amuado, em letra de Cacaso: ”Que saudade eu tenho de sair / num carro de boi e ir por aí / estrada de terra que só me leva / só me leva, nunca mais me traz”. É o errar sem rumo do menestrel Vinicius no Soneto da Separação: “...fez-se da vida uma aventura errante”. É também o errar de Nietzsche: “Sem música, a vida seria um engano” (Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum).

A dupla Tião Carreiro e Pardinho, que se encontrou de prima em 1954 num circo de Pirajuí, dito ‘rio dos pirajus’, do lado paulista do Paranapanema, cantou no mesmo tom merencório Levanta, Patrão: “Um pobre trabalhador / pra melhorar de vida / deixou a terra querida / seguiu pra lugar distante / (...) Coitado, não teve sorte / o seu prêmio foi a morte / numa firma importante”. Êta que vida marvada, disgracêra, por que o diabo carece de cruzar o caminho torto desse jeca azarado?
Inezita (UOL)
É de Orchelsis Laureano e Raul Torres a Moda da Pinga, que estourou na voz de Inezita Barroso em 1955, sublime louvação à manguaça: “Co’a marvada pinga / é que eu me atrapaio / (...) entro na venda, dali não saio / ali mesmo eu bebo / ali mesmo eu caio”. Nem a mardição da muié pramode fazer o canabrava largar da tal da pinga vingou: “Despois que se embriaga / num levanto ocê”, respondida com “vô deixá da pinga / só quando eu morrê”. Inezita foi a melhor intérprete desta Moda, a veste caía bem nela: quando esteve em Tatuí, mandou carcá o mé, deu trabalho pra mais de metro já passada dos oitentinha. Coisa de melá os pé.
De Tonico e Francisco Ribeiro, gravada por Tonico e Tinoco em 1958, é Chico Mineiro, verdadeira tragédia, tão useira e vezeira nas modas e toadas: “Fizemo a úrtima viagem / foi lá pro sertão de Goiás / fui eu e o Chico Mineiro”. Mas o fado lhe foi cruel: “mataro meu cumpanheiro / acabou-se o som da viola / acabou-se o Chico Mineiro”. E como se tal agouro ainda não lhe bastasse, ficou marcada a fogo aquela rude lembrança (guarzim ferro que marca o couro do gado). O cúmulo da tristeza, outra mais a soçobrar um jeca: “quando vi os documento / me cortou o coração / vim saber que Chico Mineiro / era meu legítimo irmão!” Tragédia digna de Eurípides: morte, família dilacerada, destruição e, pior, a alma penada do Chico a lhe seguir qual sombra, na modorra e sofreguidão.
José Pinto e o violeiro Josué: Torneio de Cururu em Tatuí.
Cenário de Jaime Ribeiro. Foto de Kazuo Watanabe
Meu amigo José Pinto, mestre da cantoria e do verso, cururueiro falado em todo o Médio Tietê, grande improvisador nas carreiras de A a Z, sabe poetar como só ele o ranchinho de sapé, a galinhada e o pangaré, o chão vestido de verde, coisas de pé-vermei, dizem. Mas, no entanto, sina do caipira, a felicidade arresolveu virar melancolia. Depois de pintado um quadro lindo, ele termina com dó este Prazer de um Roceiro, de 2016, parceria com Pedro Neves: “Coisas que na roça tinham / já estão ficando poucas / as frutinhas madurinhas / que davam água na boca / o que enfeita o ranchinho / é o cantar dos passarinhos / uma viola de pinho / o sorriso da cabocla”. Todo aquele devaneio do começo, tão lindamente descrito, vai desbotando em colorido, esvanecendo no conta-gotas da memória do capiau.
Roceiro, de João Bosco Campos (Catálogo das Artes)
Pedi ao José Pinto que me mandasse alguma coisa sobre o Jeca, e ele me passou uma joia de poesia sobre a vida na roça. No final, desata a fazer homenagem a grandes autores e intérpretes, como Angelino de Oliveira, criador da Tristeza do Jeca que citei logo no começo desta prosa, uma pérola muito bem versejada: “Com a viola de pinho / recorda de Ted Vieira / canta com muito carinho / o menino da porteira / O Jorginho do Sertão / foi a gravação primeira / canta a tristeza do Jeca / de Angelino de Oliveira.” (Ted Vieira, autor de O Menino da Porteira; Jorginho do Sertão, folclore adaptado por Cornélio Pires e primeiro registro de música caipira gravado numa bolacha de 78 rpm. E é com pompa e glória que o amigo canturião encerra o seu tributo com Tristeza do Jeca, do Angelino).


sábado, 8 de junho de 2019

GABRIEL DINIZ: FORRÓ, SALSA, POP ...


E SERTANEJO?
Cornélio Pires e seus caipiras, em Tietê
Cornélio Pires, estudioso do folclore e cantador, bem definiu o sertanejo: “canto romântico e triste que comove a senzala e a tapera”. O gênero terminou por avançar sobre os centros urbanos e periferias, levado pela mão de obra das construções, mutação que abandonou o sertanejo caipira em suas origens. Nas cidades, o ‘novo sertanejo’, logo abriu os olhos da indústria musical, que viu nos artistas produtos maleáveis para vender em massa: “vocês vão enriquecer, mas terão de agir conforme nossos produtores os vestirem e mandarem”. Segundo o teórico alemão Theodor Adorno (1903-1969), quando a indústria se apropria da arte popular torna-a ‘civilizada’ (diria: aculturada), e ‘perde a simplicidade do rústico’.
Imiscuíram-se nas plagas do ‘novo sertanejo’ músicos como Régis Duprat, arranjador de formação clássica com passagem pelo Tropicalismo (na capa do disco Tropicália Duprat aparece com um penico nas mãos). A dupla Léo Canhoto e Robertinho foi pioneira na fidelidade às diretrizes dos cartolas dos discos. Foi assim que criaram Meu Carango e se esqueceram da porteira, do mata-burros e do ranger do carro de boi para livre-cantar, numa espécie de breque, “sai da frente, sua lata velha”, “passa por cima”, respondeu o outro,  que recebeu de volta um “pois eu passo mesmo, lá vou eu”, e crashhhh, barulho de acidente!
A Jovem Guarda acabara por contaminar os sertanejos com Rua Augusta, Festa de Arromba e Eu Sou Terrível. Os que não se deixaram levar pela moda e continuaram apegados à raiz permanecem pobres, mas são felizes em seus ranchos. Já os modernosos vestiram cinto de fivelão, chapéu de caubói americano, bota de salto e calça justa, mas mantiveram o canto em terças paralelas típico dos caipiras. Mas Tristeza do Jeca (1918), de Angelino de Oliveira, inspirada no Urupês, de Monteiro Lobato, 90 anos depois de composta foi considerada a melhor música sertaneja de todos os tempos por um júri convidado pelo jornal A Folha de São Paulo.
Do mesmo jeito, o que se chama forró, nos dias de hoje, não é o Forrobodó (‘sarau chinfrim’) de Chiquinha Gonzaga, cunhado no maxixe do início do século 20. No Nordeste o forró é forrobodança, assumiu-se um embalo gostoso ao som de sanfona, triângulo e zabumba em ritmo de xote, xaxado e baião (nada, por favor, a ver com for all). O forró de hoje é o dos centros urbanos, bailes surgidos com a mão de obra vinda do Nordeste, e travestido tal qual aconteceu com o sertanejo vindo do inland brasileiro. Completa a receita o rock, via Jovem Guarda, assim como o country importado que travestiu o sertanejo urbano. Em comum, no sertanejo e forró modernos, apenas a encarnação urbana e o “kit fama”: corrente de ouro, carro importado e loira na cama.
Jenifer, que estourou nas paradas (mais de 370 milhões de acessos em uma plataforma da Internet), o novato Gabriel Diniz bebeu no ritmo de embolada de algumas letras do forró, sucessos de Jackson  do Pandeiro como O Canto da Ema (1956), de João do Vale, Ayres Viana e Alventino Cavalvanti: “...você bem sabe que a ema quando canta traz no meio do seu canto um bocado de azar”. Diniz: “mas ela veio me xingando enchendo o saco perguntando quem é essa perua aí?”. Ora, Gabriel cedo mudou-se com a família para a Paraíba, lá tendo vivido boa parte de sua infância e juventude. Não por coincidência, terra do mestre Jackson do Pandeiro, do Canto da Ema, notória influência sobre o novato.
'Jenifer' e Gabriel
O ritmo de Jenifer é mesclado com o da salsa, incluindo os típicos riffs de metais, o balanço latino de bongôs e o suingue de cúmbias, merengues, mambos e camisas de estampas tropicais. ‘Novo sertanejo’? Talvez apenas alguma simpatia. A letra de Diniz é puxada por um nome feminino até comum nos dias de hoje, e nela o autor diz que teria conhecido a moça no Tinder, um aplicativo de relacionamentos para celular que faz, via computador, os cálculos e matches das melhores escolhas de pares para cada membro inscrito. De resto, a letra é simples e foge das dores de que se tornou refém a maior parte do sertanejo atual, as de corno e de cotovelo.
(Freepik)
Definitivamente, de ‘novo sertanejo’ em Diniz só enxergo o público jovem, que gosta do gênero, e alguma sombra, ao fundo, bem atrás do nordestino e caribenho. Já o pop do cantor é consequência natural pós-Bossa e pós-Tropicalismo. Essa influência nordestina, mesmo que um tanto pasteurizada, é evidente em outras músicas de Diniz, como Amor de Copo e Brincar de Amar, com direito a sanfona.
Que ele era um talento a se lapidar, não se pode negar: uma boa extensão vocal e agudos sem os cacoetes do yodel (do alemão Jodel, Alpes Suíços, troca de registros natural e falsete importada pelo faroeste americano: “ioleí-hi, ioleí-hi”). Quando mal feito, lembra um rapazola em fase de mudança de voz). Uma letra divertida, bem assentada no ambiente urbano, ao ritmo do blend saboroso de nordestinos e caribenhos.
O sucesso rápido derrubou o jovem Gabriel Diniz, aos 28 anos, neste fatídico 27 de maio: duplas famosas viajam em jatinhos, ora, o cantor não quis fazer por menos. Cantou Janis Joplin: “...você não vai me comprar um Mercedes-Benz? / Todos os meus amigos dirigem Porsches, preciso me equiparar”. E fez o que pôde, pagou R$ 4 mil para caber em um pequeno e velho monomotor a hélice construído há 45 anos para quatro pessoas. Saiu da Bahia para Alagoas, sobrevoando Sergipe. Exatamente onde ficou após uma queda brusca. Sem lenço, documento, sequer caixa preta. Uma pena mesmo.
[Para quem nunca ouviu, um link para 'Jenifer':]


sábado, 1 de junho de 2019

DAS MINAS GERAIS


“Sou do ouro, eu sou vocês / sou do mundo, sou Minas Gerais” (Para Lennon e Mc Cartney, de Brant, Márcio e Lô Borges) ecoou na voz do Milton Nascimento, em um dos pontos altos de sua carreira. Nascido em Três Pontas, sul de Minas, hoje com 57 mil habitantes, Milton ouviu da Elis Regina que o canto dele soava como a voz de Deus, de tão profunda. Um pouco mais para oeste daquela cidade, quase limite com a divisa de São Paulo, assenta-se Monte Santo de Minas, de onde à noite pode-se ver as luzinhas da paulista Mococa. Da zona cafeeira (do café ‘tipo A’, dizem), Monte Santo é uma aconchegante cidadezinha que em 2020 completa 200 anos. Terra do meu pai, o escritor Autran Dourado, diversos prêmios, entre eles Camões, Goethe e Grã-Cruz do Mérito Cultural, berço também de sua contemporânea Ruth Luz, musicista e autora dos hinos da cidade natal, e depois de Caconde e de Tatuí, de cujo Conservatório foi renomada professora. Monte Santo, terra também do ator Milton Gonçalves. Nomes bastante representativos para uma população atual de 21 mil.
Mestre Villani-Côrtes, cordial amigo
Entre outros cantores de Minas estão Ataulfo Alves, Altemar Dutra, Ana Carolina, Clara Nunes, João Bosco, Maria Alcina e Moacyr Franco. Instrumentistas, regentes, arranjadores e compositores não ficam a dever: meu amigo e baterista dos tempos de conjunto em Boston, o grande Pascoal Meirelles, Wagner Tiso, Geraldo Pereira, Carlos Prates, nosso querido amigo Villani-Côrtes, o imortal Lobo de Mesquita, puxando vai longe.
Pelé, um rei na corte tricordiana
Subindo no mapa, mais a leste, batem Três Corações, hoje com 78 mil habitantes. Entre seus ilustres cidadãos, uma lenda mundial chamada Pelé, o  escritor Godofredo Rangel (primeiro mentor do meu pai), o cineasta Braz Chediak e Carlos Luz, que,  por estar à frente da Câmara dos Deputados, em 1955 chegou à Presidência da República após um infarto de Café Filho, vice. Este havia assumido a vaga de Getúlio após o suicídio no Palácio do Catete, ocorrido no ano anterior. Luz ficou apenas 5 dias no cargo, logo derrubado pelo Marechal Henrique Lott, que conduziu a posse de Juscelino Kubitschek em 1956.
Juscelino viu a luz em Diamantina, “onde nasceu JK / que a princesa Leopoldina / arresolveu se casá” (Sergio Porto, 1968). A população atual da cidade é de 47 mil habitantes, e fica pouco ao norte de Belo Horizonte, capital (onde, sem maiores lustres, eu nasci). Somando Carlos Luz e JK, Minas produziu o maior número de presidentes da República: nove, ao todo, destacando-se também Afonso Pena, Artur Bernardes e Tancredo Neves.
Uma joia de beleza e cores, Ouro  Preto
Nas chamadas cidades históricas reside o coração do barroco e da música colonial brasileira: Sabará, a pouco mais de 15 minutos da capital, fundada em 1675 como Villa Allegre e Sorridente de Nossa Senhora do Ó de Sabarabuçu, e Villa Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, de 1652, ou simplesmente Ouro Preto, terra de enorme riqueza nos lendários tempos do garimpo do ouro e da arte, da música colonial, das esculturas do maior artista plástico de nosso barroco, juntamente com o pintor Mestre Ataíde, da vizinha Mariana: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Os profetas
De Aleijadinho são também obras de São João del Rei, ‘Cidade dos Sinos’, e Congonhas, ‘dos Profetas’, feliz sede do conjunto de esculturas em pedra sabão da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, tombado pela UNESCO em 1985 como patrimônio cultural da humanidade. Ouro Preto, de 1711, tem atualmente 54 mil habitantes e um enorme volume flutuante de turistas. Da região do ciclo do ouro, onde viveram os idealistas revolucionários da abortada Inconfidência Mineira, a cidade é Patrimônio Mundial pela UNESCO desde 1980.
O protesto bem-humorado do Henfil
Além de Aleijadinho e Ataíde, artistas plásticos mineiros não faltam até hoje: Bruno Mitre, de BH, Carlos Bracher, Juiz de Fora, e um grande nome contemporâneo, Maria Helena Andrés, de Entre Rios, prima da minha mãe. Yara Tupinambá é de Montes Claros (de quem tenho uma linda gravura que faz parte de um díptico com o poema Sabará, de Carlos Drummond de Andrade, por ele autografado: “A dois passos da cidade importante / a cidadezinha está calada, entrevada / (Atrás daquele morro com vergonha do trem)”. Um gênio da caricatura, Henfil, é de Ribeirão das Neves, e além de grande artista, que com sua pena e seus pincéis  foi um prócer da luta contra a ditadura, trabalhando ao lado de seu colega  de O Pasquim, Ziraldo, nascido em Caratinga.
Simplesmente Drummond (Revista Bula)
Carlos Drummond, ‘nosso poeta maior’ (título que rejeitava), nasceu em uma cidade a que dedicou um lindo poema que termina com estes versos: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!” Entre escritores e poetas, além dele, meu pai e o já citado Godofredo Rangel, também são mineiros Guimarães Rosa, de Cordisburgo, Murilo Rubião, de Carmo, Henriqueta Lisboa, de Lambari, e Cláudio Manuel da Costa, de Mariana, amigo do Aleijadinho e simpatizante fiel dos inconfidentes. 
Otto, acervo o Globo
Minas também nos trouxe Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Otto Lara Resende, da frase cáustica que lhe foi atribuída por Nelson Rodrigues, “O mineiro só é solidário no câncer”. Fernando, Paulo, Otto e Hélio Pellegrino (os dois últimos quase nossos vizinhos, no Rio) eram assíduos nos colóquios com meu pai. Affonso Romano de Santana, de BH, autografou e mandou-me seu magnífico livro de arte intitulado Barroco, Alma do Brasil, além do amigo mais frequente nos aniversários de meus pais e outras festas, Silviano Santiago, escritor e ensaísta nascido em Formiga, cidade a que minha tia Maria Ângela (mineira, claro) se referia com o cacófato “em formiga abunda a pita”. A pita é uma planta cheirosa que, parece, realmente grassava naquelas glebas.
Sófocles (497 a.C. - 406 a.C.)
Mineiridade é espírito universal, com pitada trágica de Sófocles e Eurípides herdada via alguma descendência misteriosa. É assobiar de boca fechada como o Otto Lara, contar causos, ‘sentar de cocra’, enrolar ‘pito de páia’, tirar cavaco de madeira (como Os Carapinas do Nada, título de um livro do meu pai). Universal, tímido, simples e brasileiríssimo. Se o sonho um tanto ingênuo da Inconfidência tivesse tido força e conseguido lograr êxito, O Brasil já teria 230 anos de Independência, próximo dos americanos e franceses: uma República madura, e não a que temos hoje, com um século de atraso: castigada, trôpega e vacilante.

"Liberdade, ainda que tarde, ouve-se em redor da mesa./ E a bandeira já está viva, e sobe, na noite imensa. / E os seus tristes inventores já são réus — pois se atreveram

a falar em Liberdade (que ninguém sabe o que seja)"

(Cecília Meireles: Romanceiro da Inconfidência, Romance XXIV)