“Sou do ouro, eu sou vocês / sou do
mundo, sou Minas Gerais” (Para Lennon e Mc Cartney, de Brant, Márcio e Lô
Borges) ecoou na voz do Milton Nascimento, em um dos pontos altos de sua carreira.
Nascido em Três Pontas, sul de Minas, hoje com 57 mil habitantes, Milton ouviu
da Elis Regina que o canto dele soava como a voz de Deus, de tão profunda. Um
pouco mais para oeste daquela cidade, quase limite com a divisa de São Paulo, assenta-se
Monte Santo de Minas, de onde à noite pode-se ver as luzinhas da paulista
Mococa. Da zona cafeeira (do café ‘tipo A’, dizem), Monte Santo é uma aconchegante
cidadezinha que em 2020 completa 200 anos. Terra do meu pai, o escritor Autran
Dourado, diversos prêmios, entre eles Camões, Goethe e Grã-Cruz do Mérito
Cultural, berço também de sua contemporânea Ruth Luz, musicista e autora dos hinos da cidade
natal, e depois de Caconde e de Tatuí, de cujo Conservatório foi renomada professora. Monte Santo, terra também do
ator Milton Gonçalves. Nomes bastante representativos para uma população atual
de 21 mil.
Mestre Villani-Côrtes, cordial amigo |
Entre outros cantores de Minas estão Ataulfo
Alves, Altemar Dutra, Ana Carolina, Clara Nunes, João Bosco, Maria Alcina e
Moacyr Franco. Instrumentistas, regentes, arranjadores e compositores não ficam
a dever: meu amigo e baterista dos tempos de conjunto em Boston, o grande Pascoal
Meirelles, Wagner Tiso, Geraldo Pereira, Carlos Prates, nosso querido amigo Villani-Côrtes,
o imortal Lobo de Mesquita, puxando vai longe.
Pelé, um rei na corte tricordiana |
Subindo no mapa, mais a leste, batem Três
Corações, hoje com 78 mil habitantes. Entre seus ilustres cidadãos, uma lenda mundial
chamada Pelé, o escritor Godofredo
Rangel (primeiro mentor do meu pai), o cineasta Braz Chediak e Carlos Luz,
que, por estar à frente da Câmara dos
Deputados, em 1955 chegou à Presidência da República após um infarto de Café
Filho, vice. Este havia assumido a vaga de Getúlio após o suicídio no Palácio do
Catete, ocorrido no ano anterior. Luz ficou apenas 5 dias no cargo, logo derrubado
pelo Marechal Henrique Lott, que conduziu a posse de Juscelino Kubitschek em
1956.
Juscelino viu a luz em Diamantina, “onde
nasceu JK / que a princesa Leopoldina / arresolveu se casá” (Sergio Porto,
1968). A população atual da cidade é de 47 mil habitantes, e fica pouco ao
norte de Belo Horizonte, capital (onde, sem maiores lustres, eu nasci). Somando
Carlos Luz e JK, Minas produziu o maior número de presidentes da República:
nove, ao todo, destacando-se também Afonso Pena, Artur Bernardes e Tancredo
Neves.
Uma joia de beleza e cores, Ouro Preto |
Nas chamadas cidades históricas
reside o coração do barroco e da música colonial brasileira: Sabará, a pouco
mais de 15 minutos da capital, fundada em 1675 como Villa Allegre e Sorridente
de Nossa Senhora do Ó de Sabarabuçu, e Villa Rica de Nossa Senhora do Pilar de
Ouro Preto, de 1652, ou simplesmente Ouro Preto, terra de enorme riqueza nos lendários
tempos do garimpo do ouro e da arte, da música colonial, das esculturas do
maior artista plástico de nosso barroco, juntamente com o pintor Mestre Ataíde,
da vizinha Mariana: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Os profetas |
De Aleijadinho são também obras de
São João del Rei, ‘Cidade dos Sinos’, e Congonhas, ‘dos Profetas’, feliz sede
do conjunto de esculturas em pedra sabão da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos,
tombado pela UNESCO em 1985 como patrimônio cultural da humanidade. Ouro Preto,
de 1711, tem atualmente 54 mil habitantes e um enorme volume flutuante de
turistas. Da região do ciclo do ouro, onde viveram os idealistas
revolucionários da abortada Inconfidência Mineira, a cidade é Patrimônio
Mundial pela UNESCO desde 1980.
O protesto bem-humorado do Henfil |
Além de Aleijadinho e Ataíde, artistas
plásticos mineiros não faltam até hoje: Bruno Mitre, de BH, Carlos Bracher,
Juiz de Fora, e um grande nome contemporâneo, Maria Helena Andrés, de Entre
Rios, prima da minha mãe. Yara Tupinambá é de Montes Claros (de quem tenho uma
linda gravura que faz parte de um díptico com o poema Sabará, de Carlos
Drummond de Andrade, por ele autografado: “A dois passos da cidade importante /
a cidadezinha está calada, entrevada / (Atrás daquele morro com vergonha do
trem)”. Um gênio da caricatura, Henfil, é de Ribeirão das Neves, e além de
grande artista, que com sua pena e seus pincéis foi um prócer da luta contra a ditadura, trabalhando
ao lado de seu colega de O Pasquim,
Ziraldo, nascido em Caratinga.
Simplesmente Drummond (Revista Bula) |
Carlos Drummond, ‘nosso poeta maior’ (título
que rejeitava), nasceu em uma cidade a que dedicou um lindo poema que termina
com estes versos: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!” Entre
escritores e poetas, além dele, meu pai e o já citado Godofredo Rangel, também são
mineiros Guimarães Rosa, de Cordisburgo, Murilo Rubião, de Carmo, Henriqueta
Lisboa, de Lambari, e Cláudio Manuel da Costa, de Mariana, amigo do Aleijadinho
e simpatizante fiel dos inconfidentes.
Otto, acervo o Globo |
Minas também nos trouxe Paulo Mendes Campos, Fernando
Sabino e Otto Lara Resende, da frase cáustica que lhe foi atribuída por Nelson
Rodrigues, “O mineiro só é solidário no câncer”. Fernando, Paulo, Otto e Hélio
Pellegrino (os dois últimos quase nossos vizinhos, no Rio) eram assíduos nos
colóquios com meu pai. Affonso Romano de Santana, de BH, autografou e mandou-me
seu magnífico livro de arte intitulado Barroco, Alma do Brasil, além do amigo mais
frequente nos aniversários de meus pais e outras festas, Silviano Santiago, escritor
e ensaísta nascido em Formiga, cidade a que minha tia Maria Ângela (mineira,
claro) se referia com o cacófato “em formiga abunda a pita”. A pita é uma planta
cheirosa que, parece, realmente grassava naquelas glebas.
Sófocles (497 a.C. - 406 a.C.) |
Mineiridade é espírito universal, com
pitada trágica de Sófocles e Eurípides herdada via alguma descendência misteriosa.
É assobiar de boca fechada como o Otto Lara, contar causos, ‘sentar de cocra’, enrolar
‘pito de páia’, tirar cavaco de madeira (como Os Carapinas do Nada, título de
um livro do meu pai). Universal, tímido, simples e brasileiríssimo. Se o sonho um
tanto ingênuo da Inconfidência tivesse tido força e conseguido lograr êxito, O
Brasil já teria 230 anos de Independência, próximo dos americanos e franceses:
uma República madura, e não a que temos hoje, com um século de atraso: castigada,
trôpega e vacilante.
"Liberdade, ainda que tarde, ouve-se em redor da mesa./ E a bandeira já está viva, e sobe, na noite imensa. / E os seus tristes inventores já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade (que ninguém sabe o que seja)"
(Cecília Meireles: Romanceiro da Inconfidência, Romance XXIV)
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