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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

PARAÍSO E FETICHE

 

Os retirantes de Portinari

Uma incelença / entrou no Paraíso / adeus, irmãos / que é o dia do Juízo”. Cantiga fúnebre da tradição popular gravada por Dorival Caymmi, surge na versão musicada por Chico Buarque de Morte e Vida Severina, do João Cabral: “Finado Severino / ao passares em Jordão / e os demônios te atalharem / perguntando o que é que levas”. O Paraíso do retirante nordestino é cáustico, corrosivo, os versos narram que deste mundo Severino só levou “coisas ocas / como o caixão que ainda deves”.

O Paraíso dos Vedas (texto em inglês em vedkabbed.com)

O que seria o Paraíso?
Talvez um estado puro de completude, morada da paz. Ele faz contraponto com a miséria humana, o chão em que sofremos nesta Terra. Nas religiões, surge como ideia de recompensa para os puros, ou os que purgaram seus pecados. Para algumas, trata-se de um lugar no alto; entre islamitas e cristãos revela-se como um alívio, libertação, estado de felicidade plena. Para os budistas, Paraíso e Céu são sinônimos, estados de plena elevação espiritual. Entre os Vedas indianos, é como se o corpo físico fosse incendiado para se transmudar em outro estado, acima da humanidade. A palavra veio do grego Parádeisos, de onde o latim Paradisus, que nos deu Paradis, em francês, Paradiso, em italiano, e finalmente, em português e espanhol, Paraíso.

Ruínas das colunatas de Pasárgada, no Irã

Ingrediente que fertiliza poesias
, a palavra ambienta Vinicius de Moraes, em O Vale do Paraíso (1933): “Quando vier de novo o céu de maio largando estrelas / (...) lá onde os pinheiros reacendem nas manhãs úmidas / lá onde a aragem não desdenha a pequenina flor das encostas” - lindos versos descritivos, suavemente pueris mas contados com olhos adultos e terrenos. Para Manuel Bandeira, é Pasárgada, um lugar perfeito onde tudo funciona às maravilhas: “lá sou amigo do rei / lá tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei / (...) um processo seguro / de evitar a concepção / tem telefone automático / tem alcaloide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar”. Pasárgada é sonho terreno onde não existe pecado: satisfações mundanas, nada celestiais.

O Paraíso de Dante

Terceiro livro e parte final de A Divina Comédia
(1308-1320), de Dante, Paraíso conclui a trilogia da viagem que sai do Inferno e atravessa o Purgatório, que o antecedem. É a jornada final de Dante, conduzido por Beatrice, que simboliza a fé, em alegoria. O Paraíso é dividido em nove esferas, da inconstante lua até a última, primum mobile, os anjos. Pouco depois de terminar A Divina Comédia Dante morre, deixando a cruzada descrita em seu tríptico, uma das maiores criações da humanidade. Talvez tenha descoberto o enorme alcance que sua alma mater, sua alma parens, viria a significar para nossa Civilização – o que escrever depois dele?


Em A Classe Operária Vai ao Paraíso
(1971), filme do italiano Elio Petri, o fura-greve Lulu Massa, interpretado pelo mestre do gênero, Jean Maria Volonté, não adere ao movimento paredista dos colegas da fábrica, e ao manobrar sozinho uma das máquinas perde um dedo. O acidente fez de Lulu não um grevista a mais, mas um revolucionário. O título do filme remete aos anos de chumbo de parte do mundo, e, segundo a Drª Marta de Aguiar Bergamin, da UFSCar, “o fetiche dá um parâmetro para a análise dessa trajetória relacionando a luta política com as dimensões subjetivas do trabalho” (em “E quando o Paraíso é uma névoa? ‘A Classe Operária’ e o fetiche”. Revista Aurora, 2017). O filme não aponta para um Paraíso, mas um fetiche que a fantasia dos operários criara de forma coletiva, sem necessariamente acontecer.

"Che", Fidel e companheiros em Sierra Maestra

No Brasil, por volta dessa época
(fim dos anos 1960 e início dos 70), existiu o fetiche, sombra da luta armada à Sierra Maestra cubana, que com Fidel, Guevara, Camilo Cienfuegos e apenas mais nove incendiaram o mundo pós-1959. Criaram o sonho de uma sociedade igualitária, cujo combate no Brasil foi desculpa para inúmeras torturas, mortes e desaparecimentos. Em Cuba, 12 desceram a cordilheira para arrebatar um país inteiro cuja população era menor do que a da cidade de São Paulo - no Brasil, gigante pela própria natureza, não vingou. Com um regime de exceção instalado, criou-se uma desculpa esfarrapada para fechar Congresso, controlar a imprensa, prender por “crime de opinião” e censurar: a “pecha infamante de comunista” do “Manifesto” dava o tom.


A distorção proposital da palavra “comunista”
era tão absurda que restou tratá-la com ironia: depois de sair da prisão, a chamada turma do Pasquim resolveu vulgarizá-la, tornando-a anedota. Bem ao seu estilo, escreviam “fulano? Comunista igual a nós!” “Sicrano? Também”. O momento era propício para o regime criar uma espécie de macarthismo no Brasil. Nos EUA, a sanha persecutória no fim dos anos 1940 e durante os 50 tinha à frente o senador Joseph McCarthy: taxava seus adversários de comunistas, e os que divergiam da extrema direita de espiões soviéticos. A acusação era tatuagem indelével, como os números cravados nos braços dos judeus pelos nazistas.

O senador McCarthy ironiza a manchete: "Macartismo é traição à América!


Constituinte em festa: aprovada a nova Carta Magna 

Hoje, o que se vê no Brasil
é um sonho modesto: viver em uma democracia, com justiça social, sem uma inflação que corroa 1,1% o poder aquisitivo em apenas um mês, como aconteceu em setembro passado, e, quem sabe, poder comer alguma carne. Sem quedas brutais no PIB e juros absurdos, com políticas ambientais que garantam o futuro das gerações. Sobrevive uma Constituição talhada com suor em 1988, arrimo de uma sociedade que se prometia livre e soberana. Não é Paraíso ou fetiche, mas um sonho bem vivo, com todas as suas imperfeições, sim, a ser garantido a qualquer custo.

O Paraíso, segundo Jan Bruegel (1568-1625)



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