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sexta-feira, 29 de julho de 2022

NUM RABO DE FOGUETE

 

O viaduto caído (Gazetario)

E
ra o ano de 1979. O poeta Aldir Blanc fez de uma letra preciosista um libelo contra a ditadura, e é preciso entendê-la para que possamos nos situar no samba do João Bosco: um goulash de informações cifradas, figuras de linguagem e metáforas para falar de verdades proibidas, e ele o fez com mãos de ourives. Assim nasceu O Bêbado e a Equilibrista, sucesso até hoje na voz imortal da Elis Regina: “Caía a tarde feito um viaduto / e um bêbado trajando luto / me lembrou Carlitos”.  Em 1971, desabaram simplesmente 112 m de um trecho do viaduto Paulo de Frontin, no Rio, obra mal feita, com vícios, superfaturamento, estruturas de material barateado. Morreram 48 pessoas e houve um grande número de feridos. Eram tempos do general Médici, talvez o mais cruel daqueles anos, responsável por uma censura implacável: assunto proibido. Infelizmente, os censores sequer tinham lido ou compreendido um poema: a censura é um ato contra a inteligência.

Betinho, Chico e Henfil

“(Brasil) que sonha / com a volta do irmão do Henfil / com tanta gente que partiu / num rabo de foguete”. Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), era cartunista do semanário O Pasquim. Dono um traço inconfundível e pai de figuras como a Graúna, o Fradim, o Bode Orelana e outros, e de cujo irmão Betinho fala a música, era hemofílico como ele e o irmão Chico Mário, músico (os três morreram de AIDS após transfusões para o tratamento de hemofilia congênita). Betinho (Herbert José de Souza) foi um brilhante sociólogo que terminou exilado depois de ser preso por, digamos, pensar. Essa “volta do irmão do Henfil” simboliza, além de um enorme bom-retorno, braços abertos para receber de volta os asilados, exilados ou que tiveram de buscar proteger-se no exterior.


R
abo de foguete, com ou sem os hifens, pode ter diversos significados: uma grande encrenca, uma queimadura por fogos de artifício; segundo o etimólogo Deonísio da Silva, “empreender tarefa difícil”. Refere-se igualmente a uma planta conhecida também como ‘arnica de Minas’ e mais uma dezena de nomes: é coberta de espinhos que grudam na roupa e na pele e podem ferir, enroscando-se na vítima. Todas versões convergem. Como grande parte das expressões populares, ‘rabo de foguete’ é moldado pelo tempo e cultura de onde se vive, enriquecendo-se. Mas há uma sensação intangível: é ‘coisa ruim’, que por sua vez quer dizer ‘coisa do diabo’ - ou o próprio. Mas quem sabe, ao invés de seguir destrinchando a etimologia seja melhor sentir, tal qual o povo faz sabiamente?


S
egundo o Memorial da Democracia, de 5 a 10 mil pessoas foram expulsas, deportadas, exiladas ou asiladas. Da primeira leva, em 1964, fizeram parte políticos como JK, Jango, FHC, Arraes, Brizola e Darcy Ribeiro; da segunda, estudantes, artistas como Caetano, Gil, Vandré, Chico e Glauber Rocha, professores, militantes e mais de 130 presos políticos trocados por embaixadores reféns na luta armada. Foram em boa parte refugiados na França, no México, no Chile e Uruguai.

Vlado e Clarice

E
ssa gente, o filé da nossa chamada intelligentsia nacional, foi a que “partiu no rabo de foguete”, na poesia de Blanc. A censura acompanhava essa viagem, e pior: as viúvas dos presos políticos. A letra diz “choram Marias e Clarices”, referindo-se essas últimas à viúva de Vladimir Herzog, jornalista preso e morto em uma cela do DOI-CODI em 1975. As Marias simbolizam a viúva do operário Manuel Fiel Filho e todas as mulheres de mortos e presos no Brasil - e tantas Marias há, como bem disse João Cabral em seu candente Morte e Vida Severina: “...deram então de me chamar Severino de Maria / Como há muitos Severinos com mães chamadas Maria / (...) fiquei sendo o Severino da Maria do Finado Zacarias”. Quando a razão se esgota na missão de compreender alguma coisa, a poesia ocupa o espaço e se faz presente em outro universo: o da sensibilidade, dos sentimentos mais profundos, da arte como expressão humana maior: dores e alegrias, figuras e fundos, sofrimentos e vazios, devaneios e angústias que a mente não consegue explicar.

(Veja)

Mas sei / que uma dor assim pungente / não há de ser inutilmente / a esperança / Dança na corda bamba de sombrinha / e em cada passo dessa linha / pode se machucar”. Vivemos esta vida como a equilibrista na corda bamba, com sombrinha para não cair, passo a passo, correndo riscos, sabendo que a qualquer momento um aventureiro pode nos fechar na encruzilhada. Vivemos parte de nossa República sob regimes de força, exílios, desde os constitucionalistas de 1932 - entre os quais meu avô - aos de que tanto lembramos no pós-64 – todos num rabo de foguete, “que ninguém sabe o que seja”; só que foi ruim, muito ruim (que o diga minha mãe, outra Maria, que na mais tenra infância teve o pai tirado do convívio do lar, e suas irmãs, também Marias). Há o retorno, diz a história que sempre retorna, mas o importante é não partir, salvo se para conhecer lugares lindos, nunca para se entocar.


S
e a poesia do Aldir Blanc, que nos deixou sem avisar no dia 4 de maio de 2020, é uma ode à anistia, em 1968 Chico escreveu para Jobim a letra de Sabiá, de uma leveza enorme, um canto do exílio que teria sido dedicado a JK: “Vou voltar / sei que ainda vou voltar / para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / que eu hei de ouvir / uma sabiá”.

Uma parte risível mas incendiária dos brasileiros faz coro ao modismo radical dos piores momentos da história – por não a conhecerem, não a terem vivido ou por ligações com o instinto dos próprios repressores. Citando o grande Mário de Andrade, “reverendíssimas bestas”.



sexta-feira, 15 de julho de 2022

5G, ALEXA E PASÁRGADA

 

Manhattan School of Music

No dia seis de julho estreou finalmente no Brasil a 5ª geração de internet móvel, conhecida por 5G, inicialmente em Brasília - no Plano Piloto e no Lago Sul, a fina flor. Em seguida, Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo; as demais cidades aguardarão sine die pela bênção da nova tecnologia. (Como diriam os americanos, um sutil “não nos ligue, nós ligaremos”, ou os ingleses, mais irônicos, “não prenda a respiração”). Enquanto esperamos essa maravilha que vai encolher o chamado tempo de latência nas redes e as informações trafegarem dez vezes mais rápido, quais serão as reais vantagens oferecidas à população, dos veículos sem motoristas a intricadas cirurgias feitas remotamente? Ah, por dever de ofício, acrescento a parte que me cabe, a maravilha dos sons: músicos de diversas partes do mundo poderão aprender e tocar juntos em tempo quase real, com latência imperceptível. (Quando visitei a Manhattan School of Music, em 2016, vi que as escolas de música em NY já trabalhavam com um sistema de cabos subterrâneos, interligando-as a partir da Universidade de Columbia, como se fosse uma enorme rede direta interna de uma empresa).


C
omo tudo o que é bom, ainda mais tratando-se do Brasil, o 5G não será para todos: os celulares mais simplesinhos continuarão a operar em faixas mais lerdas; os preços dos novos aparelhos começam, os mais chinfrins, em 1,5 mil, até os que ultrapassam os R$ 10 mil. Dos 67 novos modelos, a Samsung sai na frente com 25 para todos os gostos; logo atrás vêm a Motorola, com 14, Apple e Xiaomi com 9 e 6, respectivamente, e 13 de outras marcas. Cidadãos mais pobres que lograram ter um celular vão continuar ligados em 2 e 3, no máximo 4G, vendo a banda 5G passar.


P
ara o novo sistema funcionar, as redes parabólicas, da banda C, irão de escanteio para outra, a KU, abrindo alas para o 5G. Divulga-se que no novo sistema chegaremos a trafegar até 20 vezes mais rápido do que no 4G. “É o progresso em nossa mão / viva a civilização” cantou Gonzaguinha com ironia. O 5G parece o sonho dos preguiçosos: apaga a luz, liga a TV, o ar condicionado... (Meu pai dizia, lembrando Mário Quintana: a preguiça é a mãe da invenção). Chegamos à era dos Jetsons!


H
á alguns anos ganhei da minha filha mais velha uma engenhoca chamada Alexa, aparelhinho de 8,5 cm de diâmetro por 3 cm de altura. Conectada à Internet, ela, que poderia chamar-se “Amélia”, obedece: “Alexa” (palavra-chave), “que horas são”, “acorde-me às 7”, “quais as notícias” (CBN ou BBC de Londres), mais previsão do tempo e hora certa de qualquer lugar do mundo – ah, e toca as músicas que você pedir. Minha Alexa só entende inglês, não conheço a versão em português, bem mais recente. Ela já pode fazer, há mais de dez anos, algumas das tarefas do 5G, como ligar ou desligar a luz, a TV, o ar condicionado, se ligados à rede. Claro que a nova geração de banda larga da Internet será milhões de vezes mais poderosa do que minha ajudante doméstica, mas no momento ainda há sobre o 5G mais dúvidas do que certezas. Ora, senão vejamos:


O novo sistema lembra uma criação de cavalos de raça: há o autônomo, “puro”, Standalone (no jargão, ao pé da letra, algo como o bebê que já fica em pé sozinho), não precisa do apoio da já existente rede 4G). É rápido, estável e seguro. Essa raça, digo, esse tipo, é o que está sendo lançado em Brasília, pioneira na rede. Nas demais capitais será implantado, inicialmente, o tipo 5G DSS, que “rouba” parte do sinal 4G, é mais lento e menos estável. Daí, será natural surgirem ciumeiras e disputas pelo “puro sangue” em outras cidades e estados.


Q
ue o novo sistema será de imensa utilidade para a negligenciada pesquisa científica, a medicina, o ensino escolar (quando e se for disponibilizado), a comunicação e a automação de um sem-número de serviços, além do EAD e o ensino e performance musicais, não há dúvida. Mas não será a quintessência de uma nova civilização, a arca perdida do santo Graal, a panaceia para todos os males, a pedra filosofal: não extinguirá a fome, não impedirá que o ser humano se lance a guerras e conquistas estúpidas – pelo contrário, acirrará os ânimos, a espionagem e a competição armamentista; tal qual nas revoluções industriais, o desemprego aumentará a olhos vistos e os deserdados sentirão na pele; ajudará os mais fortes a sobrepujar os mais fracos, doença da índole humana. A tecnologia depende do homem, e, fora dos livros e filmes de ficção científica, não nos dominará – “o cérebro eletrônico comanda / manda e desmanda / (...) mas ele não anda”, compôs Gilberto Gil em 1969. Tomara que saibamos conviver com a novidade, tirar dela o melhor proveito e evitar seus efeitos adversos e maléficos. É da natureza humana sonhar alto, conquistar. Porém, há o lado negativo, dos que desejam o mal, têm volúpia pelo poder.

(Livro Errante)

E
m 1930, em Libertinagem, o poeta modernista Manuel Bandeira (1886-1968) deu asas e voos aos seus desejos, sonhos e utopias, tentando conjuga-las com o que o vislumbrava para seu futuro, tal como desejava que ele fosse. Assim nasceu um histórico poema: “Vou-me embora pra Pasárgada / lá sou amigo do rei / lá tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei”. Primeiro seus instintos e luxúria, em seguida as utopias: em Pasárgada tem de tudo, um processo seguro de evitar a concepção, telefone automático, alcaloide (N.: cloridato de cocaína) à vontade e, finalmente, prostitutas “pra gente namorar”, o lado onírico que compensaria as conquistas materiais. Navegar é preciso, disse Pessoa.





 




sexta-feira, 8 de julho de 2022

CARROS A GASOLINA, ELÉTRICOS

E O DESDÉM PELA PESQUISA CIENTÍFICA NO BRASIL

O Benz Patent Motorcar

Várias tentativas de se construir um veículo movido a combustível já haviam sido empreendidas, mas só em 1885 o designer e engenheiro alemão Karl Friedrich Benz (1844-1929) lançou seu Benz Motorcar, dando início à primeira produção em série de veículos com motor a combustão. Nascia assim a Benz & Cie., primeira fábrica de automóveis. Em 1926, três anos antes de sua morte, juntou-se à Daimler Motoren Gesellschaft, de onde surgiu a Daimler-Benz, que até hoje produz alguns dos melhores carros do mundo, os Mercedes-Benz. Por essa razão, recebeu de um norte-americano, em plena disputa entre seus dois países, o epíteto “Pai da indústria do automóvel” (FANNING, Leonard. Karl Benz: Father of the Automobile Industry.  NY: Mercer Publ., 1955). O veículo original, nada confortável, sem amortecedores e com uma espécie de manivela à guisa de direção, tinha as rodas de trás enormes e uma única na frente, bem menor. Logo Benz introduziria outros avanços: ignição elétrica e motor a quatro tempos com apenas um cilindro, 958 cc e ¾ hp, que atingia até 16 km/h!

Linha de montagem do Ford "T"

O magnata da indústria americana Henry Ford (1863-1947) criou a Ford Motor Company, e iniciou a produção de automóveis por linha de montagem em larga escala, com franquias nos seis continentes. Seu modelo “T”, revolucionou a indústria, baixando a preços acessíveis à classe média. (Filosoficamente, ligava o consumo à conquista da paz, porém durante a Primeira Guerra envolveu-se com o antissemitismo, inclusive financiando publicações como o jornal The Dearborn Independent e The International Jew - O Judeu Internacional). O “T”, com direção à esquerda, 4 cilindros e molas surgiu em 1908; a produção em massa forçava o preço para baixo, coisa de 25 mil dólares atualizados (R$ 129 mil). A classe média alta podia desfrutar do luxo de volteios em um automóvel confortável para a época, mandando às favas a poluição: a atmosfera, especialmente nos grandes centros, passou a receber uma quantidade crescente de gases como o ozônio (O³), o monóxido de carbono (CO), o nitrogênio (NOx) e o dióxido de carbono (CO²).

Shenzen

Paralelamente à escalada poluidora e o desmedido consumo de combustíveis fósseis, o preço nas bombas encareceu a olhos vistos. Várias guerras tiveram como pano de fundo o chamado “ouro negro” - o petróleo -, enquanto industriais e cientistas bem-intencionados começaram a procurar alternativas. Com as frotas de cidades inteiras - como Shenzen, na China - movidas a eletricidade acumulada em baterias e inúmeros experimentos de sucesso, os carros elétricos parece terem assumido o protagonismo futurista nessa promissora nova forma de propulsão.

Toyota Prius II

Nova? Nunca! Nos anos 1830 o escocês Robert Anderson já tinha seu veículo elétrico, em 1835 Stratingh e Becker construíram um modelo pequeno, e no mesmo ano Thomas Davenport criava o seu protótipo. Em 1870, David Solomon montou pequenos carros movidos a energia elétrica, mas enfrentava um problema que ainda hoje desafia a fabricação mundial desses veículos em larga escala: a baixa autonomia em distância percorrida e o peso das baterias recarregáveis. Mas houve progresso: em 1977 a Toyota lançou o modelo Prius e vendeu 18 mil veículos; em 2000 criou um modelo híbrido, o Toyota Prius II, que recebeu da Motor Trend Magazine e da North American Auto Show o prêmio “Carro do Ano”.

Musk e seu Tesla

Elon Musk, dono de 282 bi de dólares, excêntrico playboy nascido na África do Sul em 1971 e naturalizado norte-americano, é um dândi com ideias exóticas, controversas e exibicionistas que vende ao mundo seu Tesla, de linhas esportivas e alto luxo. Deu ao carro nome de um inventor visionário, o engenheiro mecânico e elétrico sérvio-americano Nikola Tesla (1856-1943), que criou projetos de modelos com corrente alternada (AC). Os Tesla de Elon Musk alcançam mais de 250 km/h e têm autonomia acima de 480 km. O modelo Roadster, ainda em aprimoramento, pode rodar mil km sem reabastecer, um grande avanço. Pelo luxo, tecnologia e design, o Tesla de Musk, excêntrico patrocinador de curtos voos espaciais para cidadãos comuns, manda seus preços para a estratosfera. No Brasil, por exemplo, o carro chega a custar entre R$ 500 e R$ 600 mil.


Falando em Brasil, onde nós ficamos, nessa história? No passado! Em 1969, o engenheiro João Augusto do Amaral Gurgel criou o primeiro carro elétrico da América Latina, 100% produzido no país, o Itaipu E150. (A remissão a um nome indígena não era novidade para Gurgel: antes de Itaipu, o carro se chamava Ipanema, ao passo que outros foram o Tocantins, o Xavante e o Carajás). Lançado oficialmente apenas em 1974, o carro pesava 460 kg, 70% devidos às duas baterias, por um preço de aproximadamente R$ 65 mil atuais: um automóvel ainda bem rústico, com dois lugares, feito a partir de chapas planas e que chegava a 60 km/h. Fora a economia popular, poderia ter sido um projeto para um Brasil menos poluído tanto no ar que se respira quanto sonoramente. Desde que tivesse sido levado à frente com investimentos e pesquisas, mas...


O establishment brasileiro é retrógrado e cruel.  Não interessam nem a economia popular nem o meio ambiente, apenas poderosas empresas como a Petrobras, um Estado à parte ávido por volumes incríveis de cargos e dinheiro e voltado apenas para combustíveis, gás e afins. E nada de pesquisas científicas: universidades e seus centros são sucateados como contrapeso financeiro para campanhas políticas às custas da Educação, da Ciência e da Saúde.  



sexta-feira, 1 de julho de 2022

ACADEMIA DE PLATÃO E CENSURA NAS REDES SOCIAIS

 


Tempos de ditadura, certa marchinha de Miguel Gustavo atiçava o povo na copa de 1970 - “Noventa milhões em ação / pra frente, Brasil / salve a Seleção”. Nelson Rodrigues dizia “a Seleção é a pátria de chuteiras”, o ufanismo era massificador e o governo excludente: “ame-o ou deixe-o”. Outra frase, que pelo estilo pode ser também do Nelson, atualizada pelo censo demográfico: “O Brasil tem 214 milhões de técnicos de futebol”. Claro, é na rua, no estádio ou na mesa do bar que todo brasileiro diz como fulano deveria batido aquele pênalti; olha, sicrano deixou entrar; não foi mão na bola, foi bola na mão (volta e meia gritaria e não raro safanões). Coisas do Brasil, como na Argentina, porém muito menos violentas do que os Hooligans ingleses - Hooligan seria o sobrenome de um irlandês violento, do gênero “João Valentão é brigão / pra dar bofetão” (Caymmi). Sejamos todos técnicos, há espaço para todos!

Justicialistas

Quando o assunto é política não difere muito do futebol, haja vista a enorme dissensão polarizada nesta já buliçosa pré-campanha eleitoral. Comparando à Argentina, discute-se não como os barulhentos peronistas do partido Justicialista, com seus tambores e gritos, nem como os quase sempre comportados ingleses. Nos quatro cantos do Brasil, paralelamente às discussões - quer sobre futebol, quer sobre política -, é comum investir um troco nas certezas de cada um: vale apostar dinheiro, quem sabe uma rodada ou um engradado de cerveja em quem vai fazer o gol da vitória. Na política, quem será o presidente, o governador e, frequentemente, o prefeito – no interior, os cidadãos são mais simpáticos à política local, que os afeta diretamente.


Mas não é só no futebol e na política que tantos milhões de brasileiros militam em debates com a verve de especialistas, mesmo que com pouco tempo de bancos colegiais, bem mais nas escolas da vida. Ler jornal? Um grupo mais seleto, talvez, pois a TV é bastante mais deglutível. Assistindo a novelas, comenta-se – frequentemente durante um intervalo ou mesmo alguma cena – sobre as pernas da atriz tal, aqueloutro e seus olhos, com invariáveis elogios ou palpites críticos: “como ela está bem neste papel”, ou “ele não tem cara de vilão, não acha?”, avaliações que no fim das contas acabam flutuando no ambiente, familiar ou não, transformado em plateia. Sim, a tendência é assistir em grupo, pois o pulsar e a respiração de cada espectador têm o efeito de reverberar no clima da audiência.


E como não bastassem o futebol, a política e o fazer artístico, também se discute economia. Claro, sem a erudição de um PHD da Harvard, são aqueles economistas forjados na própria condição de vida, nas dificuldades do dia a dia, na inflação galopante, no crédito impossível, no estouro do cartão, no preço exorbitante da gasolina e do diesel, do tomate, da carne, tudo o que o sufoca. Afinal, as finanças, segundo Kenneth Galbraith, em seu didático A Era da Incerteza1, já andavam a passos largos quando um campesino trocava cabras por um boi, e daí até o surgimento da moeda – versátil e mais fácil de se levar (1 em livro, há versão em português, e na internet uma ótima série em vídeo).


Sobre a expertise de um cidadão acerca de determinado assunto, lembro-me de ter conhecido o respeitadíssimo comentarista de economia Joelmir Betting, falecido há dez anos, em um churrasco do maestro Eleazar de Carvalho em Interlagos, na capital de SP. Para puxar assunto, ironizei sobre ele ter chegado em um Dodge Dart, beberrão à época nada bem quisto por conta do alto consumo e dos preços nas bombas. Brinquei, e logo com ele, um economista... Pegou a caneta e um guardanapo e foi fazendo as contas diante de mim, aluno embasbacado. “Vocês compram carro popular para economizar gasolina, eu compro um “gastão” e pago a metade. Daí vocês financiam e pagam em até 5 anos, eu quito à vista e parcelas só pago cada vez que encho o tanque. Na hora de vender o carro vocês perdem dinheiro, têm dificuldade em transferir o financiamento, eu não”. Agradeci a aula e nos fartamos no lauto almoço.  Foi somente depois desse episódio que descobri: Joelmir nunca fora economista, era um jornalista formado em Ciências Sociais na turma da Ruth Cardoso!

Academia de Platão

Todas as noites, após os telejornais, gosto de assistir aos programas de opiniões e debates com empresários, médicos, filósofos, apresentadores de TV, professores, cientistas, sociólogos, enfim, pessoas de credibilidade com formações diversas, no melhor estilo da Academia de Platão, lá atrás na Grécia antiga, primórdio da universidade (~387 a.C.): discutem ou expõem suas opiniões sobre diversos assuntos. Enriquecedor, ainda mais quando eventual discordância traz à luz novos elementos, um lado elegantemente acedendo ao outro: um sim com a cabeça, um sorriso ou um piscar de olhos. A diversificação e mesmo o conflito dão rumo ao conhecimento e à raiz do verdadeiro saber. A apologia do nada é bandeira da ignorância.

Novos tempos. Com o advento das redes sociais, alguns internautas postam críticas genéricas, toscas e depreciativas à exposição de ideias e conhecimento – textos negativistas geralmente copiados de um terceiro e colados digitalmente. Sinal dos tempos, compartilham uma espécie de censura, novo estilo de mordaça, sabedoria do nada saber e da “raiva de quem sabe”; ingenuamente, pensam que “lacraram”, como diz a gíria, com a aquiescência dos mais ignorantes do que eles.  Encerro parafraseando Nelson Rodrigues: “toda censura será castigada”.