Pode gostar de novelas da TV, filmes de caubói, de ação ou sci-fi, mas há horas em que o cidadão deve reservar seu tempo a um item de primeira necessidade. Não é luxo, um debate trata do espírito e da saúde dos necessitados (e dos que “têm fome e sede de justiça”: Mateus, 5, 6); vai de encontro à angústia da classe média, a se perguntar “vou ter emprego ano que vem?”, “vou conseguir honrar minhas dívidas?”, e ainda atiça a ansiedade dos poderosos quanto às suas ações na Bolsa, aplicações financeiras e assets, ativos de todos os gêneros. Claro que a vida é mais fácil para o conformista, outsider alienado, mas nem sempre a tanto: no filme Il Conformista (1970), de Bertolucci, sobre o livro de Alberto Moravia, o cidadão, enamorado de uma moça fascista, conforma-se com o regime de Mussolini, mas termina por aderir a ele, tendo como desafio ir para a França matar seu velho professor, militante antirregime.
Bertold Brecht |
Entre exercer opção por alguma causa e alienar-se existe um abismo às profundezas. Alguns, talvez por figuras retóricas caducas, outros quem sabe por modismo ou fanatismo. O conformista do filme – Marcello, interpretado por Jean-Louis Trintignant -, era a persona do que o dramaturgo alemão Bertold Brecht descreveu como O Analfabeto Político: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, (...) do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. (...) É tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política”. Os que abraçam alguma causa que acham justa e os ‘analfabetos’ conformistas estão em extremos opostos, cabendo aos últimos abrir palácios aos poderosos com seu silêncio. Integram a vida na pólis, à imagem e semelhança das cidades-Estados gregas da antiguidade, chamadas poleis, onde, convivendo em sociedade, eram todos espécies de “animais políticos”.
A vida em sociedade é permeada de política; aliás, alimenta-se dela, justificando sua existência (eis a pólis, de onde metrópole, política!) Os cidadãos, os vizinhos, a turma da sala de aulas, e, noutro microcosmo, a família, tudo são peças do jogo social. Alguém diria: “uns são mais iguais do que os outros”, coisa que sabemos, mas outra coisa é dividir nossa pólis entre dominadores e dominados, exploradores e explorados, uma dicotomia como querem filosofias mal compreendidas, reduzindo os demais estratos a pó. Há bem mais do que isso, e o cerne da política consiste justamente na diversidade - e por que não mesmo nos conflitos, pois é deles que emergem as soluções, diz uma velha e boa filosofia.
A Academia de Platão |
A universidade – nossa academia! - não deve se propor a inocular conhecimento nos alunos de forma vertical, prática que os impede de abrir o leque dos questionamentos necessários, de fazer pensar e autocriticar-se. É preciso indagar, pensar em forma de perguntas, para que não se tenha ‘verdades absolutas’ em mãos sedutoras, porém inescrupulosas. A função do professor, mestre ou orientador, a partir de sua experiência e saber, é, ao contrário, provocar. Lembremos a Academia de Platão, criada c. 387 a.C. em Atenas, e a ideia de preparar os cidadãos desde crianças para a missão de serem filósofos-governantes que escolheriam seu próprio rei. (A Academia sobreviveu até o séc. 6, quando o imperador Justiniano, bizantino, a fechou, com o intuito de erradicar a cultura helênica pagã. E, claro, salvaguardar-se no poder).
Abre-se novo ato: em dia recentes, houve entrevistas no maior telejornal da TV. Primeiro, com o candidato Bolsonaro, em 22/08 – aos desavisados: não estava ali o presidente, mas o cidadão que também pleiteia a vaga; no dia 25/08, Lula, seu principal adversário. Não me proponho a analisa-las criticamente, não me lanço a isso mesmo porque quase todo jornalista especializado já o fez no dia seguinte, e com mais propriedade do que eu, mesmo observador atento, o faria. Apenas ressalto que os debates na TV como os que viriam, desde Kennedy x Nixon (1960), nos EUA, e em 1989, no Brasil – quase 30 anos depois -, entre Collor e Lula, na primeira eleição direta pós-ditadura, já são parte do calendário, ajudam o cidadão a equilibrar-se rumo à escolha que achar melhor. Óbvio é que a ausência de um dos dois líderes implicaria talvez na abstenção do outro, esquivando-se de se transformar na “berlinda” – ou “Judas”. E melaria o jogo democrático.
[Este segundo ato foi encerrado tendo nos
imbróglios da cena final uma cavalgata. Se cada um tivesse dado a melhor
contribuição para seus esclarecimentos – rebatendo com dignidade os ataques,
atingindo pontos fracos com elegância, desvendando mentiras com verdades ou até
exaltando virtudes alheias sobranceiras, teria sido admirável missão, embora
quase impossível].
Contudo, também não baixou o espírito de Macbeth (c. 1603), tragédia do dramaturgo inglês William Shakespeare cujo papel-título é um general pronto para matar o rei da Escócia: “Porque o tempo se volta contra mim / devo apressar meus planos cruéis (...) / A todos, matarei pelo fio da espada”. O suposto Macbeth desta trama não desembainhou sua adaga matando quem estivesse ao redor: digladiaram-se vários, e o temor da degola não matou o rei Duncan, apenas o enervou. A pior tragédia possível desta encenação seria desaguar em um desastre para o país. O ato do debate é parte essencial de um drama moderno e grandioso, mesmo que por tortuosos caminhos: a democracia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário