LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sexta-feira, 24 de março de 2023

O QUE FARÃO COM A NOSSA LÍNGUA?

 


R
ecentemente minha filha, química que mora na Bélgica, ao ler uma decisão judicial que lhe mandei porque nos interessava, perguntou-me: por que juízes e advogados escrevem tão complicado? Não poderiam fazê-lo de um jeito que todo mundo pudesse entender? (A primeira coisa que me veio à cabeça foi: por que vocês químicos, teóricos e laboratoristas também não redigem de forma mais simples, sem hieroglifos, para que todos compreendam?) Respondi de forma mais ou menos simples: é uma espécie de linguagem formal da profissão. Há fórmulas e vocabulário consagrados nesse jargão forense que são usados daqui ao Oiapoque e ao Chuí, viajando para lá e para cá entre palavras e expressões latinas. Não é uma linguagem concebida ‘para todo mundo entender’, ela visa apenas ao seleto grupo que participa de determinado assunto ou processo, que está envolvido nele ou no estudo de seu fazer. E isso também vale para os técnicos em astronomia, virologia, especialistas em inteligência artificial e por aí vai. E abriga o dialeto particular de neurocientistas, lexicólogos e psicanalistas, assim por diante.

Florestan Fernandes

O
estudo de algum assunto muito específico – voltemos aqui à música popular - pode ser, digamos assim, “eruditado”, na medida em que quem examina o assunto usa uma visão analítica complexa, com certeza apenas para ser entendida pela sua classe, e não o público em geral. Um bom exemplo dei outro dia acerca da própria palavra ‘erudição’, a respeito de uma antiga polêmica acerca da expressão “música erudita”, que teria – grifo, teria! - sido criada por Mário de Andrade. Mas nem perto, Mário fez apenas uma alusão a um certo ‘transporte erudito’ do eminente professor Florestan Fernandes (“Mário de Andrade e o Folclore Brasileiro”. SP: Revista do Arquivo Municipal, vol. XCI, 1946): “Os contatos iniciais da arte popular com o folclórico, portanto, perdem o caráter de um compromisso estreito com a tradição para adquirir, ao contrário, o caráter de libertação natural do tradicional”. (Em tempo: tive a honra de ter sido colaborador em estudos de políticas públicas na área da Cultura do Instituto Florestan Fernandes para a cidade de S. Paulo).

Mário de Andrade e Câmara Cascudo

E
ste conceito de Fernandes, a “transposição do folclore para o campo erudito”, claro, é o de um sociólogo de vulto, não o de um folclorista. A passagem da “transposição do folclore para o campo erudito”, deve, sim, ser creditada a ele, Florestan Fernandes, Patrono da Sociologia Brasileira (Lei nº 11.325/2006). Processo visto, portanto, mais aos olhos de um cientista social do que de folcloristas como Mário de Andrade e Câmara Cascudo.

"Croquettes"

S
egundo o conceituado etimólogo Deonísio da Silva, em seu “De Onde Vêm as Palavras” (RJ: Ed. Lexicon, 2004), erudito vem do latim eruditus, “palavra formada de ex rudis- aquele que deixou de ser rude, (...) tornou-se instruído”, com toda a carga de preconceito que essa origem possa trazer. Designa também os que, como o pedante gramático Antônio de Castro Lopes, rejeitam as contribuições populares de nossa língua: propôs substituir abajur por ‘lucivelo’, anúncio por ‘preconício’, cachecol por ‘castelete’. Machado de Assis deu-lhe o troco: “nunca comi croquettes, por mais que digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boef, com a restrição mental de estar comendo lombo de vaca”. Completa dizendo que “fillet de boeuf virou (...) bife, apenas,
com um sotaque meio ridículo. “Os gramáticos, como o sapateiro de Apeles, não podem sair das sandálias” (dar pitaco em assunto que não conhecem).

Assino a comparação de Machado, que fez um acréscimo de fina ironia: “...à semelhança dos sexólogos, que podem orientar-nos; jamais nos substituir na hora de falarmos ou escrevermos”. A proposta do gramático Antônio de Castro Lopes de “eruditar” a língua chega a ser ridícula, enquanto a fala de Machado rebatendo-o é simplesmente hilária e saborosa. Lembra de novo o próprio Mário de Andrade: “Você sabe o que é singe, mas não sabe o que é guariba. Pois é macaco, seu mano, que só sabe o que é da ‘estriba’” (você sabe o que é singe [macaco, em francês], mas não sabe o que é guariba [em português] ...e só sabe o que é ‘da estriba’, estrangeiro).

Estratégias eruditas para uma nova arte: 

Caros amigos, o desenvolvimento contínuo de distintas formas de atuação nos obriga à análise das posturas dos órgãos dirigentes com relação às suas atribuições. Por outro lado, a consulta aos diversos militantes talvez venha a ressaltar a relatividade das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. Não obstante, a contínua expansão de nossa atividade pode nos levar a considerar a reestruturação das novas proposições.


N
ão, não fui eu o autor: este último parágrafo foi 100% elaborado por um mecanismo da Internet chamado “Gerador de Lero-lero”, e não quer dizer coisa alguma (conheça em lero-lero.bgn.com.br). O “Gerador” é uma simples brincadeira, mas pegou e ainda faz “piada séria” sobre qualquer assunto. Hoje, já existe uma forma aprimorada de inteligência artificial, bem à frente do Gerador, que chega a enganar os mais incautos: o ChatGPT (link: openai.com), mecanismo de software extremamente complexo, capaz de maravilhas que parece fazerem sentido, ou quase, elaborando textos com aparente exatidão. Aparente. Só imagino o que essa ferramenta poderá fazer, sozinha, com o universo erudito, muito em breve. Um “samba do crioulo doido” em tempos de informática de última geração. 

O que farão com a nossa língua?

 

sábado, 18 de março de 2023

COBRA ENGOLINDO COBRA

 


Recebi um aviso no celular para que os condôminos de onde eu moro limpem e capinem seus terrenos, se vazios, para evitar animais peçonhentos que costumam se alojar entre restos de obras, capim, madeira. Coisa comum onde há mato, áreas verdes como um bosque, lugar onde eles se escondem, entre preás, carcarás e outros bichos. Junto com o texto, a foto de uma cobra enrolada em um poste, lembrando uma das inúmeras ilustrações de Adão e Eva: a árvore do mal, e ambos no paraíso prestes a cometerem o pecado da maçã proibida. Aqui não era uma cobra imensa, como em algumas daquelas ilustrações, nem tinha cara de capeta ou era mais parruda do que o tronco, como em outras. Mas era uma cobra de se tirar o chapéu (e passar correndo)! O condomínio vizinho, já totalmente construído, optou por predadores de peçonhentos como escorpiões: vê-se aqui e ali grupos de pavões, angolas ciscando sabe-se lá o quê, e com sua técnica especial cortam o ferrão do aracnídeo, onde fica o perigoso aguilhão (fonte: Fiocruz).


Mas e a expressão “ver a cobra fumar”? Lembra algo como “galinha criar dente”. Bom, por volta de 1944 corria pelo Brasil o boato de que o país entraria na 2ª Guerra Mundial. A hipótese parecia tão impossível que jornalistas, de chacota, fizeram uma aposta: era mais fácil ver uma cobra fumar do que o Brasil ingressar no conflito (melhor do que galinha criar dente). Pois não é que entrou, e a Força Expedicionária Brasileira (FEB), por ironia, passou a usar como símbolo uma cobra fumando um cachimbo? Toda verde, fundo amarelo, sob um dístico azul onde se lê, em branco - as cores da Bandeira Nacional! - “Brasil”. Um ano antes, o primeiro Grupo de Aviação de Caça criara seu logo: um avestruz com um escudo representando o Cruzeiro do Sul, na asa direita uma arma expelindo uma bala. “Senta a Pua”, bradavam os soldados da aeronáutica, e daí surgiram brasão e lema de combate da Força Aérea.


“A cobra vai fumar” traz uma aura de medo, como “o bicho vai pegar”, e às vezes “é hora da decisão”. Agora, se for por ordem sabe-se lá de quê ou quem – “cobra mandada”, segundo nosso rico folclore -, é um modo de dizer que sob a ordem de alguém do mal fará o mal. O folclorista Câmara Cascudo diz que “cobra mandada” veio da cantiga da roça “os olhos dele são de ‘cobra mundiada’”, entendendo-se por “mundiado” o jeito de olhar de alguém meio que hipnotizado para cumprir o mando do mal. Já quando se diz que fulano gritou “cobras e lagartos” é porque a pessoa falou coisas terríveis sobre outrem. E “copla” era uma deliciosa forma poética espanhola de métrica variável da Idade Média, como o villancico, com coplas (estrofes) variáveis. Na América Latina, casta e pura, a copla veio a mesclar-se de vez às canções de Natal.


Algumas expressões associam “cobra” a experiente, com expertise em algum assunto, tal como “ele é cobra nisso” (ou, ao contrário, malaco, “cobra criada”). Não somente nas coisas ruins, às vezes tem um lado bom. Pois se “ninho de cobras” é lugar onde vai gente ruim, pode ser também o da elite experta. Há cobras na música: o serpentão, instrumento sinuoso de sopro criado na França do século 16, e sua variante “serpent d’église” (de igreja), entre vários outros. Há a dança do fandango paulista que é brincada serpenteando – daí o “cobra” -, nome também da “cobrinha”, um passo jocoso do maxixe. Cobra, na cultura popular, tem essa ideia de fila, como em “olha lá vai passando a procissão / se arrastando que nem cobra /pelo chão” (G. Gil).


Não é sem um pouco de maldade que se diz “matar a cobra e mostrar o pau”, algo como “resolver o assunto e provar”, geralmente em auto-exibição. Haja vista a historieta contada por Monteiro Lobato, em seu livro “Fábulas” (SP: Ed. Brasiliense, 1960), “O homem e a cobra”: nesta fábula, ao encontrar uma cobra ferida, ele a levou ao peito, para aquecê-la, e chegando em casa colocou-a junto ao fogão. Saiu para trabalhar e, ao retornar, lá estava ela toda cheia, com a língua esticada, em posição de bote. O sujeito, furioso, armou-se de um pedaço de pau e a matou, chamando-a de ingrata. Diz-se que se alguém mata a cobra a pauladas e, como fosse um estandarte, ele a exibe, é para mostrá-la como troféu. Já cobra que perde o veneno é o gaiato que fica atormentado com algo ruim que lhe aconteceu, mas é incapaz de reagir.


Ah, elas são terríveis: podem ser más ou nem tanto, mais dóceis ou assassinas; dão nome a danças, instrumentos ou festejos de procissões, são o fiel da balança do mal entre Adão e Eva ou, ao contrário, o mensageiro da tentação. Na farmácia, o cálice está associado à cura, e a serpente ao saber, à ciência. Mais ainda: na medicina, Asclépio, deus da cura na mitologia grega, tem em seu bastão a cobra-símbolo do espiritual sobre o corporal, a própria constante renovação (troca de pele, ou couro), entre a luta para salvar e o risco ver morrer; também se atenua ou anula um veneno com o seu próprio (e não seria essa a base para vacinas e tratamentos alternativos, como a homeopatia?).


Pelo sim, pelo não, mesmo havendo aqui e ali um lado simpático no popular, é de bom alvitre carpinar o mato, como se diz no interior, para afastar o risco desses animais peçonhentos, como as cobras-Quixotes e suas companheiras Sancho Panza, as lagartas. “Cobra engolindo cobra” é briga sem fim, de igual para igual, dizem os jagunços; é cantoria em ‘moto perpétuo’, estrofes de duas palavras – cobra e engolindo - repetidas emendadamente, como rosca sem-fim. 

Bora, povo, carpinar, roçar e limpar o matagal!



 

sexta-feira, 10 de março de 2023

ERUDITOS E ERUDÍPTEROS

 


M
udei-me para Boston (EUA), em 1977, e fiquei em um apartamento na cidade de Brighton, em New England, onde morava um saxofonista brasileiro, Zé Nogueira. Lá conheci o outro morador, o guitarrista argentino Victor Biglione, tão bom nos acordes e floreados quanto nas brincadeiras. Vendo-me estudar quase o tempo todo – m’apparecchiava a sostener la guerra, como Dante em La Divina Commedia -, deu-me um apelido: “erudíptero”. Fazia uma troça com a palavra erudito e algo pré-histórico, como o pássaro-dinossauro pterodáctilo. Não me importava, devolvia-lhe a brincadeira (incomodava-me a sombra pré-histórica, talvez). Nos EUA simplesmente não existe a expressão “música erudita” – como de resto na Inglaterra, na Alemanha, na França, na Itália e todos os demais; não me incomodava a pecha, coisa de Brasil, eu só não sabia o real significado, que viria a descobrir mais tarde.  

Universidade de Coimbra

A
erudição é um bem, desenvolve a capacidade de investigar e analisar - é algo como sapiência, diz o dicionário. E lembra aqueles jovens de beca, toga e capelo da Universidade de Coimbra, Portugal, instituição fundada em 1.290 e homologada em 1.537. Mas em Portugal não existe a tal “música erudita”! Em italiano, é erudizione, em inglês, erudition, em espanhol erudición, em francês érudition e em alemão Gelehrsamkeit – como palavras isoladas, nunca em uma expressão tal qual ‘música erudita’. Usa-se Klassischemusik, classical music, musique classique e por aí vai. E nós, por que não música clássica? Estrangeiros esticam o pescoço e franzem as sobrancelhas quando ouvem alguém daqui dizer “música erudita” (foi esta a reação do maestro alemão Felix Krieger). Tal reflexão foi o Vitinho quem me despertou, via “erudíptero”, logo ele que estudava guitarra até no armário, com as escusas pela indiscrição.


N
o Rio de Janeiro praticamente inexiste a expressão “música erudita”. O comum é lermos “música clássica”, ou “de concerto”, contexto bem mais amplo e flexível – o que é natural, gêneros não ficam trancafiados em gavetas, eles se comunicam, se tocam, se trocam. Eu, pessoalmente, prefiro “de concerto”, e por onde estive foi o que levei. Linguagens se encontram, multiplicam-se. Razão de eu ter escrito um artigo para a Revista Concerto, de circulação nacional, intitulado “por que eu odeio música erudita”. Defendi que as origens da estranha expressão estariam no Rio, mais precisamente na Universidade do Brasil (hoje ENM da UFRJ) e na criação da OSN (Orquestra Sinfônica Nacional). No primeiro caso, para justificar a criação de cargos de professor de música na carreira universitária em uma época em que tal curso sequer existia (e, não havendo curso superior na área, não haveria, claro, diplomas para os candidatos ingressarem). Os músicos foram equiparados aos seus colegas “eruditos” de Direito na Universidade. No segundo caso, em 1960 – ano da criação da Orquestra Sinfônica Nacional -, criou-se no quadro de cargos e salários o título “professor de orquestra”, para que o músico pudesse receber vencimentos mais dignos, como os dos seus colegas universitários.


E
ssa discussão SP-RJ quase seria um jogo Fla-Flu entre paulistas (incluindo eu, mineiro!) e cariocas. Com alguma razão o grande pesquisador Flávio Silva escreveu na edição seguinte da revista que isso de “erudito” teria sido invenção paulista. Ora, que fosse, meio de longe, com Mário de Andrade, talvez, mas vale explicar melhor em que contexto ele teria inserido essa erudição, conforme alguns relatos, como os do estudioso Henrique L. Alves (em “Mário de Andrade”, Ed. Ibrasa). O grande educador paulistano defendia as raízes brasileiras da nossa música, bom pesquisador de folclore que era. Assim, achava que o compositor deveria fazer em sua obra uma “transposição erudita” dos elementos de raiz para sua composição. Isso foi só, Andrade ele mesmo nunca se referiu à música dos salões sinfônicos, de ópera ou recitais sob o epíteto de “música erudita”. Enfim, foram dois artigos nossos com intervalo de um mês, colóquio que poderia ter sido espichado para o futuro, não fosse o inesperado falecimento do pesquisador Flávio Silva, em 8/10/2019.

Camargo Guarnieri

Erudíptero”, ideia do Vitinho (apelido do Victor Biglione) ressurgiu em minha cabeça há dias como uma anedota, após ler um trecho sobre o Mário de Andrade na tese de PhD da minha filha Marta, que vive em Londres, cujo objeto de estudo foi o tieteense Camargo Guarnieri, ex-aluno – como se sabe, muito bem aplicado - de Andrade (vide os choros, ponteios e modinhas do compositor). Passadas décadas, a brincadeira do Victor passou a fazer mais sentido: “música erudita” seria um antigo animal paquidérmico, pura ironia. Quanto ao saudoso Flávio Silva, hoje concordo que em parte lhe assistia alguma razão. Enfim, concluo agora, “nada como a tintura do tempo”, como diz um provérbio inglês, pois, divergências esclarecidas, poderíamos discutir de forma mais saudável. Aos que abusam de “música erudita”, um alerta, o rótulo não agrega público: usará ele, o povo, um dicionário para saber-lhe o significado, se isso pesar na decisão de ir ou não ao concerto? Zé Povino só gosta daquilo que ele “re”-conhece, como disse McLuhan - e se vê excluído dessa “música erudita”. “O artista só tem que dar, pros elementos já existentes, uma transposição erudita que faça da música popular música artística”, disse Mário de Andrade.  E foi só isso aí.

No dia 5 de março comemorou-se o “Dia Nacional da Música Clássica” (Decreto de 13/01/2009). Felicidades!

Mário de Andrade


 

sexta-feira, 3 de março de 2023

DEUS E O DILÚVIO NA TERRA DO SOL

 


A
água é implacável. Tanto que Deus confiou a Noé, homem de coração puro, que um imenso dilúvio sobreviria, cobrindo a Terra até que toda a vida desaparecesse. E mandou-o construir uma enorme arca, de dimensões suficientes para transportar a bordo o que deveria levar na missão, a salvo do castigo. Ele queria que Noé, sua família e animais, sobrevivessem ao dilúvio, para ao final começarem o repovoamento da Terra: raça humana e fauna. E Deus fez-lhe o plano nos mínimos detalhes: “Você fará uma arca em madeira gofer, depois divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (Genesis, 6:14). O dilúvio seria tanto um grande castigo pelo mal que imperava na Terra quanto sua purificação; a arca, travessia segura para recomeçar o mundo.


F
evereiro de 2023. O longo e caudaloso temporal que achacou o Litoral Norte de São Paulo não chegou a volumes ínfimos se comparado com o que descreve o Gênesis a título de lição, mas ceifou – até a manhã do dia 24 - a vida de 52 pessoas. Deixou um enorme número de feridos, 2,5 mil desabrigados e incontáveis órfãos, parentes e amigos dos mortos ou desaparecidos. Foram necessários 200 bombeiros e 100 homens do efetivo do Exército para salvar, tratar, e para escavar os rescaldos de uma guerra implacável e o desespero. Faltou água potável, preciosidade que chegou a ser vendida por atravessadores a 90 reais a garrafa -indivíduos que não respeitam sequer o sofrimento humano para seu injustificável e egoísta proveito financeiro. Sem dizer da fome, dos alimentos destruídos ou levados pelo barro e até mesmo pelos piratas da lama, ávidos por saquear o que surgisse. Esqueceu-se das infecções, hepatite, leptospirose, gastroenterite, tétano e uma série de outras ameaças que acossam as vítimas desses flagelos. E o medo, um medo de ser impossível a fuga daquele tormento sem limites.


D
ebates sobre ações preventivas são intermináveis e não são de ontem. Guilherme Simões, secretário nacional de Políticas para Territórios Periféricos do Ministério das Cidades, irritado, pegou no fígado, em entrevista ao UOL (22/02): “Defender que para prevenir desastres é simplesmente retirar as pessoas das áreas de risco é falta de senso de realidade. Tirar para onde? Sem uma política de moradia você retira a família e ela vai para outra área de risco”.  Politicamente, a curto prazo essa remoção de moradores das encostas traz algum efeito, saneia cosmeticamente. E foi preciso um secretário de ministério para alertar que o problema é mais complexo e demorado – pior ainda, demanda continuidade de obras passadas as eleições! “Obras para prevenir tragédias das chuvas não geram voto”, completou.

Caraguá 1967

M
as não foi um recorde. Números não escalam as estatísticas em linha reta, crescem oscilando em volume e frequência. Ora, em março de 1967, quando as condições de infraestrutura e moradia eram ainda mais precárias, Caraguatatuba, também no Litoral Norte de São Paulo e então com apenas 15 mil habitantes, viu uma tormenta desabar e levar 400 vidas, deixando outras centenas desaparecidas. Na manhã do dia seguinte, o jornal A Tarde dava como manchete: “Em dez minutos, quatrocentos mortos”, cabeça de matéria farta de descrições lúgubres de um cenário que mais parecia o de um abatedouro. Se, nos dias de hoje, as condições de permeabilização da terra para absorção de enormes volumes de água são péssimas, imagine há 56 anos. Permeabilizar, escorar morros e encostas, canalizar córregos, construir casas populares de boa alvenaria e, em suma, criar estruturas condizentes com o reerguimento da cidade eram sonhos futuros, mas esses sonhos ainda repousam na imaginação.


V
oltando para São Sebastião/Bertioga: 57 mortos (25/02). O volume de chuva se superou: 683 mm, ou seja, 68,3 cm por metro quadrado. Carlos Nobre (ex-Inpe), o mais reputado climatologista brasileiro, reforça que eventos climáticos como essa catástrofe estão e se tornarão cada vez mais frequentes. Os que acreditam que esses desastres são glamourizados por organizações “de esquerda” que copiam modismos de primeiro mundo vão morder a própria língua, e, muito pior, desabrigar, ferir e mesmo tirar vidas humanas. Fauna, flora e o complexo do meio ambiente estão juntos com o ser humano nesta aventura da vida, ou, fazendo um paralelo com a lição de Noé, nesta arca imaginária da qual fazemos parte.  O climatologista fez o alerta dizendo que as recentes tempestades do litoral norte paulista foram três vezes maiores do que aquilo que os modelos de previsão utilizados indicavam. E que é um desafio enorme para a ciência conseguir antecipar que esses picos gradualmente mais altos possam ser previstos na natureza a cada ano, no mundo inteiro.


D
e todas as observações feitas sobre o assunto, a que parece mais pertinente é a sábia frase – não uma tese, pura constatação - do secretário do Ministério das Cidades, Guilherme Simões: “Obras para prevenir tragédias das chuvas não geram voto”. Eis o ponto. Com pouca verba ou dinheiro mal empregado para manutenção da cidade, resta menos ainda, quem sabe, do que é visível para a população e nada rende em dividendos eleitorais. Pois se assim o é, que diria da nada vistosa e insossa engenharia de salvaguarda da população? O povo, voluntário, a sociedade civil, em geral, e mesmo entidades e empresas podem doar víveres e até emprestar sua mão de obra. Mas nunca farão o milagre de substituir o que aqueles que de direito e de fato deveriam fazer: a sua parte ao administrar as cidades.