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sexta-feira, 3 de março de 2023

DEUS E O DILÚVIO NA TERRA DO SOL

 


A
água é implacável. Tanto que Deus confiou a Noé, homem de coração puro, que um imenso dilúvio sobreviria, cobrindo a Terra até que toda a vida desaparecesse. E mandou-o construir uma enorme arca, de dimensões suficientes para transportar a bordo o que deveria levar na missão, a salvo do castigo. Ele queria que Noé, sua família e animais, sobrevivessem ao dilúvio, para ao final começarem o repovoamento da Terra: raça humana e fauna. E Deus fez-lhe o plano nos mínimos detalhes: “Você fará uma arca em madeira gofer, depois divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (Genesis, 6:14). O dilúvio seria tanto um grande castigo pelo mal que imperava na Terra quanto sua purificação; a arca, travessia segura para recomeçar o mundo.


F
evereiro de 2023. O longo e caudaloso temporal que achacou o Litoral Norte de São Paulo não chegou a volumes ínfimos se comparado com o que descreve o Gênesis a título de lição, mas ceifou – até a manhã do dia 24 - a vida de 52 pessoas. Deixou um enorme número de feridos, 2,5 mil desabrigados e incontáveis órfãos, parentes e amigos dos mortos ou desaparecidos. Foram necessários 200 bombeiros e 100 homens do efetivo do Exército para salvar, tratar, e para escavar os rescaldos de uma guerra implacável e o desespero. Faltou água potável, preciosidade que chegou a ser vendida por atravessadores a 90 reais a garrafa -indivíduos que não respeitam sequer o sofrimento humano para seu injustificável e egoísta proveito financeiro. Sem dizer da fome, dos alimentos destruídos ou levados pelo barro e até mesmo pelos piratas da lama, ávidos por saquear o que surgisse. Esqueceu-se das infecções, hepatite, leptospirose, gastroenterite, tétano e uma série de outras ameaças que acossam as vítimas desses flagelos. E o medo, um medo de ser impossível a fuga daquele tormento sem limites.


D
ebates sobre ações preventivas são intermináveis e não são de ontem. Guilherme Simões, secretário nacional de Políticas para Territórios Periféricos do Ministério das Cidades, irritado, pegou no fígado, em entrevista ao UOL (22/02): “Defender que para prevenir desastres é simplesmente retirar as pessoas das áreas de risco é falta de senso de realidade. Tirar para onde? Sem uma política de moradia você retira a família e ela vai para outra área de risco”.  Politicamente, a curto prazo essa remoção de moradores das encostas traz algum efeito, saneia cosmeticamente. E foi preciso um secretário de ministério para alertar que o problema é mais complexo e demorado – pior ainda, demanda continuidade de obras passadas as eleições! “Obras para prevenir tragédias das chuvas não geram voto”, completou.

Caraguá 1967

M
as não foi um recorde. Números não escalam as estatísticas em linha reta, crescem oscilando em volume e frequência. Ora, em março de 1967, quando as condições de infraestrutura e moradia eram ainda mais precárias, Caraguatatuba, também no Litoral Norte de São Paulo e então com apenas 15 mil habitantes, viu uma tormenta desabar e levar 400 vidas, deixando outras centenas desaparecidas. Na manhã do dia seguinte, o jornal A Tarde dava como manchete: “Em dez minutos, quatrocentos mortos”, cabeça de matéria farta de descrições lúgubres de um cenário que mais parecia o de um abatedouro. Se, nos dias de hoje, as condições de permeabilização da terra para absorção de enormes volumes de água são péssimas, imagine há 56 anos. Permeabilizar, escorar morros e encostas, canalizar córregos, construir casas populares de boa alvenaria e, em suma, criar estruturas condizentes com o reerguimento da cidade eram sonhos futuros, mas esses sonhos ainda repousam na imaginação.


V
oltando para São Sebastião/Bertioga: 57 mortos (25/02). O volume de chuva se superou: 683 mm, ou seja, 68,3 cm por metro quadrado. Carlos Nobre (ex-Inpe), o mais reputado climatologista brasileiro, reforça que eventos climáticos como essa catástrofe estão e se tornarão cada vez mais frequentes. Os que acreditam que esses desastres são glamourizados por organizações “de esquerda” que copiam modismos de primeiro mundo vão morder a própria língua, e, muito pior, desabrigar, ferir e mesmo tirar vidas humanas. Fauna, flora e o complexo do meio ambiente estão juntos com o ser humano nesta aventura da vida, ou, fazendo um paralelo com a lição de Noé, nesta arca imaginária da qual fazemos parte.  O climatologista fez o alerta dizendo que as recentes tempestades do litoral norte paulista foram três vezes maiores do que aquilo que os modelos de previsão utilizados indicavam. E que é um desafio enorme para a ciência conseguir antecipar que esses picos gradualmente mais altos possam ser previstos na natureza a cada ano, no mundo inteiro.


D
e todas as observações feitas sobre o assunto, a que parece mais pertinente é a sábia frase – não uma tese, pura constatação - do secretário do Ministério das Cidades, Guilherme Simões: “Obras para prevenir tragédias das chuvas não geram voto”. Eis o ponto. Com pouca verba ou dinheiro mal empregado para manutenção da cidade, resta menos ainda, quem sabe, do que é visível para a população e nada rende em dividendos eleitorais. Pois se assim o é, que diria da nada vistosa e insossa engenharia de salvaguarda da população? O povo, voluntário, a sociedade civil, em geral, e mesmo entidades e empresas podem doar víveres e até emprestar sua mão de obra. Mas nunca farão o milagre de substituir o que aqueles que de direito e de fato deveriam fazer: a sua parte ao administrar as cidades.

 

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