A água é implacável. Tanto que Deus confiou a Noé, homem de coração puro, que um imenso dilúvio sobreviria, cobrindo a Terra até que toda a vida desaparecesse. E mandou-o construir uma enorme arca, de dimensões suficientes para transportar a bordo o que deveria levar na missão, a salvo do castigo. Ele queria que Noé, sua família e animais, sobrevivessem ao dilúvio, para ao final começarem o repovoamento da Terra: raça humana e fauna. E Deus fez-lhe o plano nos mínimos detalhes: “Você fará uma arca em madeira gofer, depois divida-a em compartimentos e revista-a de betume por dentro e por fora” (Genesis, 6:14). O dilúvio seria tanto um grande castigo pelo mal que imperava na Terra quanto sua purificação; a arca, travessia segura para recomeçar o mundo.
Fevereiro de 2023. O longo e caudaloso temporal que achacou o Litoral Norte de São Paulo não chegou a volumes ínfimos se comparado com o que descreve o Gênesis a título de lição, mas ceifou – até a manhã do dia 24 - a vida de 52 pessoas. Deixou um enorme número de feridos, 2,5 mil desabrigados e incontáveis órfãos, parentes e amigos dos mortos ou desaparecidos. Foram necessários 200 bombeiros e 100 homens do efetivo do Exército para salvar, tratar, e para escavar os rescaldos de uma guerra implacável e o desespero. Faltou água potável, preciosidade que chegou a ser vendida por atravessadores a 90 reais a garrafa -indivíduos que não respeitam sequer o sofrimento humano para seu injustificável e egoísta proveito financeiro. Sem dizer da fome, dos alimentos destruídos ou levados pelo barro e até mesmo pelos piratas da lama, ávidos por saquear o que surgisse. Esqueceu-se das infecções, hepatite, leptospirose, gastroenterite, tétano e uma série de outras ameaças que acossam as vítimas desses flagelos. E o medo, um medo de ser impossível a fuga daquele tormento sem limites.
Debates sobre ações preventivas são intermináveis e não são de ontem. Guilherme Simões, secretário nacional de Políticas para Territórios Periféricos do Ministério das Cidades, irritado, pegou no fígado, em entrevista ao UOL (22/02): “Defender que para prevenir desastres é simplesmente retirar as pessoas das áreas de risco é falta de senso de realidade. Tirar para onde? Sem uma política de moradia você retira a família e ela vai para outra área de risco”. Politicamente, a curto prazo essa remoção de moradores das encostas traz algum efeito, saneia cosmeticamente. E foi preciso um secretário de ministério para alertar que o problema é mais complexo e demorado – pior ainda, demanda continuidade de obras passadas as eleições! “Obras para prevenir tragédias das chuvas não geram voto”, completou.
Caraguá 1967
Mas
não foi um recorde. Números não escalam as estatísticas em linha reta, crescem oscilando
em volume e frequência. Ora, em março de 1967, quando as condições de
infraestrutura e moradia eram ainda mais precárias, Caraguatatuba, também no Litoral
Norte de São Paulo e então com apenas 15 mil habitantes, viu uma tormenta desabar
e levar 400 vidas, deixando outras centenas desaparecidas. Na manhã do dia
seguinte, o jornal A Tarde dava como manchete: “Em dez minutos, quatrocentos
mortos”, cabeça de matéria farta de descrições lúgubres de um cenário que mais parecia
o de um abatedouro. Se, nos dias de hoje, as condições de permeabilização da
terra para absorção de enormes volumes de água são péssimas, imagine há 56
anos. Permeabilizar, escorar morros e encostas, canalizar córregos, construir casas
populares de boa alvenaria e, em suma, criar estruturas condizentes com o reerguimento
da cidade eram sonhos futuros, mas esses sonhos ainda repousam na imaginação.
Voltando para São Sebastião/Bertioga: 57 mortos (25/02). O volume de chuva se superou: 683 mm, ou seja, 68,3 cm por metro quadrado. Carlos Nobre (ex-Inpe), o mais reputado climatologista brasileiro, reforça que eventos climáticos como essa catástrofe estão e se tornarão cada vez mais frequentes. Os que acreditam que esses desastres são glamourizados por organizações “de esquerda” que copiam modismos de primeiro mundo vão morder a própria língua, e, muito pior, desabrigar, ferir e mesmo tirar vidas humanas. Fauna, flora e o complexo do meio ambiente estão juntos com o ser humano nesta aventura da vida, ou, fazendo um paralelo com a lição de Noé, nesta arca imaginária da qual fazemos parte. O climatologista fez o alerta dizendo que as recentes tempestades do litoral norte paulista foram três vezes maiores do que aquilo que os modelos de previsão utilizados indicavam. E que é um desafio enorme para a ciência conseguir antecipar que esses picos gradualmente mais altos possam ser previstos na natureza a cada ano, no mundo inteiro.
De todas as observações feitas sobre o assunto, a que parece mais pertinente é a sábia frase – não uma tese, pura constatação - do secretário do Ministério das Cidades, Guilherme Simões: “Obras para prevenir tragédias das chuvas não geram voto”. Eis o ponto. Com pouca verba ou dinheiro mal empregado para manutenção da cidade, resta menos ainda, quem sabe, do que é visível para a população e nada rende em dividendos eleitorais. Pois se assim o é, que diria da nada vistosa e insossa engenharia de salvaguarda da população? O povo, voluntário, a sociedade civil, em geral, e mesmo entidades e empresas podem doar víveres e até emprestar sua mão de obra. Mas nunca farão o milagre de substituir o que aqueles que de direito e de fato deveriam fazer: a sua parte ao administrar as cidades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário