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sexta-feira, 28 de abril de 2023

TRANSGÊNEROS, ARQUEOLOGIA E IDIOMA

 


V
ilma Gryzinski publicou na Veja de 19/4/2023 o artigo “Os EUA também estão na ‘decadança’”? (“O declínio da superpotência tem algum fundo de verdade”). Discorre sobre tudo, citando uma ironia do intelectual conservador francês Patrick Buisson: “a sociedade ocidental se suicida dançando”. Fala de delírio coletivo e até de uma seita adepta de princípios radicais. Cito uma aberração destacada por Gryzinski, entre outros apontamentos: “...sem contar que o mundo da ciência está sendo assolado pela mesma doença ocidental da autocrítica alucinada, além de acusações de que a matemática, a física e outras áreas são racistas e sexistas. E quanto mais absurda a tese mais sucesso faz na academia: até a arqueologia entrou na dança, com a promessa de uma ala ‘anarquista’ de não mais definir o sexo das ossadas ancestrais, para não designar erradamente esqueletos – acredite se quiser - que tinham opção de gênero diferente daquela que os ossos e o DNA nos contam”.


S
im, é isso! Parece necessário respeitar a opção sexual de esqueletos da pré-história (sic), sua escolha de gênero. E daí a generalizarmos e cairmos no engodo que toda generalização traz, podemos crer que a essa altura tais “antropólogos anarquistas” já estão lá na frente a fazer a taxonomia (classificação sistemática em categorias) dos animais pré-históricos trans: dinossaures, brontossaures, pterodátiles e outros, ficando dispensados alguns como os T-rex, que já vêm com a desinência (fim, sufixo) “x” pronta: haja ‘anarquismo’. Além de desinventarem nosso vocabulário parece quererem avançar sobre outras ciências, além da arqueologia. Misture-se bem tudo isso, acrescente-se a dita “inteligência artificial”, algumas pitadas de modismo e teremos aí o homo ignorant” dos novos tempos: feito para repetir as asneiras que lhe ensinam–programam e assumir seu personagem, negando o conhecimento científico anterior. Pronto para vigiar e ser vigiado por seus pares, algo como no surreal filme “Alphaville” (1965), do francês Jean-Luc Godard (onde, numa cidade imaginária, além de obrigada a seguir os frios ditames do computador central, “Alpha-Soissante”, ‘desvios’ como falar de amor eram proibidos,). Há uma corrida científica, na área do chamado STEM (ciências da tecnologia, engenharia, matemática e natureza): a China, prestes a se tornar a maior economia do mundo, prepara quase cinco milhões de graduandos por ano, enquanto os EUA fazem menos de 500 mil, cada vez mais sujeitos a modismos e ideias malucas.


D
o lado de cá, na banda brasileira, qual seria o papel de um professor sério nesse imbróglio crescente? Afastar a grafia incorreta, pois embora aparentemente muito mais simples, a pseudomoderna de hoje só coaduna muito bem com a escrita de dois ágeis polegares digitando no teclado de “smartphones”; ensinar o que se chama “norma culta”, que vem a ser o conjunto de regras e padrões linguísticos empregados por pessoas de alta escolaridade, tal qual a língua falada e escrita por juristas, pesquisadores e cientistas. Ou seja: a turma das ossadas transexuais dos “x” ou “es” não entra.

Charles Dickens

N
ada contra a gíria bem usada e os neologismos bem escolhidos, além da transexualidade – afinal, os idiomas, como ela, são dinâmicos. Mas certa fixação adolescente em transgredir todos os idiomas até mesmo por ignorância léxica e gramatical, e, pior, a ciência mundão afora, tem de ser, por dever de ofício, alvo de toda a classe dos formadores de opinião na luta contra a proliferação de tantos vícios e desvios. [Abro aqui espaço para o uso desses dialetos na língua inglesa, segundo o escritor norte-americano Christopher Moore (1957): “Do ‘londonês’ de Dickens aos ‘fakes’ de Salinger, dos ‘beatniks’ de Kerouac às loucuras de Cheech & Chong e daí aos neologismos do Hip-hop, dialetos sempre foram usados como forma de uma geração se distinguir das outras”. Ou seja, segregar para se defender, tentando manter o isolamento de sua tribo].

Segundo Buisson, o delírio coletivo perpassa um fundo de realidade - mesmo se a defesa dos transgêneros virar uma seita obscura que exige adesão a princípios como intervenções médicas radicais em crianças! Até onde vai o fanatismo? Mas isso não seria uma ideia medieval, antes de mais nada?


O
utro perigo é a pasteurização, o estreitamento da mente e da escrita. Em 2014, uma certa Patrícia Engel Secco surgiu no Minc com um projeto de distribuição de livros simplificados, para fácil leitura. E foi-se iniciar logo com Machado de Assis, ícone da nossa língua portuguesa. Coisa para ganhar dinheiro fácil via incentivo fiscal, logo esbarrou em séria oposição. Eu havia trabalhado com a então nova ministra Marta Suplicy no Instituto Florestan Fernandes e na Prefeitura de SP, além de estado com ela em alguns encontros, e tomei a liberdade de deixar um depoimento. Não demorou, a resposta: “Prezado Henrique Autran, o projeto apresentado pela escritora (...) não é mais do meu alcance, pois foi autorizado para captação de recursos em 2009. Espero que isso não ocorra mais e que, daqui para a frente, autores consagrados passem por critérios mais rigorosos. Informo, ainda, que fiquei contrariada ao tomar conhecimento do fato, pois iniciativas como essa maculam os grandes escritores”. Não sei no que deu o projeto, do qual não mais se falou, e espero nunca ouvir meus netos e eventuais bisnetos lendo a que já foi chamada “Última flor do Lácio, inculta e bela” de forma abreviada, deturpada e enxugada por conta de modismo ou simples ignorância.

 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

ANJOS

 

Anunciação: Fra Angelico

Os anjos e os arcanjos, os querubins e serafins, não o cessam de louvar dizendo em uma só voz: santo, santo, santo, é o Senhor Deus do universo. Céus e terras estão cheios de vossa glória. Hosana nas alturas”. Oração dos tempos de criança, despertou-me curiosidade sobre os anjos (nos EUA, 70% dos habitantes creem neles!). A palavra vem de ággelos, em grego, de onde angelus, em latim. São personagens celestiais de tão grande vulto que no séc. 4 teólogos criaram a hierarquia angelical e sua organização. São nove entidades, entre elas os citados anjos, arcanjos, querubins e serafins. Um anjo com uma espada levou a mensagem de expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e um outro abençoado teve a missão de levar à Virgem Maria a notícia de que ela daria vida a Jesus, gestado em seu ventre. Entre os anjos, sete se destacam: Gabriel, Miguel, Rafael, Raguel, Remiel, Sariel e Uriel (SILVA, Deonísio. “De onde vêm as palavras”. RJ: Lexicon, 2014, 17ª ed.). Angelus” é também a tradicional oração do Papa no Vaticano: Dominum nuntiavit Mariae (“O anjo do Senhor anunciou a Maria”).



E
m nossa música e poesia, eles também existem, e mais do que nunca são irreverentes: “Quando nasci veio um anjo safado / o chato do querubim / e decretou que eu estava predestinado / a ser errado assim” (“Até o fim”, Chico). Outro desses anjos arteiros é o de Drummond, em “Poema de sete faces”: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Bem aqui na Terra, os “Guardian Angels” (Anjos da Guarda), organização fundada em 1975  em NY, tinham, entre suas missões, passear em grupos pelo metrô de NY evitando assaltos, ajudando idosos, crianças perdidas. Vestiam jaquetas que lembravam outros anjos, os “Hell’s Angels” (Anjos do Inferno), briguentos em suas possantes motos Harley Davidson, que faziam arruaça por onde passavam. Fundado em 1948, na California, EUA, os HA tinham como primeira exigência que o “Angel” possuísse uma Harley 1.200 cc, uma máquina com força de touro e rugido de leão. Sua “capital”, Los Angeles, 2ª cidade dos EUA com 4 milhões de habitantes, foi tomada dos indígenas para a Espanha por Juan Rodríguez Cabrillo em 1781, de onde o nome em espanhol da metrópole (em português, “Os Anjos”).


N
o dia 4 de abril, logo abaixo do título e antes mesmo do headline da capa – “A barbárie vai à escola” -, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma lista apavorante: “5/4/23 Blumenau, Sta. Catarina, 4 mortos, 5 feridos; 23/7/23 São Paulo, 1 morto, 4 feridos; 25/11/22 Aracruz, ES, 4 mortos, 13 feridos; 26/9/22 Barreiras, BA, 1 morto; 4/5/21 Saudades, SC, 5 mortos; 13/3/19 Suzano, SP, 8 mortos, 11 feridos; 6/11/17 Alexânia, GO, 1 morto; 20/10/17 Goiânia, GO, 2 mortos, 4 feridos; 26/9/11 São Caetano do Sul, SP, 1 morto; 7/4/11 Rio de Janeiro, RJ, 12 mortos, 22 feridos; 29/1/03 Taiuva, SP, 1 morto, 3 feridos; 28/10/02 Salvador, BA, 1 morto”. Não seria preciso explicar, mas este é um gráfico por extenso dos ataques, da violência, dos assassinatos e das chacinas que vêm acontecendo em escolas de crianças, aparentemente sem explicação alguma.


N
o dia 8/4, em Blumenau, na creche Cantinho Bom Pastor, 9 crianças foram atingidas por facadas e machadinha, fazendo de quatro delas vítimas fatais. Uma, com escoriações e a mandíbula trincada, conseguiu escapar. Recebeu seu pai, em desespero: “Pai, estou vivo”. Este o breve desdobramento do final do último lamentável episódio. Nos funerais das crianças faziam flutuar estrelinhas, como fosse cada um dos anjos perdidos. Sim, a palavra mais ouvida foi “anjo” – pela inocência das crianças, pela pureza de suas tenras idades, pelo que representam em um país tomado pela violência, belicismo e mortes, ataques em geral sem qualquer coisa que lhes dê fundamento, além de simplesmente matar. São maníacos contagiados pela onda que preocupa vários outros países: entre meus contatos nos EUA, sei que eles não apenas compartilham das nossas dores, há uma espécie de mea culpa sem razão alguma, por uma prática importada de lá. Sim, são anjos, salvos do mal que os atacou. Ou levados por outros anjos onde se encontrarão com tantos anjos-crianças para sempre. Resta aos que ficaram, seus pais, às comunidades, o medo, o medo, o medo.


O
Brasil, com seus 5.570 municípios, não poderia ficar à parte desse pânico. Tatuí, por exemplo, com seus 124 mil habitantes (2021), chegou a estampar na capa do jornal O Progresso (9/4/23), encabeçando as notícias: “Ameaças alteram rotina das escolas locais”. Noticiou como reação local um encontro da Polícia Civil, PM, GCM, secretários de Segurança e Educação, além de docentes e gestores. Ainda na capa, um cartaz encontrado na escola “José Celso de Melo”: “Todo mundo dessa escola vai morrer”. Segundo Telma Vinha, pesquisadora de violência escolar, câmeras, detectores de metal e segurança por si não são soluções, ajudam mas não vão ao fulcro da questão: “Traz segurança para a sociedade, mas não (...) diminui o discurso de ódio” (Estadão, 9/4/23). Há fanatismo, há psicopatia, há os que querem seu tempo de fama nas mídias sociais e na imprensa, a que custo for.


N
a Nova Zelândia, onde 51 pessoas foram mortas, foi criada em 2019 a Christchurch Call to Action, que hoje reúne 120 governos, ONGs e empresas tecnológicas. Um supremacista branco matara meia centena em ação transmitida online por todo o mundo! Nesta luta, é preciso entendermos antes as mentes do que os atos. A herança política do que as armas. E proteger os nossos anjos.

 

sexta-feira, 7 de abril de 2023

BALA DE PRATA

 


D
e todos os tipos de munição, a bala confeccionada com prata – e às vezes ouro –, segundo rezam nossas lendas e folclore, é a única capaz de matar vampiros, lobisomens e outros seres aterrorizantes de todos os rincões brasileiros. A origem da lenda remonta ao século 18 na França: um monstro chamado de “A Fera de Geauvaudan”, morta por um caçador conhecido como Jean Chastel (algo como João do Castelo), em cujo chapéu carregava medalhas de Nossa Senhora, que seriam derretidas no fogo e fundidas em balas de prata (embora tal folclore já seja bem antigo, mais atrás ainda, antes das armas de fogo, flechas de prata tinham o mesmo poder - não graças à prata em si, creio, mas ao poder da Virgem Maria, de cujas medalhas era extraído o precioso metal). Enfim, tais balas de prata tinham, nessas lendas, o poder de aniquilar feras, lobisomens, vampiros e o que viesse de coisa ruim pela frente. Era um estampido e só.


E
ntre nós, nos dias de hoje, a expressão “bala de prata” adquire um outro sentido, além do poder sobrenatural, o da bala única: não se deve errar o alvo, pois, caso aconteça, haverá um final terrível. Nos EUA, no filme western-espaguete “O Dólar Furado” (1965), Giuliano Gemma, caubói italiano no papel de um ex-capitão do Exército Confederado americano, recebe a missão de matar o bandido Black Jack. Em um duelo de bala única, Gemma recebe um tiro no peito, cai e fica largado no chão. Depois – ele simulara estar morto - levanta-se: uma moeda de um dólar no bolso esquerdo da camisa o impedira de morrer - daí o título do filme. Talvez pouco tenha a ver com “A Fera de Geauvaudan” e “O Dólar Furado”, mas aqui no Brasil “bala de prata” permanece com o sentido de munição poderosa, e em geral uma só.

Edson Luís no Calabouço

C
laro, não compartilhamos literalmente desse folclore, mas há algum sentido quando se diz que o governo tem uma “bala de prata” no caso Arcabouço Fiscal, proposta gestada principalmente no gabinete de Haddad e nos aposentos palacianos, e com seus aliados. No caso da economia brasileira atual, fala-se muito em “bala de prata” quando se refere a âncora fiscal ou regra fiscal. Mas preferiram chamar o alvo de “arcabouço fiscal”, estrutura que sustenta a economia do país. Não simpatizo com a palavra arcabouço, de tantos sentidos, como esqueleto, armação, madeirame, e nem todos bons, talvez, para uma bala salvadora. (Eu diria a um analista freudiano que associo arcabouço imediatamente a calabouço, terrível cárcere subterrâneo, a masmorra, e o restaurante estudantil homônimo, o Calabouço, do Rio, onde, aos 18, foi assassinado Edson Luís, crime que provocou   o movimento que foi um dos estopins para o AI-5). Arquitetura ou resto de ossos? Bom, qual seja. Optou-se por arcabouço, que vingou como estrutura preparada para o controle dos gastos públicos, projeto que ainda vai ao Congresso Nacional – agora sim, na forma de bala de prata, não sei se munição única mas com certeza aquela que faria sossegar a fera e daria ao novo governo a segurança de que precisa em uma sociedade tão dividida, um Congresso tão disforme. O fato é que, se perdida esta bala, cunhar outra a tempo de proporcionar a viabilidade de tanta mudança desde já será missão quase impossível. De armação, a estrutura poderá se transformar em esqueleto. Um arcabouço de ossos. Não seria a última bala, mas ficaria cada vez mais difícil. Resta saber se Haddad tem o dólar de ouro para colocar no bolso e aguentar o rojão.

Keynes

E
m 2017, o governo Michel Temer conseguiu aprovar a lei do teto de gastos, que amarrou as contas de despesas de cada ano às do ano anterior - ou seja, não seria possível gastar mais do que no ano passado. Tão simples quanto parece, mas eficiente? A proposta de Haddad tenta equilibrar metas de superavit (diferença para mais entre receita e despesa) e controle de gastos a partir da evolução das receitas. A lei de Temer é tida como impeditiva aos benefícios sociais propalados por Lula desde sempre, mas a proposta acordada até agora pelo governo e parte do Congresso não é compreendida a fundo por leigos - como eu. Em princípio, o aumento de gastos sobreviverá, mas tendo como referência o desempenho da receita, com piso de 0,6% e aumento, inflação à parte, de até 2,5%. Pronto? Claro que não. Os números e a terminologia me são familiares, mas os detalhes de que preciso para compreender esta imensa equação estão longe de minha vã economia, que vai mais para o lado filosófico do que do financeiro. Fico com Smith, Marx, Keynes e Galbraith, e dá para compreender alguma coisa com esse número de pensadores e suas filosofias. Afinal, Haddad não é formado em economia, fez apenas um mestrado na USP, e nem o  foi FHC, ex-ministro da Fazenda de Itamar, sem formação específica no ramo.

Mobile de Calder

E
m vista disso, não vejo bala única ou de prata, como as nossas comentaristas dos telejornais da TV adoram dizer -, nem gosto de arcabouço. Não há apenas uma saída, um caminho, e é óbvio que todos eles são móveis, algo como uma escultura flutuante de Alexander Calder, peças oscilando como pêndulos no ar sem se chocarem, mantendo a harmonia como em tantos universos: a música, os corpos celestes, a cadência das ondas do mar. Os grandes economistas que conheci, os melhores, eram artistas, ou quase. Criam que cálculos e contabilidades caberiam melhor aos calculistas e contabilistas, e a eles próprios a estrutura e a filosofia. Porque tudo isso não é matéria de cálculo: é muito mais de pensamento, como a música que sai do papel para a fruição dos que a ouvem.

 

sábado, 1 de abril de 2023

ETARISMO: O LADO OBSCURO DA IDADE

 


A
pós uma busca pelos dicionários, definições muito simples convergem para pontos e situações semelhantes. Incomum mesmo é a palavra. Refere-se ao preconceito por idade, discriminação de pessoas mais velhas. Não encontrei referências aos de menor idade, embora ache que este preconceito também exista. Já o idadismo é apenas um sinônimo dicionarizado que remete à palavra-mãe etarismo. Uma outro termo, ageísmo, não tem registro nos compêndios que busquei, mas, óbvio, vem de age (idade, em francês ou inglês). Em dicionários de inglês a palavra ageism existe, assim como em francês, o que leva a crer que, em nossa língua, seja um simples anglicismo ou galicismo, vícios tão comuns em nosso cotidiano.


N
ão me lembro de quando surgiu em mim algum preconceito – e por autodefesa mesmo nem sei se já tive. Minhas referências são ambíguas, e, se foi um etarismo precoce, foi “do bem”. Pode ser que a fase da vida em que o etarismo se mostre mais evidente seja a adolescência, quando não se quer a companhia de crianças e menos ainda de idosos de todas as faixas etárias, aqueles a quem simplesmente se chama “coroas” (de trinta ou oitenta anos, a depender da idade de quem vê). O adolescente põe em conflito o passado de criança e o futuro que enfrentará, quando idoso. Em termos de preconceito, nossas vidas parecem centradas nesses tempos de adolescentes, e, talvez por isso mesmo, cercados nas duas pontas, os tempos de antes de agora e os de pós-jovens. Mas o futuro, afinal, sabemos inexorável.



U
ma reflexão que é de lei, a paixão entre os dois extremos: quanto mais distantes mais forte. Lembro de minha mãe, quando estava com netos e bisnetos. Como diz o popular, neto é filho com açúcar. Quem não pode observar isso em casa pode vê-lo nas redes sociais, onde  vovó, vovô e seus netos são uma constante; todos lindos, podem tudo. Retrato perfeito é o “Poema enjoadinho”, do Vinicius de Moraes: “Cocô está branco / cocô está preto / bebe amoníaco / comeu botão (...) / Porém que coisa / que coisa louca / que coisa linda / que os filhos são!” Os dois extremos, avós e bebês, são onde se tocam e se fecha um círculo, a circunferência da vida. O reencontro consigo mesmo, o começo e o fim, esse amor que nada mais é do que a paixão pela própria vida. Contempla-se os pequenos como Maria contemplava Cristo. (Resposta do Senhor ao questionamento a Marta sobre a aparente inação da irmã: “Maria escolheu a parte certa” - Lucas, 10:39-42).

Foto: G1

A
gora surge um preconceito cruel e já frequente nesses novos tempos: uma senhora de 46 anos, que nunca tivera a oportunidade de estudar em um curso superior, foi hostilizada em vídeos nas redes sociais ao ingressar em uma faculdade de Bauru (SP). Mas há um motor reverso na sociedade: sob uma pressão imensa que contaminou até suas vidas particulares, as três alunas agressoras acabaram por abandonar o curso; a vítima, discreta e feliz, pôde iniciar os estudos. Em outro caso, uma estudante de 59 anos de São Paulo foi vítima em uma reunião de docentes de uma escola pública onde fazia estágio. “Alguns professores falavam alto e um deles disse que era melhor parar porque tinha uma senhorinha” (Folha, 16/03/23). Como nos dias de hoje tudo tende a ser coletivizado, repercutindo o acontecido com a caloura de Bauru um movimento começou a surgir na forma de uma “corrente do bem”:  uma caloura de 42 anos do curso de engenharia, em Minas Gerais, expôs seu caso no grupo e em três dias teve cinco milhões de acessos e três mil comentários (G1, 15/03/23). Esses seriam de fato casos óbvios de etarismo.


O
espírito que move essas ações preconceituosas é o mesmo que alimenta o racismo, a xenofobia, a homofobia e outros, fantasiados de bullying e imbuídos de um tipo de segregacionismo que lembra os fascistas. Com o mundo dando uma guinada à direita – que boa parte das pessoas sequer sabe o que é -, não surpreende que surjam esses comportamentos, que nos anos 70/80 praticamente não existiam: havia uma massa de estudantes, profissionais liberais e uma intelectualidade; emblemáticos, música, literatura e cinema os alimentavam, fazendo da rejeição aos regimes radicais sua bandeira. Hoje, este novo tipo de extremismo de direita pode chegar a um perigoso radicalismo, e deve ser combatido com cautela, pois é daninho à vida de uma sociedade fraterna e de paz.
Juventude fascista 


U
m fato cotidiano: quem tem 50 ou mais e está desempregado tem muito menos chances no mercado de trabalho, quando não impossível: frequentemente, logo na entrevista, ele sente que seu tempo de “vida útil” como empregado já está terminando. Custos das licenças médicas, faltas ao serviço, multa na demissão, limite de horário e tempo de serviço são fatores que trabalham contra o candidato. O ingresso em um emprego regular é difícil, o fator idade pesa sem dó. E, no caso, não parece preconceito - ou não transparece - mas preponderam razões financeiras do empregador.  No ambiente de trabalho, sim, pode surgir claro o etarismo: o olhar de soslaio, o falso sorriso, o falso tapinha nas costas... E o mais velho se sentindo cada vez mais preterido aqui e ali, deixado meio de canto.


N
ão sofro nem exerço qualquer forma de etarismo: não estou em competição para nada. Aposentado, faço do meu quarto escritório e escrevo o que quero, para lugares e pessoas de quem eu gosto. O etarismo se esconde atrás do medo daquele “mais” que os experientes podem produzir, na sala de aula ou no trabalho: efeito colateral da insana competição da vida.