Vilma Gryzinski publicou na Veja de 19/4/2023 o artigo “Os EUA também estão na ‘decadança’”? (“O declínio da superpotência tem algum fundo de verdade”). Discorre sobre tudo, citando uma ironia do intelectual conservador francês Patrick Buisson: “a sociedade ocidental se suicida dançando”. Fala de delírio coletivo e até de uma seita adepta de princípios radicais. Cito uma aberração destacada por Gryzinski, entre outros apontamentos: “...sem contar que o mundo da ciência está sendo assolado pela mesma doença ocidental da autocrítica alucinada, além de acusações de que a matemática, a física e outras áreas são racistas e sexistas. E quanto mais absurda a tese mais sucesso faz na academia: até a arqueologia entrou na dança, com a promessa de uma ala ‘anarquista’ de não mais definir o sexo das ossadas ancestrais, para não designar erradamente esqueletos – acredite se quiser - que tinham opção de gênero diferente daquela que os ossos e o DNA nos contam”.
Sim, é isso! Parece necessário respeitar a opção sexual de esqueletos da pré-história (sic), sua escolha de gênero. E daí a generalizarmos e cairmos no engodo que toda generalização traz, podemos crer que a essa altura tais “antropólogos anarquistas” já estão lá na frente a fazer a taxonomia (classificação sistemática em categorias) dos animais pré-históricos trans: dinossaures, brontossaures, pterodátiles e outros, ficando dispensados alguns como os T-rex, que já vêm com a desinência (fim, sufixo) “x” pronta: haja ‘anarquismo’. Além de desinventarem nosso vocabulário parece quererem avançar sobre outras ciências, além da arqueologia. Misture-se bem tudo isso, acrescente-se a dita “inteligência artificial”, algumas pitadas de modismo e teremos aí o homo ignorant” dos novos tempos: feito para repetir as asneiras que lhe ensinam–programam e assumir seu personagem, negando o conhecimento científico anterior. Pronto para vigiar e ser vigiado por seus pares, algo como no surreal filme “Alphaville” (1965), do francês Jean-Luc Godard (onde, numa cidade imaginária, além de obrigada a seguir os frios ditames do computador central, “Alpha-Soissante”, ‘desvios’ como falar de amor eram proibidos,). Há uma corrida científica, na área do chamado STEM (ciências da tecnologia, engenharia, matemática e natureza): a China, prestes a se tornar a maior economia do mundo, prepara quase cinco milhões de graduandos por ano, enquanto os EUA fazem menos de 500 mil, cada vez mais sujeitos a modismos e ideias malucas.
Do lado de cá, na banda brasileira, qual seria o papel de um professor sério nesse imbróglio crescente? Afastar a grafia incorreta, pois embora aparentemente muito mais simples, a pseudomoderna de hoje só coaduna muito bem com a escrita de dois ágeis polegares digitando no teclado de “smartphones”; ensinar o que se chama “norma culta”, que vem a ser o conjunto de regras e padrões linguísticos empregados por pessoas de alta escolaridade, tal qual a língua falada e escrita por juristas, pesquisadores e cientistas. Ou seja: a turma das ossadas transexuais dos “x” ou “es” não entra.
Charles Dickens |
Nada contra a gíria bem usada e os neologismos bem escolhidos, além da transexualidade – afinal, os idiomas, como ela, são dinâmicos. Mas certa fixação adolescente em transgredir todos os idiomas até mesmo por ignorância léxica e gramatical, e, pior, a ciência mundão afora, tem de ser, por dever de ofício, alvo de toda a classe dos formadores de opinião na luta contra a proliferação de tantos vícios e desvios. [Abro aqui espaço para o uso desses dialetos na língua inglesa, segundo o escritor norte-americano Christopher Moore (1957): “Do ‘londonês’ de Dickens aos ‘fakes’ de Salinger, dos ‘beatniks’ de Kerouac às loucuras de Cheech & Chong e daí aos neologismos do Hip-hop, dialetos sempre foram usados como forma de uma geração se distinguir das outras”. Ou seja, segregar para se defender, tentando manter o isolamento de sua tribo].
Segundo Buisson, o delírio coletivo perpassa um
fundo de realidade - mesmo se a defesa dos transgêneros virar uma seita obscura
que exige adesão a princípios como intervenções médicas radicais em crianças!
Até onde vai o fanatismo? Mas isso não seria uma ideia medieval, antes de
mais nada?
Outro perigo é a pasteurização, o estreitamento da mente e da escrita. Em 2014, uma certa Patrícia Engel Secco surgiu no Minc com um projeto de distribuição de livros simplificados, para fácil leitura. E foi-se iniciar logo com Machado de Assis, ícone da nossa língua portuguesa. Coisa para ganhar dinheiro fácil via incentivo fiscal, logo esbarrou em séria oposição. Eu havia trabalhado com a então nova ministra Marta Suplicy no Instituto Florestan Fernandes e na Prefeitura de SP, além de estado com ela em alguns encontros, e tomei a liberdade de deixar um depoimento. Não demorou, a resposta: “Prezado Henrique Autran, o projeto apresentado pela escritora (...) não é mais do meu alcance, pois foi autorizado para captação de recursos em 2009. Espero que isso não ocorra mais e que, daqui para a frente, autores consagrados passem por critérios mais rigorosos. Informo, ainda, que fiquei contrariada ao tomar conhecimento do fato, pois iniciativas como essa maculam os grandes escritores”. Não sei no que deu o projeto, do qual não mais se falou, e espero nunca ouvir meus netos e eventuais bisnetos lendo a que já foi chamada “Última flor do Lácio, inculta e bela” de forma abreviada, deturpada e enxugada por conta de modismo ou simples ignorância.