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sábado, 14 de setembro de 2013
RECEITA PARA FAZER UM MÚSICO. E CONVIVER COM UM DELES
Quem
vai a um concerto, a uma apresentação de balé, ou, ainda, uma partida de
futebol, geralmente desconhece o quanto custou chegar àquela hora ou hora e
meia de espetáculo. Não conhece as rotinas diárias de artistas e atletas. Um
pianista, músico de orquestra ou banda passa várias horas diárias com seu
instrumento, entre escalas, arpejos, métodos, estudos longos e repetitivos, e
só depois passa ao estudo de uma obra, prática que se baseia na repetição de
trechos, frases ou uma ou duas notas. (Uma grande violinista japonesa usa dois
pequenos potes, um vazio e outro com 20 feijões. A cada repetição satisfatória de
um trecho, um grão é retirado e colocado no pote vazio, até terminarem. Daí,
passa à próxima frase).
A
bailarina passa muitas horas por dia em exercícios na barra, fazendo movimentos
repetitivos, que muitas vezes a levam a precisar de um bom massagista. O jogador
de futebol, ao entrar em campo para enfrentar os 90 minutos, passou a semana,
todos os dias, horas por dia, a correr levantando a perna, fazendo polichinelo,
flexões, nada que aparentemente se assemelha a uma partida de futebol. Os
estudos dos músicos, os exercícios corporais da bailarina e a rotina de treinos
do jogador em tudo se assemelham em busca de uma boa apresentação. “A gente
trabalha / o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia / de
rei, ou de pirata ou jardineira / pra tudo se acabar na quarta-feira” (“A Felicidade”,
de Tom e Vinicius).
Uma ótima Rainha da Noite
E
a cantora, que entra em palco para apresentar uma bela ária, como a “Rainha da
Noite”, de Mozart (“um inferno vingador bate em meu coração”), ou a trágica
morte de Violetta, na Traviata de Verdi? (aquela em que, tísica e moribunda, ela
se despede de sua paixão: “Amami, Alfredo!”). Pois todos os dias, todos os
meses, todos os anos, e há muitos anos, a diva trabalhou seus vocalises exaustivamente.
Mão sobre o teclado do piano, tocando uma vez um acorde fixo, para guiar a
tonalidade, ela repete, arpejando: moa-moa-moa-moa-moo-oo-ah... Sobe meio tom,
e repete: moa-moa-moa-moa-moo-oo-ah... Mais meio tom, e assim por diante, até a
nota mais aguda que ela suportar. E recomeça tudo, da nota mais grave de seu
registro (algo como o tipo de timbre de voz), desta vez mudando a sílaba:
ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri... e depois com outra sílaba, até
concluir o longo aquecimento. (Veja e ouça abaixo a virtuosíssima Diana Damrau
como a Rainha da Noite da Flauta Mágica de Mozart, com Sir Colin Davis à frente
da Royal Opera House).
Diana Damrau
O canto final de Violetta: "Amami, Alfredo!"
Ah,
sim, cantora pronta, depois de bons estudos, encarna sua Violetta - um pigarro de
leve antes, para não arranhar a garganta -, para cantar sua súplica de amor
para Alfredo, em “La Traviata” (...) “de alegria em alegria / escorrendo sobre
a superfície / do destino da vida da maneira que eu quero. / Quando o dia nasce
/ ou quando o dia morre / com alegria me volto para novos deleites / que fazem
meu espírito se elevar” (trad. livre).
Não,
Violetta, você não está pronta! Repita frase por frase, o trecho inteiro várias
vezes, corrigindo-se! Ao terminar, passe para a próxima ária, e não se esqueça
de parecer tuberculosa ao implorar, moribunda: “Amami, Alfredo!!!” Não,
Violetta, precisa ser mais dramática, diria repreendendo o métteur-em-scène,
diretor da ópera. Você tem que estar perfeita, convincente, divina, e morrer
lentamente, fazer o público derramar lágrimas! (Não posso me furtar de contar
uma anedota real: estava o grande regente Sir Thomas Beecham (desenho acima) ensaiando este
trecho, quando, logo após uma pausa, o tenor dirige-se a ele para reclamar que aquela
Violetta demorava demais para morrer, roubando-lhe a cena. O maestro: “Sir,
nenhum cantor morre tão rápido quanto eu gostaria”. Piadinha maldosa típica do
maestro, autor de dezenas delas). (Veja e ouça abaixo a dramática morte de
Violetta, gravada pela incrível Monserrat Caballé em 1965).
Montserrat Caballè
Quem
vai se casar com uma cantora, um instrumentista, casa-se também com uma rotina de
estudos diários, escalas, arpejos, vocalises, passagens repetidas – como se diz
em música, “ad aeternum” (pela eternidade). Muitos músicos se casam com
músicos, às vezes de uma mesma orquestra. Ou de outra área, mas mantendo a
cumplicidade nos estudos. Em casa, cada um em seu canto (e quando possível em
seu próprio estúdio), usa de sua introspecção para se abstrair do parceiro
músico. Quando ele ou ela não é do ramo musical, fica mais difícil, mas o convívio
e a abstração vêm com a experiência de fazer outra coisa, como escrever textos,
conferir a contabilidade da empresa ou simplesmente distrair-se.
Como
fui casado com musicista, e entre meus quatro filhos uma é violoncelista, assim
como o caçula, e a penúltima é um belo talento para flauta, conheço bem essa
vida. Quantas vezes não dormi ouvindo duas pessoas estudando em quartos
diferentes! O barulho de uma motocicleta me incomoda, mas a música... ela me
embala. (“Nós somos os cantores do rádio / levamos a vida a cantar / de noite
embalamos teu sono / de manhã nós vamos te acordar”, diz a letra dessa
obra-prima de Braguinha, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro). (Veja e ouça
abaixo, uma recriação divertida do sucesso de Carmen a Aurora Miranda com Chico, Nara Leão e Bethânia, em cena do filme Quando o Carnaval Chegar).
É
por necessidade que o músico chega cedo no palco para aquecer dedos, braços ou
embocadura, além de aclimatar seu instrumento – sob refletores, a cada 10 graus
Celsius a afinação das cordas cai um terço de tom e a dos sopros sobe outro
tanto. É preciso se preparar, e quando todos já estão ouvindo a si próprios,
abstraindo-se do som dos colegas e em perfeita introspecção – virtude dos bons
artistas e dos bem preparados para ouvir música -, é nesse exato momento que se
desenvolve - para os que já se acomodaram na plateia ou estão entrando - uma
música diferente, sem forma ou tonalidade, apenas sons difusos. Agora, silêncio,
por favor! Vai começar o concerto!
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