Ou: no Brasil, nunca houve ditadura
Marcelo Rubens Paiva, escritor |
“...não gosto de samba, não vou a Ipanema / não gosto de
chuva, nem gosto de sol...” Em “Lígia”, Tom Jobim corteja sua amada em inusitada
declaração, simulando uma realidade pela arte do avesso. Marcelo Rubens Paiva, ótimo
cronista (cujo pai foi assassinado pela ditadura), em um artigo recente traz uma
pérola: “No tempo da ditadura, a gente não podia escrever sobre o tempo da
ditadura, nem qualificar o regime como uma ditadura. No tempo da ditadura, ao
invés de uma análise crítica sobre a ditadura, digo, regime, neste espaço (N.
do A.: coluna no Estadão) teria um poema de Camões ou uma receita de bolo, pois
seria censurada”. (Veja e ouça "Lígia", abaixo).
Vernon Walters (dir) e Carlos Lacerda, apoiador de todos os golpes |
A ditadura deixou-nos marcas como tatuagens, que esvanecem,
mas cuja tinta é indelével. Aos 16 anos, tive uma letra censurada em um
festival colegial do Rio de Janeiro: “um grito vivo de verdade, quando a cabeça
queima”. Seria um slogan revolucionário? Como futuro músico, vi Caetano, Gil,
Chico e Vandré (este último em estado lamentável) saírem do país, assim como
uma enorme leva de brasileiros que, por cometerem o delito de opinião, eram - com
certeza! - comunistas. Fui amigo de uma neta do Castello Branco, cuja casa era frequentada
pelo Gen. Vernon Walters, adido militar que chegou a ser diretor geral da CIA.
José Genoíno, capturado |
Hoje, relatos e documentos mostram que havia grande intimidade
(ou promiscuidade?) entre programas norte-americanos como o MEC-USAID e a
Aliança para o Progresso e os interesses estratégicos e econômicos dos EUA. (O resumo
da ópera era o perigo comunista, via Cuba, cuja revolução começou em Sierra
Maestra com apenas doze homens). Houve o fracassado Congresso da UNE - de onde
José Dirceu nasceu para o país, talvez comunista no ideário, e hoje, se não
estivesse preso, folgazão milionário. Fora a pífia tentativa de guerrilha ao
estilo cubano no Araguaia, de onde surgiu outro José, o Genoíno. E a despreparada
e juvenil guerrilha urbana de Fernando Gabeira.
Silvio Frota, comandante |
Intelectuais tinham seus passos vigiados, e frequentemente
eram presos e até mortos. Quem era contra o regime era comunista, esse o mote.
Meu pai, já havia anos trabalhando na Justiça do Rio, recebeu a visita de um agente
do SNI, que foi ter com ele com a missão de prendê-lo. O mundo dá voltas, e o
policial se despediu dizendo que iria liberá-lo por causa de um grande favor concedido
à sua filha, em épocas palacianas de JK. Hélio Pellegrino, psicanalista e
escritor mineiro, era um quase vizinho, e frequentou minha casa até sumir. Sua
esposa, Maria Urbana, conseguiu uma reunião com o Gen. Sílvio Frota, comandante
da 1ª Região Militar: “general, o senhor é um homem sensível, um
intelectual...” Ao que foi bruscamente interrompida pelo comandante, que
desferiu um chute na cadeira ao lado e bradou: “intelectual, não, sou um homem
de ação!”
Julgamento dos frades Fernando, Betto, Ivo e Tito (que suicidou-se após tortura). |
Meu primo frei Betto foi preso com mais três dominicanos, e cumpriu
quatro anos, embora condenado a dois. Seguiram-se tantas prisões e mortes, como
as do Vladimir Herzog e do Manuel Fiel Filho, cujas viúvas foram homenageadas
por Aldir Blanc e João Bosco: “choram Marias e Clarices / no solo do Brasil”. E
quantos foram enterrados em Perus por concessão de uma figura política nefasta!
O Partido Comunista Brasileiro teve seus momentos de
legalidade, com Luís Carlos Prestes, e, depois, foi tolerado pelo regime:
Niemeyer e Jorge Amado, comunistas, ajudavam a projetar um perfil mais permissivo
do país no exterior. E aquele Jango do famoso comício da Central do Brasil, estopim
do golpe, hoje seria tão social-democrata quanto qualquer discurso de Lula ou
FHC. Como em 1964, hoje fala-se em reforma agrária, sindicalismo, há bandeiras
vermelhas de diversos partidos ditos ou não comunistas, mas não há correlação
de forças para um golpe de lá ou de cá. (Veja, abaixo o Comício da Central).
Em 1965, baixaram o AI-2, que manietou o judiciário e
extinguiu os partidos. Em 1966, o AI-3 tornou as eleições indiretas. No mesmo
ano, o AI-4 revogou a Constituição. Com o AI-5, em 1968, todos os direitos e
garantias individuais foram suspensos, dando início a um ciclo de perseguições policiais
que pareciam ataques do “Sturm und Nacht” (Tempestade e Noite) nazista.
Marx e Engels |
O Brasil nunca passou do socialismo utópico dos poetas e
sonhadores, não chegou ao socialismo científico do arcabouço ideológico do
comunismo de Marx e Engels: a ditadura do proletariado, a divisão técnica do
trabalho, e, mais do que tudo, a propriedade coletiva dos meios de produção. Já
os partidos ditos comunistas de hoje assumem cadeiras nos legislativos, seus
representantes eleitos pelo voto.
Convocação cinquentenária |
Neste sábado, dia 22 de março, um grupo pretende reeditar a
“Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, cuja versão de 1964 foi costurada por
Ademar de Barros e Laudo Natel (então governador e vice de São Paulo) e suas esposas, entre outros, teatralizando um apoio civil ao golpe.
O que querem os dessa marcha agora? Levantam a ameaça de que
Dilma quer a revolução comunista, coisa que nem a extrema direita ousa imaginar! Querem
uma intervenção militar, a extinção de partidos e o fim da corrupção. O retrocesso. Mas se esquecem
de diversos mi(bi)lionários de hoje, cujos pais, ontem, saquearam os cofres
públicos ante os olhos vendados da justiça, a boca amordaçada da imprensa e
tanto sofrimento! As Forças Armadas hoje são guardiãs da Constituição, da
democracia e da ordem, merecendo por isso nossa admiração. E a democracia,
sempre digo, é como a mulher: pode ter lá seus defeitozinhos (nós homens os
temos aos montes), mas ainda não foi inventado nada melhor.
(Abaixo, o link para o artigo do Marcelo Rubens Paiva)
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