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sexta-feira, 14 de março de 2014

O SOLAR MONJOPE E A MALDIÇÃO DE BRASÍLIA

O antigo Solar Monjope
O Solar Monjope foi um dos mais belos exemplos da arquitetura neo-colonial brasileira, construído sobre a Chácara da Bica, no Rio de Janeiro, do outro lado do Parque Lage (antes Mansão Besanzoni-Lage), esquina da Rua Jardim Botânico com Tasso Fragoso. 



Dr. José Mariano, um obsessivo colecionador, recolheu peças do período e da era colonial para a decoração do imóvel, e com o Solar e outras obras passou a ser conhecido como um amante da arquitetura, historiador e urbanista de grande importância,  participando de diversas entidades e instituições e influindo na arquitetura brasileira.
Lagoa Rodrigo de Freitas vista do Solar
O renomado arquiteto Lúcio Costa detestava o Dr. Mariano, primeiro devido a uma fúria pessoal contra o ecletismo, e segundo a um certo corporativismo,  pelo seu desafeto não ser um profissional. Com sua sanha modernista, Costa, um dos gênios de Brasília, autorizou ou deixou passar, à frente do IPHAN, a derrubada de vários prédios antigos da Av. Rio Branco e casarões da Zona Sul do Rio.
Condomínio "Parque Monjope"
Assim, de canetada, fez vista grossa à derrubada do Solar nos anos 1970. Com a construção, foi derrubado também um grande número de árvores frutíferas e frondosas, um patrimônio ambiental urbano. No mesmo lugar, surgiu um conjunto de espigões chamado Condomínio Conjunto Residencial Parque Monjope, símbolo da supremacia modernista contra um patrimônio nacional.
O Plano Piloto de Lucio Costa: a nave se ergue

Corte para outra cena 14 anos antes, 1956. Coroando o Planalto Central, a noroeste do Brasil, deu-se início ao ambicioso Plano Piloto do mesmo Lucio Costa. Chamavam candangos (que era como os descendentes de escravos se referiam aos portugueses) os trabalhadores arregimentados principalmente no Nordeste, mas a terra era mesmo dos índios Xavantes, Caiapós e outras tribos menores. Começava a ser erguida uma grande cidade em forma de avião - símbolo da modernidade e praticamente o único meio de transporte para então lá se chegar a partir da capital.
Minha irmã, Inês, na sacada do "Catetinho" (2012)
Pois foi naquele ano (1956) que um histórico bimotor DC-3 levou meu pai, o escritor Autran Dourado, já Secretário de Imprensa de JK, e um grupo de jornalistas e fotógrafos, a pousar na terra vermelha e seca, para conhecerem e divulgarem a obra monumental que estava sendo erguida pelo governo. Fora construída uma pequena casa de madeira, apelidada “Catetinho” (alusão ao Palácio do Catete, no Rio), de onde JK despachava quando visitava o local – aliás, construção precária mas reformada e intacta até hoje. Os jornalistas, mal acomodados, à noite não conseguiram dormir nas redes indígenas reservadas para eles. Foram para o relento, e assim passaram algumas noites até o retorno, que foi o início de uma grande aventura.
O velho DC 3
Cheios de mimos e suvenires, utensílios indígenas trocados por objetos ‘civilizados’, o pessoal da imprensa entrou no avião. Ao ver aquele monte de cocares, lanças e flechas, o comandante da aeronave falou que com aquela traquitana ele não voaria. Entre os candangos e o povo da terra, aqueles presentes eram “coisa mandada”, davam urucubaca. E ponto. Foi chamado outro piloto, que inconformado levantou voo, para alegria de todos. Felizes com as lembranças, os viajantes logo tiveram seu primeiro sobressalto: da cabine, o piloto avisou que houve pane em um dos motores (era um bimotor...). Não sei onde pousaram, mas depois de um bom tempo no solo retomaram a viagem, provavelmente em outro aparelho.
No meio do trajeto do voo, nervosa e ansiosa para voltar, a turma resolveu improvisar uma mesinha de pôquer entre os assentos do avião. A tensão aumentou quando dois jogadores tinham certeza absoluta de poder cacifar a aposta, cada um de seu lado, cada um com um grande jogo nas mãos, gritando como loucos como qualquer apostador. Naquela altura, já teria ido no rolo um bom dinheiro. Abertas as cartas, empate! Foi um desentendimento total, que, aliás, já vindo da tensão do pouso forçado, virou briga (não sei se às vias de fato, e não vem muito ao caso).
O Aeroporto Santos Dumont, construção original
Finalmente, o DC-3 pousa no Aeroporto Santos Dumont. Todos desconfiaram ao ver uma multidão que cercava a pista de chegada, e uma das jornalistas, se não me engano a Silvia Lara Resende (cunhada do Otto), foi acudida por colegas que informavam, afoitos, que seu Jornal do Commercio – tradicionalíssimo e poderoso, na época – estava pegando fogo. Assim, todos salvos e cada um para seu canto, parecia encerrada a aventura.
Ledo engano: meu pai passou a ser atormentado por uma forte insônia e angústia à mercê de uma série de problemas que vinham lhe perturbando. Ele nunca me contou mais detalhes, mas eu o imagino como Cervantes envolto em seu imaginário, sentado na sala, quando deu com os olhos naqueles objetos: tacapes, bordunas, arco e flechas e um cesto de palha forrado com lindas penas de pequenos pássaros: umas azuis, outras vermelhas, amarelas, verdes...
Arco, flecha e borduna
Presumo que foi então que ele, ainda que descrente e nada supersticioso, pegou aquela parafernália e, de pijama e chinelo, desceu os seis lances de escada, andou uns 200 metros em plena madrugada e jogou tudo sobre o muro, no matagal do Solar. Depois do ‘descarrego’, voltou para casa, tudo agora iria melhorar, pensara com certeza. No dia seguinte, porém, logo correu a notícia: o Engenheiro Monjope, o do Solar, havia morrido naquela manhã.

Depois disso, a vida de meu pai começou a melhorar, seguiu em frente, e em 1960 a Brasília de Lucio Costa e Niemeyer foi inaugurada por JK com grande pompa e circunstância, sobre a terra vermelha que havia sido desde sempre dos Xavantes e Caiapós, talvez assentada sobre alguma enorme, maldita e inamovível mandinga. 

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