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sábado, 31 de maio de 2014

A CRISE NA USP, SEM CHORO NEM VELA

Diariamente, a imprensa tem publicado editoriais, artigos e opiniões sobre a atual crise na USP, maior universidade brasileira. A população de São Paulo, que a sustenta (além da Unesp e da Unicamp), quer saber onde vão parar os impostos que paga pela manutenção de seu maior centro de excelência. Eu, com 28 anos de carreira, sou observador desse processo que já ameaça o bom andamento da universidade. E coloco na balança a opinião do atual reitor, Marco Antonio Zago, há apenas 4 meses no cargo, do seu antecessor, Grandino Rodas, e a do José Goldemberg, por ser peça relevante na questão.

 
 
O Reitor não decide sozinho. Há alguns atos que ele pode tomar para si, enquanto outros são praticamente decididos pelo Conselho Universitário, órgão máximo formado pela elite acadêmica. Agora, aos números, para que ao final deste artigo fique clara minha conclusão (guardadas as enormes proporções, escreve aqui alguém que possui 25 anos de experiência em administração escolar). A equação não é ilusão, é notório que os números impõem medidas das mais dolorosas e amargas, como a primeira que as reitorias insistem inevitável: o ‘reajuste zero’. Mas voltemos a 1988, ano da gloriosa ‘Constituição Cidadã’, da grande greve e do esboço de uma solução para  o impasse.
1988: greve geral das Universidades Públicas
Naquele ano, estreei minha primeira greve geral das públicas do estado. Ônibus levaram um grande número de pessoas para uma manifestação no entorno do Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do então governador, Orestes Quércia. A tropa da cavalaria da PM avançou sobre os manifestantes com seus animais enormes e brilhosos, os soldados exibindo os enormes cassetetes ‘Mec-Usaid & Abuseid’, ainda marcados dos tempos da ditadura. (Um famoso colunista social carioca, Ibrahim Sued, notório frasista, dizia: “cavalo não desce escada”. E nem sobe em árvore, pensei, escondendo-me atrás de um dos maiores e frondosos troncos, os cavalos trotando ao largo).

Palácio dos Bandeirantes
No Palácio, o então reitor José Goldemberg e Quércia acordaram sobre uma fatia no orçamento, para que as ‘três públicas’ não ficassem à mercê do governador de plantão. Chegou-se a 8,5% da receita do ICMS, e, anos depois, assentou-se em 9,5%. Havia um consenso de que os gastos com pessoal não deveriam superar 80% da receita. O problema é que esse percentual de gastos foi crescendo e, sem controle, veio encostar em absurdos – contábil e financeiramente – quase 106%. Ou seja, 6% acima de todo o orçamento da USP esvai-se direto no pagamento de salários, um déficit que vai sangrar pesquisa, custeio e investimentos, além de beber o fundo de reserva da universidade – tão inesgotável quanto hoje parece a reserva de água da Cantareira. Esses R$ 300 mi a mais em um ano, mais um reajuste de iguais 6%, somam 600 mi. O fundo, em 2013 da ordem de 3,6 bi, desabou para 2,3 bi em 2014. Em 2015, pelo andar da carruagem, cairia para 1,7 bi. Luz vermelha.

Alguns grandes nomes da comunidade defendem uma auditoria independente, reforma nos estatutos e no modelo de gestão, repensando os moldes atuais (em sua maior parte, reivindicações de toda a comunidade). No Brasil, a imensa maioria dos formandos de hoje sai das particulares, e a USP perde docentes da melhor qualidade - os salários hoje são compensadores no mundo privado, sem que o docente tenha que pensar em pesquisa e extensão, que juntos com o ensino formam o chamado ‘tripé’ da universidade pública. E o nível daquelas outras, é consenso, não tem a mesma excelência.

Leitor do Diário Oficial, vi que, além da vultosa soma anual repassada, o governo concedeu verbas a título de ‘manutenção e custeio’, em 2013, da ordem de 480 milhões para a USP. Sem deixar de lamentar o já negado (e tão aguardado) reajuste salarial, uso meu conhecimento básico de administração obtido por experiência, para afirmar que no frigir dos ovos avançaremos cada vez mais sobre o fundo de reserva da universidade, fonte tão inesgotável quanto a água que resta no reservatório da Cantareira.  

Parece afastado o recurso do PDV (Plano de Demissão Voluntária), nos moldes da Petrobras, que chega a pagar R$ 600 mil para o demissionário (!). Para a USP, seria apressar a 'crônica da morte anunciada', torrar de vez o fundo de reserva. Um PAV (Plano de Aposentadoria Voluntária), respeitando o que dispõe a Constituição sobre a aposentadoria especial (ignorando a malfadada PEC 40, que nem foi regulamentada, e acatando a súmula vinculante 33, do STF), seria uma saída para tirar o peso de muitos docentes da ativa (a serem avaliados por cada departamento) da conta da USP para outro pagador, a previdência do estado.  Aqui e ali, há conversas sobre alterações na composição dos aportes necessários ao sustento da universidade. A esquerda ‘pira’, como se diz, quando se fala em ensino pago. Blasfêmia! Quem levará essa pecha de pecador? “O que será / que andam suspirando pelas alcovas / que andam sussurrando em versos e trovas”? (Chico). Há de existir um modelo em que a grande maioria, que não pode pagar, possa estudar de graça e ainda receber ajuda financeira, sem a maquiagem fisiológica das cotas. E que o jovem abastado contribua com o que lhe couber, até um certo teto, em diversas faixas, o suficiente para bancar o equilíbrio. E isso é justiça social, a despeito das elites que usufruem da gratuidade e de um dos dogmas de fatia da antiga esquerda brasileira.

A Receita Federal implantou em 1922 (há 92 anos!) alíquotas diferentes para o imposto, entre 8 e 20%, para todos os trabalhadores. Quase toda a população já nasceu sob essa tarifação, e hoje se trabalha com enorme faixa de isentos e 7,5%, 15%, 22,5% e  27,5%, conforme a faixa de renda. Contas de consumo, como água e luz, também pagam taxas diferenciadas para diversas faixas (leia-se: de consumo/renda). Por que ninguém levanta a bandeira contra? Porque é costume assimilado, como tudo. Sei que o assunto é tabu, e vai contra os motes dos movimentos da UNE desde a ditadura até aqueles anos 1980, gritos que ecoam até hoje: “ensino público e gratuito” (para os ricos especialmente, claro!) e “diretas, urgente, reitor e presidente”. Mesmo mudada a última parte, o bordão ficou.

E sigo com Vandré, deixando minha modesta contribuição: “Se você não concordar / não posso me desculpar / não canto pra enganar / vou pegar minha viola / vou deixar você de lado / vou cantar noutro lugar”.

 
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sexta-feira, 23 de maio de 2014

ESQUARTEJANDO MACHADO

Machado de Assis: o "bruxo do Cosme Velho"
Resolvi, no ano passado, revisitar Machado de Assis. É como voltar a ouvir muito Bach e Mozart antes de retomar os contemporâneos. Pois lembro-me de meu pai dizendo que Machado era a fonte, era onde ele bebia seu vinho literário, a técnica da construção minuciosa e elaborada, porém com simplicidade, visão que serviria tanto a um projeto arquitetônico ou a uma sinfonia ou ainda um improviso de jazz. Dizia ele, e disso me lembro bem, que se todo mundo lesse Machado de Assis menos viadutos cairiam, menos pacientes morreriam nas mesas de cirurgia, menos desastres aconteceriam.

Meu pai e seus livros
Nem sei quantas vezes vi meu pai sentado na cadeira de balanço do escritório, desde cedo da manhã, nas mãos algum Machado outra vez, quem sabe coisa de trinta leituras, sempre as velhas edições saindo das estantes para as mãos dele e vice-versa. A técnica de construção literária, composição dos personagens, as coisas, roupas, detalhes dos vícios e virtudes desenhando o caráter de cada um, os capítulos engendrando acontecimentos futuros, a omissão proposital de algum fato para que o autor remeta a algum capítulo passado, um truque de mestre.

Lincoln e seu Gettysburg Address (1863)
Pois li a maior parte da obra de Machado. Agora, para tentar desenvolver uma escrita própria, em meu aprendizado, voltei a lê-lo. Antes, preciso retornar machadianamente ao meu colégio, com certeza o melhor do Rio na época. E digo que valeu a pena ler Shelley, Byron, Rousseu, tudo no original. Diziam: virem-se, há dicionários para isso. E assim também aprendemos bom inglês e francês, até declamando de cor Abrahão Lincoln, em Gettysburg Address: Four scores and seven years ago, our fathers brought for, in this country, a new nation... (“Oitenta e sete anos atrás, nossos pais construíram, neste país, uma nova nação”). Passaram pelos nossos bancos escolares Mário Henrique Simonsen, Delfim Netto, Arnaldo Jabor, Edu Lobo, Vinicius de Morais, Pedro Malan, Armínio Fraga, Paulo Coelho e os mais novos, como Lulu Santos, Cazuza e Lobão. Todos com sólida formação escolar (e cada qual no seu galho), leram Machado, José de Alencar, Becket e José Lins do Rego, que andava meio ‘proibidão’ por causa de algum pecadilho inocente.

Coturno
Pois foi com Machado que cedo descobri o que era ‘algibeira’ (bolso de paletó), coturno (bota alta com cadarço), e ‘de altos coturnos’ (pessoa de grande importância). E provocando risadinhas pelos cantos da sala, alguém leu que fulano retirou de sua ‘boceta’ uns trocados. Pois que boceta é apenas uma pequena bolsa, onde se levava alguns réis ou rapé. Não sabendo a palavra, toma dicionário, bendito costume que mantenho até hoje. Seja para conferir a grafia, a etimologia (origem) e coisa e tal. Terminado Dom Casmurro e apaixonado pelo jeito com que Machado deixou a trama tanto quanto inconclusiva – afinal, Capitu era a dona do enigma -, ‘baixo’ em meu simplíssimo aparelho, por uns R$ 6,00 ou cousa (volvendo e aprendendo a lição!) que o valha, o célebre Esaú e Jacó, em que dois irmãos gêmeos têm a história contada desde a gravidez materna até as disputas físicas e políticas de jovens adultos.

Um elegante Coupé
Em Esaú e Jacó, li também que um coupé dava voltas em Botafogo, mas que diabo haveria de ser um coupé? Claro, algum tipo de veículo, e de imediato lembrei-me dos calhambeques Ford. Mas, em meados dos anos 1870, no Rio, em plena escravatura, Ford? Lembrei-me das aulas de francês com o Prof. “Feijão”, e de algum texto que falava em “couper les chéveux” (cortar os cabelos). Daí, ‘coupé’ seria cortado, retinho, e, associando, o ‘coupé’ de Machado seria um tipo de  coche (dicionário, por favor). Vencida a batalha, abri o Houaiss, e vi que era realmente uma pequena charrete fechada para apenas duas pessoas, puxada por um ou dois cavalos. Bingo!

Zimmerman: edições modificadas
Machadianamente, outro salto atrás para meus tempos de estudo de música. Tive uma coleção com as partes completas para orquestra de Mozart, Haydn, Weber, Bach, Beethoven, Strauss, tudo com ligaduras (curvas unindo as notas) e dedilhados (qual dedo usar em cada nota). Ideias bem questionáveis, como meu professor dizia. Mas por que fizeram isso, perguntei, ao que ele me respondeu que sem essas adições o material seria ‘apenas’ Beethoven, coisa de domínio público, portanto sem direito autoral a ser pago. E as marcações do Zimmerman, perguntei, e ele falou que é justamente com elas que o “autor” ganha dinheiro.

A gloriosa ABL, "casa" do Machado de Assis
Agora, nossa coda (‘cauda’, final): Machado de Assis é de domínio público (morreu há bem mais de 70 anos, a lei não atinge sua obra), portanto a única forma de alguém ganhar dinheiro em cima será alterar o texto. Para isso, basta trocar palavras como ‘sagacidade’ por ‘esperteza’, mesmo que as duas não sejam bem sinônimas. E outras besteiras como tirar e colocar vírgulas, mudar frases, ai, ai. Escolas receberão 600 mil exemplares simplificados, para engambelar ao invés de ‘desasnar’ (termo machadiano) os alunos. No Brasil, a tortura ao Machado, nosso maior escritor, se faz às nossas expensas, nossos impostos, sem consultar ninguém, sejam professores, especialistas, e mesmo a ABL (a ‘casa’ de Machado!).

Pensemos um mínimo de preço de custo por exemplar de R$ 25,00, mais todas as outras despesas, bufês de lançamento, divulgação, distribuição e tal. R$ 35,00 cada? Faça o cálculo, leitor. A mim, já dói o suficiente ver nossa literatura encolhida, pasteurizada, e, por que não, vilipendiada; pior de tudo, filhos e netos alunos de escolas públicas condenados a vocabulário de smartphone ou twitter. Triste. Ah, o nome da “autora” desse Machado de segunda classe é Patrícia Secco. Logo estará em programas de TV, ou quem sabe ancorando algum telejornal. Aos professores, por não terem obrigação, e em nome da nossa língua, resta implorar para que continuem usando o original.
(Não posso me furtar de recomendar um brilhante artigo de José Miguel Wisnik, disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/machado-copidescado-12513915 Vale a pena)

sábado, 17 de maio de 2014

UPA, JAIR RODRIGUES, NEGUINHO NA ESTRADA!

Quando certa obscura patrulha brasileira resolveu que negro não pode, tem que dizer ‘afrodescendente’ (claro que é!), que deficientes são ‘portadores de necessidades especiais’ (e como não?), e gay é ‘homoafetivo (sim!)’ e por aí vai, encontrou-se uma fórmula mágica para a remissão de nossos pecados de preconceito, tão arraigados em nossas almas e nossa cultura, apesar de camuflados - por mais que os paladinos do bem queiram acobertá-los - com plumagens suaves. Nos EUA o black power continua black; eles só torcem o nariz para o termo ‘negro’ (nigger) pois além de este aludir à escravatura, remete a um passado miserável – até o advento do líder Martin Luther King, Jr.

Movimento provocado por Lennon e Yoko
Assim também disse John Lennon em sua memorável Woman is the Nigger of the World -  “A Mulher é o Nigger do Mundo” -, parodiando por empréstimo o triste papel feminino em uma sociedade machista que sonhamos a caminho da superação. Pela voz do Wilson Simonal (em parceria com Ronaldo Bôscoli), o negro brasileiro se reafirmou: “sim, sou um negro de cor / meu irmão de minha cor / o que te peço é luta, sim / luta mais!”

Disparada: TV Record, 1966
Em 1966, Jair Rodrigues arrebatava o 1º lugar no Festival da Canção da TV Record, com a incomparável “Disparada”, de Geraldo Vandré. Jair estava no auge da fama, pois já havia dividido com Elis Regina, acompanhados pelo Jongo Trio, um marco histórico da música popular brasileira: o programa “2 na Bossa” (1965). Era tudo o que o “Neguinho na Estrada” precisava para se consagrar como um cantor intuitivo, de bela voz de registro tenor, empolgante e agitado como um moleque travesso. Antes disso, já havia aberto caminho ao sucesso de Jair uma novidade, “Deixa isso pra lá” (1964), de Alberto Paz e Edson Menezes. (Vale lembrar que, nos videoquês e sites de música da internet o nome do cantor surge solitário: no mais das vezes o público ignora o compositor. Elis também aparece como ‘autora’ de tantos Jobins que alguns incautos terminam por acreditar em tal autoria. Mas isso é outra história e apenas sirvo-me dela para abrir espaço para homenagear, ao lado de Jair, os esquecidos compositores Paz e Menezes).

Rap de rua no South Bronx de NY
“Deixa isso pra lá” abriu um pomo de controvérsia, um conceito mal-entendido gestado na intuição de amadores e leigos. Anos depois do “Deixa”, disseram que Jair havia sido o precursor do rap – sem ao menos saber o que vem a ser esse estilo, e, ‘montados na fome ufana’, muitos passaram a tocar a história como verdade. O rap surgiu ainda no início anos 60 no South Bronx novaiorquino, dando depois origem ao hip-hop (‘salta-quadris’), um movimento cultural negro aberto a quatro atividades: o graffiti, arte pictórica das ruas, o b-boying, dança com diversas modalidades, MC’ing (de MC, mestre de cerimônias) e DJ’ing (de DJ, disk-jockey, o ‘piloto’ de toca-discos). Pois o rap é todo falado, com uma ou raramente duas notas, como o próprio nome diz: ‘R.A.P’ (rythym and poetry), ritmo e poesia. É um simples improviso sem melodia, construído sobre células rítmicas em ostinato (repetidas). (Veja e ouça abaixo o Da Cypher, legítimo 'rap' do Bronx novaiorquino).



Arnold Schönberg
O “Deixa isso pra lá” de Alberto Paz e Edson Menezes está longe de ser algum tipo de rap, pois desde o primeiro compasso a música desfila uma escala inteira (exatamente na parte que acham ‘falada’. Pois na parte que dizem 'cantada' é exatamente onde há menos notas: "vai, vai, meu bem"). E mais: desde sempre, no Brasil, o coco de embolada e o desafio nordestino disparam versos rápidos com quase nenhuma melodia. Podemos também localizar coisa semelhante lá atrás, no Pierrot Lunaire (1912), de Schönberg, estilo chamado Sprechstimme, e muito antes ainda, entre os menestréis (minstrels), bardos medievais que declamavam suas poesias de modo ritmado. E desde a época medieval - e até em alguns lugares nos dias de hoje, há o responsório da liturgia latina, também palavra ritmada. (Abaixo, trecho do Pierrot Lunaire, de Schönberg)



Jair e seu clássico gesto em "Deixa pra lá"
Achei o assunto “Deixa pra lá” oportuno para esse esclarecimento, mas volto ao tema principal que é o Jair Rodrigues mesmo: uma música com marca registrada e carimbada, com seu sorriso, aquele gesto criativo de quem está xavecando alguém (“deixa isso pra lá / vem pra cá / o que é que tem / faz mal bater um papo / assim gostoso com alguém?”), uma alegria difícil de conter, dava para levantar da cadeira até estátua de mármore. E se o “Deixa pra lá” virou história, repertório e assunto, isso se deve quase que exclusivamente a ele, Jair. (Veja e ouça abaixo).





"Upa, neguinho, na estrada / upa, pra lá e pra cá/ (...) e já começa a apanhar” (video acima), de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, ficou famosa na voz de Elis, e na de Jair “Eu sou o samba / sou natural daqui do Rio de janeiro”. Ninguém mais carioca, mais cheio de ginga de malaco do que esse paulista de Igarapava, que em “Festa para um Rei Negro”, de Zuzuca, samba de enredo de 1971 da Acadêmicos do Salgueiro, sacou seu passaporte carioca e mostrou ao Rio a que veio. Se saiu dos trilhos do samba, foi graças à Disparada, obra-prima do Geraldo Vandré que lhe deu o título de mestre da versatilidade, especialmente após viagens por coisas mais líricas e melodiosas como “Majestade o Sabiá” (1985), de Roberta Miranda. Era o moleque da voz potente, bem articulada e cativante. (Veja e ouça abaixo Jair, ao vivo, no programa da Inezita Barroso, em "Majestade o Sabiá, de Roberta Miranda).


Garrincha: brincalhão e matreiro como Jair
Não dá para falar muito mais do Jair Rodrigues, é difícil explicar para quem não o viu, quem não o viveu. Tal como Garrincha, Jair é difícil de descrever, difícil fazer senti-lo a quem não o viu. Não foi um astro pré-fabricado, ele se fez e se levantou. Não há gravações ou filmes que possam sugerir mais do que uma vaga lembrança do que foi esse neguinho em sua estrada, viagem ao longo da qual os corações de um país inteiro  bateram mais fortes e compassados. E ele nos deu tanto samba, tanta emoção, deu-nos o biscoito fino, o fino da bossa com o coração pleno de alegria.  Jair não nos deixou, é preciso que nós também não nos deixemos dele.

O DONO DO SORRISO


sábado, 10 de maio de 2014

SUAVE É A BRISA-MÃE DA VÉSPERA OU DO AMANHÃ DE MANHÃ

...bendito é o fruto do vosso ventre!


Suave é a brisa-mãe, brisa da véspera ou do amanhã de manhã, que carrega com seu sopro silencioso a pétala que antes abraçava o botão de rosa, brisa que acaricia o cabelo ralo do bebê, é o sonho gostoso de uma noite de verão, é o olhar delicado da mulher a dizer, sorrindo, “pois não?”, é a paisagem campestre e o oceano que se perde ao infinito, sinuosa planície de ondas que descem e sobem, sobem e descem, redondas e perfeitas na cadência irregular da natureza, é o sorriso feminino, sinuoso e insinuante, forma que carrega a um só tempo a pureza, o convite à dança e o desejo, lábios que sussurram e assopram a esperança e a fé, é a nuvem passageira que emoldura o horizonte, a toada sedutora e envolvente da Iara-sereia sobre a pedra do rio, é canto do “Cisne” de Saint-Saëns em um violoncelo distante, é a água que desce o ribeirinho lavando e arredondando as pedras, é a música que o riacho canta em sua perpétua passagem, como cantigas de ninar, é o olhar de Pietá de todas as Madonas do mundo, é a sombra de uma palmeira que já não há e onde sabiá já não canta mais, a água de coco gelada na sombra, tirada do pé, é largar-se na rede sem conseguir sair, que a preguiça amarra o corpo como uma pedra no fundo do lago.

Quando a noite vem, traz com ela a bruma, aquela que, como disse Dante, “o ar cinzento que cobre o sono dos animais na terra”, e refresca o descanso dos homens, envoltos no afagar do silêncio que vem chegando para embalar o sono. E o silêncio vem, misterioso, sedutor, como um grito ao reverso, é pausa vinda do nada que faz ecoar nossos sons imaginários e nosso coração diminuir seu compasso, para que essa música acompanhe as horas da noite em que nos dedicamos à leveza, à contemplação, e às orações, cada um do jeito de cada um. Algum ruído de um carro passando, bem distante, distrai a atenção mas não nos perturba: a distância faz o som suave, quem sabe ele queira compor junto essa sonata plena de grandes pausas, os sons livres sem direção nem duração precisa.

Amanhã de manhã pode ser que chegue, pode ser que não. Mas pode ser também à noite, que é o vestibular do amanhã, noite que nada mais é que a véspera, quando é entoada a liturgia das horas, ao sinal do entardecer. E que seja uma linda Véspera de Mozart, que encheria os céus e a terra de alegria - mas se for amanhã, que seja, será esta a hora da chegada, do rebento que se apresenta ao mundo, esperado, iluminado, pleno de inspiração para a vida. Pode ser que nasça chorando, pois que é da natureza dos nascituros, ao ser-lhes apresentado o mundo, ou quem sabe sorrindo, se nos intervalos dos primeiros ares respirados ele for feliz em concatenar os momentos de inspirar com os de alegria, exercício que ele deverá manter durante toda a vida. (Abaixo, a linda Vesperae Solennes de Confessore, Magnificat, de Mozart)

E que ele seja suave, mesmo com as mãos cerradas qual o botão de flor que ainda vai se abrir, e quando as abre vai soltando segredos, borboletas e arco-íris gravados em sua imaginação (coisas  que não sabemos, e mesmo que soubéssemos não compreenderíamos). Suaves serão os primeiros passos, a alegria da conquista – é isso, o primeiro passo do conquistador de um mundo melhor, para ele e os que vierem depois dele para assumir seu lugar ao mundo, seja na calmaria ou na brisa suave, que seja até na tempestade (porque esta é apenas um pequeno espirro da natureza: os grandes acidentes não são mais do que diminutos acontecimentos diante da imorredoura enormidade da vida).

E logo, logo se abre a janela pela primeira vez, como quem sai do mistério e quer desvendar o redor, e aquela luz de brilho real vinda do sol confunde os olhos, até há pouco cobertos pela penumbra da barriga-mãe, e aos poucos eles se acostumam com o mundo, suas cores, seus movimentos das ramas e copas das árvores que o vento balança, ou as nuvens que o vento leva, errantes, pra o desconhecido. Ao despertar para o mundo ele verá as pessoas com seus rostos engraçados, enormes e distorcidos, fazendo bocas, bicos e caretas: uns bonitos, outros feios, mas todos engraçados. (Como é estranha essa gente-gente! Hei de suportar com meu amor tantos carinhos, aquele pega-pega e carrega e beija, aperta e espreme, coisa que eu tenho que aceitar para agradar a todos - afinal no fundo, no fundo, sou bem-vindo, e todos me querem bem).
Lança, balança, embala o sono, balança mais, ele dorme, a mãe guarda a lambança - brincar é uma festa e única ocupação -, resta à mami pouco tempo pra curtir e cantar boi valentão, summertime and your livin’s easy, que a cuca vem pegar, a Lullaby de Brahms ou aquelas canções que as mamães improvisam, em ‘boca chiusa’, com os lábios cerrados, qual fosse a soprano da Bachiana 5 de Villa-Lobos. E pode arriscar cantar o tuiú do trenzinho que passa - o do Villa é do caipira, o trem do Drummond é poesia das Minas Gerais, que “bufando na ponte preta, é um bicho comendo as casas velhas” (saudação do poeta à Vila Alegre e Sorridente de Nossa Senhora do Ó de Sabará-Buçú, ou simplesmente Sabará). E se o sono do pequenino não pega, ah, não precisa amansar a toada, é para apressar mesmo, eu gosto de ser chacoalhado, voar, acostumei-me com o embalo de quando eu era levado a caminhar, carregado no ventre, sem saber que andava e nem pra onde, pois submerso dentro daquele meu mundo pequeno, não via, não ouvia, não chorava nem sorria, somente chacoalhava e eu me divertia, quando ensaiava meus passos de futebol.  (Abaixo, Summertime, de George Gershwin, gravada em 1935 pela imortal Billie Holiday: "os peixes saltam e o algodão está alto...seu pai é rico e sua mãe é bonita...então corra, bebê, você sabe, não chore").

(E quem falou que eu gosto daquele silêncio de hospital? Eu gosto é de bagunça, de gente, de música, gosto de vir ao mundo após esse mundaréu de tempo que foram meses em que esperei nadando no escuro, sozinho ouvindo os batimentos de coração de quem me carregava (a quem eu nem ao menos conhecia!), o som grave do fluir do sangue de um corpo maior do que o meu, como fosse riacho grande, e o ruído muito fino, agudo, do sistema nervoso, tudo que preparava meus ouvidos para o que iria apreciar na música da natureza, sob a regência perfeita da vida).

Cresce, vira gente, ou quase, atazana com estripulias a vida alheia, cuidado com a queda, menino, não caia! Não caia da bicicleta, não pule do muro, não salte do galho da jabuticabeira, um tombo besta pode lhe quebrar o braço! Mas tudo é um ensaio de coragem, de enfrentar, de perder o medo, o medo que a todos acompanha e desafia. Mas nada lhes mete apavora, eles nascem eternos, não conhecem o tempo do relógio, pensam, nunca morrerão até descobrirem que um dia podem até morrer. São terríveis inovadores, inventam coisas e gentes imaginárias e tolices, e às vezes percebem o mundo de forma genial, sem poderem explicar.

E assim a vida segue, às vezes por linhas tortas, como o anjo “gauche” do Drummond, e ela há de se perpetuar enquanto os homens durarem sobre este planeta. Mas antes que nunca, há quem traga ao nascer mulher o ventre que tem feito a vida se repetir, acontecer de novo, reproduzir-se em novas vidas, seja na brisa-mãe da véspera de hoje ou na de amanhã de manhã. Salve todas as mães do mundo, e em especial a minha, Lucia, e minha filha, Marta, que trará (ou já trouxe hoje, quem sabe?) ao mundo um londrino, Thomas, que vai ser embalado pelo som do Big-Ben, ou ainda em um carrinho nas passagens floridas do Covent Garden em tempos de alta primavera, ou mesmo assistindo à mudança da guarda da Rainha, orgulho de todos os ingleses, como ele. Aprenderá a cantar o Hino, o verdadeiro anthem anglicano – God Save the Queen ! Pois Deus salve todas as rainhas do mundo em seu dia e dê vida longa às rainhas de nossas vidas!

sábado, 3 de maio de 2014

FERIADAÇOS E ENFORCADOS

Celebração do Ramadã
Na semana passada publiquei neste espaço uma postagem intitulada “Eita Feriadaço Bão”, um quadro comparativo entre os feriados brasileiros, norte-americanos e ingleses. Dos três países, o Brasil é de longe o campeão, não apenas nos feriados nacionais e estaduais, como também nos religiosos exclusivos, como o Yon Kipur, o Hosh Hashaná e o Pessach judaicos, no Rio e em São Paulo (onde há ainda os 2 dias islâmicos do Ramadã). Divagando pela matemática simples, imagine um funcionário público de São Paulo de origem judaica e conjugue todas as possibilidades. Primeiro, as férias de 30 dias, não existentes na Inglaterra ou EUA, mais o chamado 13º salário, pago em pecúnia, claro, já que não temos 13 meses no ano. Já são 60 dias de folga, e o 1/3 de férias até podemos, para simplificar, retirar da conta. Há a licença-prêmio, 18 dias de folga anuais a serem usufruídos em 3 meses diretos a cada cinco anos, e os 10 abonos anuais a que tem direito o servidor – ou seja, já são 78 dias no total.

Há oito feriados nacionais, desde N. Sª da Aparecida até a Proclamação da República.  Há feriados estaduais – no Rio, os dias da Consciência Negra e de São Jorge, entre outros, e em São Paulo o 9 de julho, mais os enforcamentos de carnaval e outros. Na hipótese de um servidor que professa a religião judaica, ele já soma 82 dias de folga, tirando os 4 feriados da cidade que a lei 9335/93 permite aos municípios determinar.

Já se ‘nosso’ servidor é docente de universidade pública, acrescente-se o recesso escolar (mais 2 meses), além de duas ou até quatro semanas estimuladas frequentemente pelos alunos, que nem vão: a da Páscoa, a do Professor, a do Saco Cheio e a da Pátria, totalizando 110 dias, que somados aos 112 dias de folgas semanais remuneradas (sábados e domingos), já chegam a 224 dias, a maior parte do ano! Com os “enforcamentos”, a balança entorta de vez para o descanso. E descansa, confortável.

Trabalho na Revolução Industrial
Ao terminarmos o fim de semana retrasado com 4 dias de folga, da Sexta Santa até Tiradentes, na segunda, e em vista da quinta, dia do trabalho, feriado emendado com a sexta passada, teríamos tido 10 dias: 8 de folga e dois de trabalho. Aqui ficamos em uma sinuca de bico: ou se mantém o vício ou se trabalha, mesmo que 'pessoa jurídica de personalidade privada' como a Organização Social. Pois exatamente por se tratar de uma OS – sociedade civil sem fins lucrativos - a visibilidade tem que ser ainda maior, o dinheiro é público. Mais ainda, a produtividade tem que ser exemplar, afinal é o cumprimento de 100% das centenas de metas contratadas com o executivo estadual que impulsiona o projeto rumo ao futuro com qualidade e faz voltar o interesse do estado ao trabalho do Conservatório, que é afinal a unidade para a qual a Organização presta os serviços que a comunidade de músicos e estudantes, mais a população em geral, podem usufruir com os melhores resultados.

Neste “feriadaço” do dia 1º de maio fizemos uma experiência diferente, visando à manutenção do ritmo acelerado de trabalhos (os 60 anos do Conservatório são celebrados em ritmo dobrado!). Mas cuidamos para conceder à maioria a possibilidade do descanso – crédito voluntário que no futuro poderá contribuir para as necessidades comuns da Organização e empregados conscientes. Em números: 63,8% dos alunos, segundo pesquisa independente, moram em outras cidades e viajam duas a três vezes por semana para frequentar as aulas. 30,4% mudaram-se para Tatuí para estudar, totalizando 93,8% de alunos ‘de fora’. Como o índice de faltas é bem alto nesses dias encavalados entre feriados, ficam comprometidos os ensaios dos grupos e aulas, daí a folga já marcada no calendário escolar.

Foi atribuída a cada gerência a decisão de dispensar sua equipe ou manter o trabalho na sexta-feira. Assim, para citar dois exemplos, as equipes de comunicação e recursos humanos (é época de fechamento da revista Ensaio, divulgação e da folha de pagamento para o dia 6!) não foram dispensadas pelas suas gerências, por necessidade premente de serviço, enquanto outras deixaram em casa seu pessoal. As equipes que não trabalharam tiveram sua folga informal voluntária – é sempre bom frisar -, e podem revertê-la em favor do seu trabalho em necessidades futuras. A experiência foi válida, e carece ser analisada com maiores detalhes.

Herman Hollerith e sua bugiganga
Há muitos anos, indústrias e grandes comércios de alguns países europeus estabeleceram chefias de seções com autonomia para exercer um regime de compensação por faltas, saídas antecipadas ou ingresso em serviço com atraso - sob o controle de pessoa responsável -  em horas ou dias a serem contabilizados e compensados posteriormente. Antes, reinava absoluta aquela terrível maquininha que marcava um cartão chamado holerite, termo cunhado em nome de seu inventor, Herman Hollerith (1880). Uma vez inserida a cartela, com uma alavanca nela se fazia um furo, que marcava no local programado a entrada e saída do dia trabalhado. Mais adiante, novas maravilhas tecnológicas passaram a imprimir também as horas exatas de entrada e saída, dotando o controle de rigidez ainda maior. (Quase chegando ao filme de Charles Chaplin em que o mestre americano ironiza os cacoetes da “maquinização” do homem).

O "Gerente Amigo"



Quanto à experiência europeia do “gerente amigo”, o resultado foi um admirável aumento de produtividade. Essa prática encontraria empecilhos na rígida legislação brasileira, mas nada impede que funcionários possam escolher trabalhar, ajudando a desfazer o mito do enforcamento, enquanto outros dispensados venham se mostrar colaborativos adiante quando necessário. Por fim, um célebre filósofo alemão do passado que disse que é por meio de seu trabalho o homem se realiza. (Isso o diferenciaria dos outros animais). Para nós, do Conservatório, foi uma experiência, e quem sabe uma luz para novos caminhos.