Machado de Assis: o "bruxo do Cosme Velho" |
Meu pai e seus livros |
Nem
sei quantas vezes vi meu pai sentado na cadeira de balanço do escritório, desde
cedo da manhã, nas mãos algum Machado outra vez, quem sabe coisa de trinta leituras,
sempre as velhas edições saindo das estantes para as mãos dele e vice-versa. A
técnica de construção literária, composição dos personagens, as coisas, roupas,
detalhes dos vícios e virtudes desenhando o caráter de cada um,
os capítulos engendrando acontecimentos futuros, a omissão proposital de
algum fato para que o autor remeta a algum capítulo passado, um truque de
mestre.
Lincoln e seu Gettysburg Address (1863) |
Pois li a maior parte da obra de Machado. Agora, para
tentar desenvolver uma escrita própria, em meu aprendizado, voltei a lê-lo. Antes,
preciso retornar machadianamente ao meu colégio, com certeza o melhor do Rio na
época. E digo que valeu a pena ler Shelley, Byron, Rousseu, tudo no original. Diziam:
virem-se, há dicionários para isso. E assim também aprendemos bom inglês e
francês, até declamando de cor Abrahão Lincoln, em Gettysburg Address: Four
scores and seven years ago, our fathers brought for, in this country, a new
nation... (“Oitenta e sete anos atrás, nossos pais construíram, neste país,
uma nova nação”). Passaram pelos nossos bancos escolares Mário Henrique
Simonsen, Delfim Netto, Arnaldo Jabor, Edu Lobo, Vinicius de Morais, Pedro
Malan, Armínio Fraga, Paulo Coelho e os mais novos, como Lulu Santos, Cazuza e
Lobão. Todos com sólida formação escolar (e cada qual no seu galho), leram Machado, José de Alencar,
Becket e José Lins do Rego, que andava meio ‘proibidão’ por causa de algum pecadilho
inocente.
Coturno |
Pois
foi com Machado que cedo descobri o que era ‘algibeira’ (bolso de paletó),
coturno (bota alta com cadarço), e ‘de altos coturnos’ (pessoa de grande importância).
E provocando risadinhas pelos cantos da sala, alguém leu que fulano retirou de
sua ‘boceta’ uns trocados. Pois que boceta é apenas uma pequena bolsa, onde se
levava alguns réis ou rapé. Não sabendo a palavra, toma dicionário, bendito
costume que mantenho até hoje. Seja para conferir a grafia, a etimologia (origem)
e coisa e tal. Terminado Dom Casmurro e apaixonado pelo jeito com que Machado
deixou a trama tanto quanto inconclusiva – afinal, Capitu era a dona do enigma -,
‘baixo’ em meu simplíssimo aparelho, por uns R$ 6,00 ou cousa (volvendo e aprendendo
a lição!) que o valha, o célebre Esaú e Jacó, em que dois irmãos gêmeos têm a
história contada desde a gravidez materna até as disputas físicas e políticas de jovens adultos.
Um elegante Coupé |
Em
Esaú e Jacó, li também que um coupé dava voltas em Botafogo, mas que diabo
haveria de ser um coupé? Claro, algum tipo de veículo, e de imediato lembrei-me dos
calhambeques Ford. Mas, em meados dos anos 1870, no Rio, em plena escravatura, Ford?
Lembrei-me das aulas de francês com o Prof. “Feijão”, e de algum texto que
falava em “couper les chéveux” (cortar os cabelos). Daí, ‘coupé’ seria cortado,
retinho, e, associando, o ‘coupé’ de Machado seria um tipo de coche (dicionário, por favor). Vencida a
batalha, abri o Houaiss, e vi que era realmente uma pequena charrete fechada para
apenas duas pessoas, puxada por um ou dois cavalos. Bingo!
Zimmerman: edições modificadas |
Machadianamente, outro salto atrás para meus tempos de estudo de
música. Tive uma coleção com as partes completas para orquestra de Mozart,
Haydn, Weber, Bach, Beethoven, Strauss, tudo com ligaduras (curvas unindo as notas)
e dedilhados (qual dedo usar em cada nota). Ideias bem questionáveis, como meu
professor dizia. Mas por que fizeram isso, perguntei, ao que ele me respondeu
que sem essas adições o material seria ‘apenas’ Beethoven, coisa de domínio
público, portanto sem direito autoral a ser pago. E as marcações do Zimmerman, perguntei,
e ele falou que é justamente com elas que o “autor” ganha dinheiro.
A gloriosa ABL, "casa" do Machado de Assis |
Agora,
nossa coda (‘cauda’, final): Machado de Assis é de domínio público (morreu há bem
mais de 70 anos, a lei não atinge sua obra), portanto a única forma de alguém ganhar dinheiro em cima será
alterar o texto. Para isso, basta trocar palavras como ‘sagacidade’ por
‘esperteza’, mesmo que as duas não sejam bem sinônimas. E outras besteiras como tirar e colocar vírgulas, mudar frases, ai, ai. Escolas receberão 600
mil exemplares simplificados, para engambelar ao invés de ‘desasnar’ (termo
machadiano) os alunos. No Brasil, a tortura ao Machado, nosso maior escritor,
se faz às nossas expensas, nossos impostos, sem consultar ninguém, sejam
professores, especialistas, e mesmo a ABL (a ‘casa’ de Machado!).
Pensemos
um mínimo de preço de custo por exemplar de R$ 25,00, mais todas as outras
despesas, bufês de lançamento, divulgação, distribuição e tal. R$ 35,00 cada? Faça o cálculo, leitor. A mim, já dói o
suficiente ver nossa literatura encolhida, pasteurizada, e, por que não,
vilipendiada; pior de tudo, filhos e netos alunos de escolas públicas condenados a vocabulário de
smartphone ou twitter. Triste. Ah, o nome da “autora” desse Machado de segunda classe é
Patrícia Secco. Logo estará em programas de TV, ou quem sabe ancorando algum telejornal.
Aos professores, por não terem obrigação, e em nome da nossa língua, resta implorar
para que continuem usando o original.
(Não posso me furtar de recomendar um brilhante artigo de José Miguel Wisnik, disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/machado-copidescado-12513915 Vale a pena)
Caro Henrique: Que absurdo!... Fico indignado - com tudo isso! Sem mais palavras!
ResponderExcluir______ VILIPÊNDIO ______
No Brasil, não tem mais Índio,
Nem também — cabra da peste;
O estipêndio é um vilipêndio,
Num inconteste ao vil cipreste!
No poder, ninguém que preste,
Na Esplanada e na amplidão...
Que inda gera a escravidão,
No estertor d’uma ditadura
Que nos leva à sepultura,
— Pelo rabo d’um tufão?!...
Paulo Costa (Pacco)