Quando certa obscura patrulha brasileira resolveu que negro não
pode, tem que dizer ‘afrodescendente’ (claro que é!), que deficientes são ‘portadores
de necessidades especiais’ (e como não?), e gay é ‘homoafetivo (sim!)’ e por aí
vai, encontrou-se uma fórmula mágica para a remissão de nossos pecados de
preconceito, tão arraigados em nossas almas e nossa cultura, apesar de camuflados
- por mais que os paladinos do bem queiram acobertá-los - com plumagens suaves.
Nos EUA o black power continua black; eles só torcem o nariz para o termo
‘negro’ (nigger) pois além de este aludir
à escravatura, remete a um passado miserável – até o advento do líder Martin
Luther King, Jr.
Movimento provocado por Lennon e Yoko |
Assim também disse John Lennon em sua memorável Woman is the Nigger of the World - “A Mulher é o Nigger do Mundo” -, parodiando por empréstimo o triste papel feminino
em uma sociedade machista que sonhamos a caminho da superação. Pela voz do Wilson
Simonal (em parceria com Ronaldo Bôscoli), o negro brasileiro se reafirmou:
“sim, sou um negro de cor / meu irmão de minha cor / o que te peço é luta, sim
/ luta mais!”
Disparada: TV Record, 1966 |
Em 1966, Jair Rodrigues arrebatava o 1º lugar no Festival da
Canção da TV Record, com a incomparável “Disparada”, de Geraldo Vandré. Jair estava
no auge da fama, pois já havia dividido com Elis Regina, acompanhados pelo
Jongo Trio, um marco histórico da música popular brasileira: o programa “2 na
Bossa” (1965). Era tudo o que o “Neguinho na Estrada” precisava para se
consagrar como um cantor intuitivo, de bela voz de registro tenor, empolgante e
agitado como um moleque travesso. Antes disso, já havia aberto caminho ao sucesso
de Jair uma novidade, “Deixa isso pra lá” (1964), de Alberto Paz e Edson
Menezes. (Vale lembrar que, nos videoquês e sites de música da internet o nome
do cantor surge solitário: no mais das vezes o público ignora o compositor.
Elis também aparece como ‘autora’ de tantos Jobins que alguns incautos terminam
por acreditar em tal autoria. Mas isso é outra história e apenas sirvo-me dela
para abrir espaço para homenagear, ao lado de Jair, os esquecidos compositores
Paz e Menezes).
Rap de rua no South Bronx de NY |
“Deixa isso pra lá” abriu um pomo de controvérsia, um conceito
mal-entendido gestado na intuição de amadores e leigos. Anos depois do “Deixa”,
disseram que Jair havia sido o precursor do rap
– sem ao menos saber o que vem a ser esse estilo, e, ‘montados na fome ufana’, muitos
passaram a tocar a história como verdade. O rap
surgiu ainda no início anos 60 no South Bronx novaiorquino, dando depois origem
ao hip-hop (‘salta-quadris’), um
movimento cultural negro aberto a quatro atividades: o graffiti, arte pictórica das ruas, o b-boying, dança com diversas modalidades, MC’ing (de MC, mestre de cerimônias) e DJ’ing (de DJ, disk-jockey,
o ‘piloto’ de toca-discos). Pois o rap
é todo falado, com uma ou raramente duas notas, como o próprio nome diz: ‘R.A.P’
(rythym and poetry), ritmo e poesia.
É um simples improviso sem melodia, construído sobre células rítmicas em ostinato (repetidas). (Veja e ouça abaixo o Da Cypher, legítimo 'rap' do Bronx novaiorquino).
Arnold Schönberg |
O “Deixa isso pra lá” de Alberto Paz e Edson Menezes está
longe de ser algum tipo de rap, pois
desde o primeiro compasso a música desfila uma escala inteira (exatamente na
parte que acham ‘falada’. Pois na parte que dizem 'cantada' é exatamente onde há menos notas: "vai, vai, meu bem"). E mais: desde sempre, no Brasil, o coco de embolada
e o desafio nordestino disparam versos rápidos com quase nenhuma melodia. Podemos
também localizar coisa semelhante lá atrás, no Pierrot Lunaire (1912), de Schönberg, estilo chamado Sprechstimme, e muito antes ainda, entre
os menestréis (minstrels), bardos
medievais que declamavam suas poesias de modo ritmado. E desde a época medieval - e até em alguns lugares nos dias de hoje, há o responsório da liturgia latina, também palavra ritmada. (Abaixo, trecho do Pierrot Lunaire, de Schönberg)
Jair e seu clássico gesto em "Deixa pra lá" |
Achei o assunto “Deixa pra lá” oportuno para esse
esclarecimento, mas volto ao tema principal que é o Jair Rodrigues mesmo: uma música
com marca registrada e carimbada, com seu sorriso, aquele gesto criativo de
quem está xavecando alguém (“deixa isso pra lá / vem pra cá / o que é que tem /
faz mal bater um papo / assim gostoso com alguém?”), uma alegria difícil de
conter, dava para levantar da cadeira até estátua de mármore. E se o “Deixa pra
lá” virou história, repertório e assunto, isso se deve quase que exclusivamente
a ele, Jair. (Veja e ouça abaixo).
"Upa, neguinho, na estrada / upa, pra lá e pra cá/ (...) e já começa a apanhar” (video acima), de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, ficou famosa na voz de Elis, e na de Jair “Eu sou o samba / sou natural daqui do Rio de janeiro”. Ninguém mais carioca, mais cheio de ginga de malaco do que esse paulista de Igarapava, que em “Festa para um Rei Negro”, de Zuzuca, samba de enredo de 1971 da Acadêmicos do Salgueiro, sacou seu passaporte carioca e mostrou ao Rio a que veio. Se saiu dos trilhos do samba, foi graças à Disparada, obra-prima do Geraldo Vandré que lhe deu o título de mestre da versatilidade, especialmente após viagens por coisas mais líricas e melodiosas como “Majestade o Sabiá” (1985), de Roberta Miranda. Era o moleque da voz potente, bem articulada e cativante. (Veja e ouça abaixo Jair, ao vivo, no programa da Inezita Barroso, em "Majestade o Sabiá, de Roberta Miranda).
Garrincha: brincalhão e matreiro como Jair |
Não dá para falar muito mais do Jair Rodrigues, é difícil
explicar para quem não o viu, quem não o viveu. Tal como Garrincha, Jair é
difícil de descrever, difícil fazer senti-lo a quem não o viu. Não foi um astro
pré-fabricado, ele se fez e se levantou. Não há gravações ou filmes que possam sugerir mais
do que uma vaga lembrança do que foi esse neguinho em sua estrada, viagem ao
longo da qual os corações de um país inteiro bateram mais fortes e compassados. E ele nos
deu tanto samba, tanta emoção, deu-nos o biscoito fino, o fino da bossa com o
coração pleno de alegria. Jair não nos
deixou, é preciso que nós também não nos deixemos dele.
O DONO DO SORRISO |
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