O compositor português Jorge Peixinho, falecido há 20 anos |
Há mais de quinze anos, recebi em minha sala na Escola de
Música do Teatro Municipal de São Paulo, que eu dirigia, uma pesquisadora de
uma universidade norte-americana, Geysa Dourado, sobrenome tal qual o meu. Especialista
em genealogia, tinha estudado também a de sua própria família. Não achamos elo
de parentesco entre nós, mas descobri como meu sobrenome teria parado no
Brasil. Ele havia sido traduzido do hebraico como “peixinho dourado”, referência
a algum tipo de peixe da região do Douro. O sobrenome, com o tempo, terminou sendo
desmembrado em Peixinho (aliás, importante compositor lusitano
falecido em 1995, de prenome Jorge) e Dourado, sendo que o último veio para o Brasil aportando
primeiro na Bahia e depois Rio Grande do Sul, terra de meu avô paterno.
Os 'reis católicos', óleo de Domínio Público |
Resolvi revisitar a história universal, a partir de 1492, quando
a Constantinopla bizantina caiu nas mãos dos otomanos (turcos), que marcou o começo do término da dominação moura na Península Ibérica (711-1492). Em 1497 assumiram o poder
na Espanha e em Portugal os ‘reis católicos’ Fernando de Aragão e Isabel de
Castela, que, ao se casarem, uniram também os dois países em uma só Espanha, governada
a quatro mãos de ferro. Com a reconquista da Península, em 1492, os muçulmanos foram
expulsos, e o judaísmo proscrito para a imposição total do catolicismo como religião oficial do Reino.
Rotas de fuga dos judeus da Península para a Europa e norte da África |
Muitos judeus fugiram para a Europa, instalando-se na
Holanda e Itália, entre outros países, e no norte da África. Depois, da Holanda invadiram o Brasil (séc.
17, pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais), e chegaram aos EUA, onde
ergueram a Nova Amsterdam, depois renomeada Nova Iorque (Amsterdam, nome de uma
cidade dos Países Baixos, e Iorque uma região da Inglaterra).
Fundação de New Amsterdam (New York) |
Menorah |
Já os judeus que ficaram na Península Ibérica continuavam a realizar seus ritos nos porões, todos com seu ‘menorah’ (candelabro sagrado de 9 velas da cerimônia do Hanukah), textos em hebraico e estrelas de David. Nesses locais, frequentemente, havia no nível da rua igrejas católicas como camuflagem para as práticas religiosas próprias das sinagogas.
Miranda do Douro |
Os ‘novos cristãos’ passaram a adotar nomes não judeus, começando com o que tinham de mais próximo: árvores e frutos (Carvalho,
Pereira, Figueira), animais (Bezerra, Coelho). Também adotaram sobrenomes das chamadas
toponímias (nomes de lugares), referindo-se a terras ou acidentes geográficos:
Ribeiro (riacho), Miranda (cidade do mesmo nome, perto do rio Douro), Camargo (os
dois últimos sobrenomes geralmente precedidos por ‘de’), da província espanhola
de Santander, Cabral (‘lugar onde passam as cabras’) ou Bragança (cidade de
Portugal).
Fushi, imperador chinês |
Segundo o historiador Moacyr Costa Ferreira, o uso do sobrenome surgiu
com o imperador chinês Fushi (2.850 a.C.), que decretou que todos deveriam
possuir um nome de família, para melhor identificação. Esses sobrenomes deveriam
ser extraídos das 438 palavras do poema Po-Chia-Hsing (“Po chia hsing chien tzû
wên...”).
O grande Mario del Monaco, como Sansão, na ópera Sansão e Dalila, de Camile Saint-Saëns |
A Itália foi um dos países mais tardios a adotar sobrenomes: costumavam referir-se
às pessoas conforme o lugar de onde vinham, como Leonardo da Vinci, Gasparo da
Salò (grande fabricante de violinos que viveu há mais de 500 anos) e Pierluigi
da Palestrina, compositor do auge da polifonia (música com duas ou mais linhas
melódicas independentes).
Livro dos Números, do Pentateuco |
Hoje, na Itália, toponímias já se tornaram sobrenomes regulares, a exemplo de Pepino di Capri
(cantor popular romântico) e Mario del Monaco (fabuloso tenor lírico). Entre os hebreus
(Livro dos Números, do Pentateuco, de onde vem o Torá, livro sagrado judaico),
era comum o nome paterno junto ao prenome do filho: Números, 1:5 - "Estes são, pois, os nomes dos homens que vos assistirão: Rúben Elizur, filho de Sedem; 6 - de Simeão, Selumiel, filho de Zurisadai; 7 - de Judá, Nasom, filho de Aminadabe". (Palavras do Senhor a Moisés, na tenda da revelação, no deserto de Sinai, dois anos depois da saída do povo Hebreu do Egito).
João Cabral de Melo Neto. Foto: revistabula.com |
(No Brasil, nos sertões onde a pobreza mata de fome, na falta de
sobrenome e às vezes até na ignorância de quem são os próprios pais, muito se
identificam de modo curioso. Conta ‘Morte e Vida Severina’, poema de João
Cabral de Melo Neto, que o retirante se apresenta logo ao início, falação que adiante
repasso encurtada: “Como então dizer quem fala / ora a vossas Senhorias? /
Vejamos, é o Severino da Maria do Zacarias / lá da serra da Costela, limites da
Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: Se ao menos cinco havia / com nome de Severino
/ filhos de tantas Marias / mulheres de tantos outros / já finados Zacarias...”
Tortura na Santa Inquisição espanhola. Domínio público |
Os sobrenomes adotados pelos ‘novos cristãos’ foram escolhidos
pelos judeus sefaraditas (de Sefarad: Península Ibérica, em hebraico), que
haviam imigrado para as terras de Portugal e Espanha, região a que se referiam,
até por verem semelhanças entre cabeça do animal e o contorno da Península no mapa,
como ‘O Leão de Judá’, a terra prometida na Europa ocidental. Fugiram da Santa Inquisição
Espanhola (1478 -1834), espalhando-se por países da Europa, norte da África, EUA e,
entre os países latinos, principalmente Brasil e México.
Tratado de Tordesilhas, Biblioteca Nacional de Lisboa Domínio Público |
Aqui, aportamos como ‘novos cristãos’ em terra indígena,
que em tupi-guarani se dizia Pindorama (lugar das palmeiras) e, com a nossa
chegada em 1.500, Vera (verdadeira) Cruz. Com o Tratado de Tordesilhas (1494), portugueses
e espanhóis haviam dividido o mapa do mundo com uma risca vertical: da América
de Colombo para a esquerda, para os espanhóis, e para os portugueses o lado
direito, demarcando para ambas as partes direitos até sobre eventuais futuras descobertas. Hoje, brancos
que vieram daqueles judeus e muçulmanos, mesclados com italianos, orientais e outros
povos e raças, não vivemos em guerra (ao menos literal) entre nós mesmos, apesar
de o mundo ver radicais fundamentalistas usando em vão o nome de suas religiões
em constantes conflitos. Por fim, o que nós fizemos com os antigos inquilinos
da terra, os índios, daria outro longo, longo capítulo.
Primeira missa em Pindorama |