“O Haiti é aqui”,
frase de uma música do Caetano Veloso, serviu de título para um artigo que
escrevi há uns anos sobre esse jovem haitiano. Refiz dois parágrafos para revisitar
sua história, ainda cheia de mistérios para todos. Pois vamos a ela: foi por
intermédio do oboísta Alex Klein, durante 20 anos solista da Sinfônica de
Chicago, que vim a saber do Jean Gerald. Com 24 anos de idade, resolveu certo dia
cabular aulas de música na Holy Trinity School de Porto Príncipe, capital do
Haiti. Pois foi exatamente naquele dia que Jean perdeu na escola ali cinco amigos,
vitimados pelo absurdo terremoto de 7 pontos na escala Richter que devastou o
país. (Segunda-feira passada, 12 de janeiro, o terremoto completou 5 anos!). A casa
da família milagrosamente resistiu, mas seus amigos de fora ficaram sem saber, durante semanas,
se ele teria sido morto na tragédia, por falta de comunicação.
Foto: megaarquivo.com. Janeiro de 2010 |
Eu o
conhecia apenas por uma gravação. Mas foi com felicidade que pudemos receber o
jovem oboísta, e ver pessoas daqui e dos EUA ajudando-o a superar aqueles momentos
indizíveis, cruéis. Sim, a tragédia que vimos em cores na TV existiu mesmo, não
foi ‘thriller’ de horror: cortou fundo como navalha, queimou com ferro em brasa
milhares de inocentes, esmagou idosos, crianças e jovens, ceifou talentos,
amores e profissões.
Foto: Letícia Moreira, Folhapress |
Cumprida a
etapa da aprovação no teste de admissão no Conservatório, passamos à busca do visto
de estudante, condição para seu ingresso. Na Polícia Federal, seguindo as
instruções que uma moça gentil havia nos dado ao telefone: bastaria ir lá, uma
vez entregue a documentação, para sair com o visto tão desejado. Mas não. Jean teria
de ir ao seu país de origem para pedir o visto! – liguei para um agente: mas
qual embaixada? (“cara pálida”, quase completei, lembrando a velha piada). Ela
está no chão! A nossa era um entulho disforme de tijolos e pedras!
Relatório da Assistência Social do Conservatório |
Pois Jean logrou
obter o visto, obteve lugar no alojamento, eu comprei o ‘enxoval’ de quarto,
com toalhas, edredon, roupa de cama, artigos de higiene, outros deram ajuda em
dinheiro. Fez jus a receber uma bolsa-auxílio (R$ 415,00, ver relatório acima), e em pouco tempo,
talentoso músico, ingressou na Banda Sinfônica e após na Orquestra Sinfônica, passou
a receber uma bolsa-performance (R$ 1.000,00) e foi indicado por professores para usar um dos
instrumentos doados por um acordo de delação por sentença da Justiça Federal. O
despacho exigia do aluno nunca ser reprovado, e que a propriedade (ele tinha
apenas uma posse precária do oboé) se daria com a conclusão do curso. Jean foi
matéria na imprensa, era muito dedicado e tinha um futuro brilhante pela
frente. E deixou de lado seu velho oboé com rachadura e defeitos para receber
um instrumento que valia o preço de um carro popular.
Mas algo aconteceu
nesse caminho. Jean estava confuso, alheio, muito devido ao seu retorno à tradição de sua
família, cristã, e os ritos haitianos, sincretismo que não se sabe exatamente
quando começava um e quando terminava outro. Na verdade, era uma espécie de
mesclagem, um ‘medley’ religioso. Houve ajuda de nossa assistente social
Lucilene Pedrina, encaminhamento a auxílio profissional e muita preocupação
nossa, apesar de Jean ser avesso a drogas, não beber ou sequer fumar.
Passaporte cancelado |
Em resumo, precisava ser
tratado por especialista. Perambulava pelas ruas, e quando reapareceu um dia mostrou-me que seu visto
brasileiro estava vencido. Missão impossível, mexi até com o Ministério das
Relações Exteriores, na busca insana por uma chance; porém, onde estaria Jean? Ele foi visto
dormindo no metrô Barra Funda em SP, mas desapareceu e meus esforços legais e
políticos chegaram ao limite de minhas possibilidades. Tivemos de lavrar dois
boletins de ocorrência no Distrito Policial: o Dr. Ivan Rodrigues registrou o desaparecimento
do jovem e do instrumento, pois eu também deveria, fiel depositário do oboé sob
responsabilidade via sentença, documentar e relatar a perda à Justiça Federal. (Veja
abaixo a reportagem da TVTEM/Globo da época, relatando o desaparecimento e pedindo ajuda a quem o visse. Você deve copiar o endereço inteiro do link abaixo e colá-lo em seu navegador).
http://globotv.globo.com/tv-tem-interior-sp/tem-noticias-2a-edicao-itapetiningaregiao/v/estudante-haitiano-do-conservatorio-de-tatui-sp-esta-desaparecido-ha-uma-semana/2140370/
Caribe: Cuba (esquerda, no alto), Haiti, a capital Porto Príncipe, e a fronteira com a República Dominicana, à direita. Imagem: Wikipédia |
Tempos se
passaram, e um pai de aluno achou na internet vídeo de Jean Gerald em Vilhena, Rondônia, uma das portas de entrada e saída de haitianos via Acre. (Veja e ouça o vídeo no final deste texto). Bem mais magro, Jean tocava oboé, e com essa pista tratamos de procura-lo. Sem visto brasileiro, se pego por
alguma autoridade poderia ser preso e deportado. Pois foi via redes sociais que refizemos
o contato com Jean. Depois, ele passou a assumir outra identidade na rede, um
ícone no lugar da foto, e respondia por um apelido nativo (dialeto ‘créole’). O
tempo passou, e um anjo da guarda, o francês Pierre Picard (hoje na Noruega), que
então trabalhava no atelier de luteria de Paulo Gomes, em São Paulo, conseguiu
trazer Jean de volta. Assim, foi feita a baixa na ocorrência de ‘desaparecido’,
assim como na do oboé. Porém, Jean estava transtornado e decidido a retornar ao
seu país, não suportava mais estar longe dos pais e de suas raízes. Teve um belo
instrumento, uma carreira pela frente, bolsa de estudos, um quarto para si,
tempo para estudar... tudo isso perdera sentido. Foi em busca do que queria,
e, via Acre e rotas conhecidas, chegou à República Dominicana, que divide a
ilha caribenha com seu país. Ficamos aliviados ao saber que ele havia chegado vivo vivo no Haiti.
Haiti: voluntária do 'Médicos sem Fronteiras" |
Mas o destino foi outra vez cruel
com Jean: seu anjo da guarda Pierre Picard recebeu um e-mail de uma amiga norte-americana,
Janet, que traduzo a seguir: “Eu escrevo com a notícia muito triste de que Jean
Gerald faleceu por ferimentos sofridos em um incêndio. Os detalhes são muito obscuros
mas, ao que tudo indica, ele sofreu fortíssimas queimaduras em seu quarto (na
casa de Jeoboahm?). Foi levado a um médico, mas não havia ‘hospital sem fronteiras’
(N. do A.: organização humanitária, ver foto acima) e morreu ontem à tarde. Tão triste.
Saudações, Janet. 27 de novembro de 2014”.
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