Repercutiu muito nas redes sociais o falecimento de uma
estrela de primeira grandeza da música, o “bluesman” B. B. King (1925-2015), que
suscitou comentários de todos os tipos. Um deles, logo chamou minha atenção, e se
referia ao início de seu aprendizado musical, cantando Gospel (de God Spell,
palavra de Deus) na Igreja Batista de Elkhorn, na sua Mississipi natal (favor
não confundir Gospel com certo pop de fundo religioso em moda no Brasil). King
começou a aprender guitarra com Bukka White em ambiente religioso. Já músico
promissor, seguiu com o mestre para Memphis, Tennessee, iniciando uma carreira
que o levou ao posto de maior guitarrista de blues de todos os tempos. Não sentia
o lado “deprê” do blues, da origem lamentosa dos campos de algodão do sul
norte-americano – a chamada depressão pós-parto é conhecida como “blues period”!
Pois King tocava blues e não se dizia triste, era um homem feliz. (Veja e ouça abaixo B. B. King em "The Thrill is Gone", ao vivo no festival de Montreux, em 1993).
Velha escola de Eisenach |
Alguém mencionou dois outros grandes nomes de músicos surgidos
nas igrejas batistas negras norte-americanas. Não há resposta conclusiva
estatisticamente, mas é bastante palpável e alguns bons exemplos são
suficientes. A tradição luterana do emprego da música nos cultos é uma virtude
pela qual passaram alguns dos grandes dos nomes da história, como J. S. Bach
(1685-1750), formado na escola de Eisenach, em Leipzig, onde, dois séculos antes,
formou-se o próprio Martinho Lutero (1483-1546), na rígida disciplina escolar
que incluía sólida formação musical, latim, prosódia, história, literatura e
ciências.
Ao chegarem os colonos aos EUA, oriundos de diversas regiões
do Reino Unido, as igrejas se disseminaram conforme a origem de cada grupo.
Enquanto Massachusetts, região da chamada New England e suas vilas com nomes de
cidades inglesas, foi terra dos ultraconservadores Puritans e Quakers; em
outras, como na Mississipi de King, o luteranismo tradicional era o esteio religioso.
Lá, com os escravos das plantações de algodão, os cantos de lamentos dos negros,
chamados blues, começaram a se adaptar à tradição religiosa europeia, trazida
pelos colonos, e foram aos poucos adquirindo vida e personalidade próprias.
Para não estender esta introdução, passo a alguns nomes que bem demonstram o aprendizado
musical da melhor qualidade dessas comunidades norte-americanas.
A jovem Ella Fitzgerald |
Podemos começar por alguns ícones do jazz e do blues, como Ella
Fitzgerald (1917-1996), nascida na Virginia e depois transferida para Yonkers,
NY. Seus estudos de piano e canto começaram nos cultos da Igreja Episcopal
Metodista Africana Bethany. Partiu para carreira solo e entrou para a história
do jazz. Outro mito, como ela, Aretha Franklin (1942), começou como aluna de
canto Gospel na igreja de seu pai, o ministro C. L. Franklin, e ainda jovem
lançou-se na carreira profissional, tornando-se uma das maiores estrelas do
jazz.
Dione Warwick |
Outro ícone, Dione Warwick (1940), começou na música na
Igreja Batista Nova Esperança, na sua New Jersey natal. Outra grande diva, uma
das mais cultuadas dos últimos tempos, Whitney Houston (1963-2012), também de New
Jersey e falecida precocemente, teve seu aprendizado de piano e canto Gospel na
mesma igreja de Warwick, e, ainda adolescente, tornou-se solista do coro Gospel
de sua comunidade. O virtuose Winton Marsalis (1961), trompetista, compositor,
professor, com trânsito no jazz e na melhor música clássica, começou na Igreja
Batista de Fairview, da sua New Orleans natal, terra da tradição do Mardi Gras
e das raízes do jazz.
A diva Jessye Norman |
A lista de cantores e instrumentistas negros que se iniciaram
na música das igrejas batistas é eclética: Marian Anderson (1897-1993), a maior
contralto lírico, era dona de voz tão especial que descia ao registro de
barítono masculino, e não o trivial mezzo-soprano no registro grave fazendo de
contralto. A grande soprano Jessie Norman (1945) iniciou-se em música aos 4
anos de idade na Igreja Batista Monte Calvário. (Veja e ouça abaixo Marian Anderson cantando "They Crucified My Lord").
Mahalia Jackson e Martin Luther King, Jr. |
Temos ainda a bostoniana Donna Summer (1948-2012),
Mahalia Jackson (1911-1972), “a rainha do Gospel", o pioneiro do rock’n’roll
Chuck Berry (1926) e o grande cantor de soul Otis Redding, Jr., (1941-1967), entre
outros. Na oratória, no improviso, também se destacaram grandes nomes como
Martin Luther King, Jr, (nascido 1929 e assassinado em 1968), o maior líder do
movimento libertador negro do jugo do poder branco americano (aliás, durante o
famoso discurso “I had a dream”, de King, Jr., foi um grito de Mahalia que deu
a dica para o reverendo soltar seu improviso histórico: “Então nos fale sobre
este sonho, senhor!”). A missão de King, Jr., foi levada adiante pelo também
reverendo Jesse Jackson (1941), que chegou a balançar a indicação do Partido
Democrata para a Presidência em 1988. Assisti a um de seus discursos na TV, e
era de uma clareza, frases de efeito bem cunhadas, dicção e musicalidade como o
líder maior, rev. King, Jr. Foi absolutamente comovedor ver Jackson falar, uma lágrima
ameaçava brotar a cada palavra empolgada pela igualdade racial e pela paz. Os
negros terminaram chegando à presidência apenas com Barak Obama (1961),
prenúncio de um avanço político pela via eleitoral, dentro da tradição política
do país.
Obama e o selo presidencial americano |
Certa vez, fui acompanhar o coro de uma igreja batista negra
nos EUA. Precisava de dinheiro, e o cachê caía bem. Ao ver aquela animação dos
fiéis e um fabuloso coral de negros de todas as idades, afinadíssimo, cantando
“Praise be to God”, “Forgive me Lord”, e uma jovem cantora solista fazendo gorjeios
virtuosísticos, em meio à empolgação cativante dos presentes, tive duas grandes
certezas. Uma, ninguém canta música popular como o negro norte-americano.
Segunda: se me chamassem, voltaria de graça, pois a música elevava, cativante como
poucas que ouvi na vida.
(Veja e ouça abaixo Desmond Pringle e o SECC Mass Choir cantando "I'll Trust You")