A resposta seria fácil, se fosse possível separar
compositores, gêneros e épocas em escaninhos e catalogá-los com etiquetas de biblioteca.
Na música não há transições bruscas, apenas transformações que vão acontecendo
naturalmente. Veja a música de Beethoven: seria ela romântica, como querem
alguns? A rigor não, o mestre alemão remete ao classicismo de Haydn, e sua técnica
abriu caminho para os que o sucederam, de Brahms a Wagner, românticos em linhas
opostas. Na verdade, pode-se antecipar algum traço romântico em Beethoven na
última fase, porém mais pela dramaticidade e peso da orquestração, inovando com
a agregação de um coral uma música carregada de forte emoção. Mas dramaticidade
também pode estar em obras de Bach, como a Paixão Segundo Mateus, e em outros estilos
de época.
Torneio de Cururu no Conservatório de Tatuí Arte de Jaime Pinheiro. Foto de Kazuo Watanabe |
Nossa música
popular remonta aos anos das primeiras catequeses pelos jesuítas, que com
influência indígena gerou fenômenos como o cururu, rico improviso paulista
sobre rimas temáticas religiosas. Isso, fora a grande contribuição dos negros,
que selaram, eles sim, os principais rumos que essa ampla mescla europeia-indígena
e afro-brasileira nos trouxe. Nosso folclore tem de coco e jongo, de raízes africanas,
ao bumba-meu-boi, de ascendência mourisca via Portugal, partes do rico perfil da
cultura brasileira, caldeirão onde são bem temperados sons e ritmos.
Modinha (musicabrasileira.org.br) |
A modinha brasileira já no século 18
encantou os portugueses, que contribuíram em suas origens, e o gênero lá voltou
por mãos brasileiras, influenciando por sua vez a própria música lusitana. De
Portugal veio parte de sua matéria-prima, aqui manufaturada com as cores
nacionais e para lá reexportada com todos os benefícios, tal qual produtos industriais
aqui beneficiados e exportados. Nos encontros dos modinheiros juntavam-se
violões e violas (em Portugal, ‘viola braguesa’), e surgiram outras
influências, como a polca e a mazurca polonesas, agregando outros instrumentos,
como a flauta. (Ouça abaixo Célia Coutinho, voz, e Francisco Migone, interpretando Modinhas Imperiais).
Chiquinha Gonzaga |
Estava aberto o caminho para o choro. Após suave transição,
lá estavam a Chiquinha Gonzaga de “Atraente”, de 1877, uma polca com todo sabor
de choro. Com ela, o Ernesto Nazareth de “Odeon” (gravado apenas em 1912),
talvez os mais importantes artistas dessa paternidade.
Pixinguinha, João da Baiana e Donga |
Donga, João da Baiana e Pixinguinha, cultores do samba, foram
figuras importantes como precursores do gênero, sendo “Pelo Telefone”, de Donga,
o primeiro registro fonográfico (1916) do gênero (gravação abaixo) – trunfo, claro, que foi alvo
de disputas e polêmicas, se era samba ou não, típica querela do mundo
artístico. Mas tinha lá seu jeito de maxixe.
Noel Rosa |
A terra natal do samba, com grande
segurança, pode ser marcada no mapa como sendo a Vila Isabel carioca, igualmente
alvo de disputas e brincadeiras musicais quanto à “nacionalidade” do ritmo,
defendida com unhas e dentes por Noel Rosa em “Feitiço da Vila”: “A Vila é uma
cidade independente / que cria samba mas não quer criar patente”. Equiparou com
ironia o bairro carioca à altura de estados do Brasil, como em “Palpite
Infeliz”: “São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba”. E no
Estácio nasceu a primeira escola de samba, assim chamada porque o grupo
ensaiava em uma escola, não porque ensinasse o ritmo carioca. “O samba é um
privilégio / ninguém aprende samba no colégio...”, sentenciou Noel, em “Feitio
de Oração”.
Nara Leão (colunas.cbn.globoradio.globo.com) |
Daí em diante o samba afeiçoou-se a
diversos lugares e tradições e abriu-se ao mundo: vieram o samba paulista, com
características próprias e sabor caipira nos compassos e nas vozes, o samba de
enredo, o samba-canção, e toma de inventar samba, como o samba-rock, o samba-funk,
sem falar na sedução do jazz norte-americano que já havia se imiscuído no samba
no final dos anos 1950, em apartamentos de Copacabana e Ipanema, onde a
vizinhança impunha que tocassem baixinho, a bateria “como uma caixa de
fósforos”, como pedia João Gilberto, e vozes suaves de “crooner”, quase sussurrando
com os lábios próximos ao microfone, o charme da Nara Leão. (Abaixo, Nara Leão interpreta Jobim)
Nata da Bossa, em casa: Jobim, Vinicius, Bôscoli, Menescal e Carlos Lyra (jobim.org) |
Dali surgiram Carlos Lyra, Menescal,
Bôscoli e outros, até Jobim trazer influências assumidas de Debussy e
Villa-Lobos. Depois, Chico, Gil, Caetano, Ivan Lins, Gonzaguinha, geração
nascida entre duas ditaduras e lapidada à revelia do golpe de 1964. Chega o
irreverente tropicalismo de Gil, Caetano e Mutantes dos anos 1970/80, e novas transformações
abriram um novo período da fértil para a MPB.
É preciso entender MPB como um movimento, e não genericamente
“ao pé das letras” de uma simples abreviatura. Alguns pesquisadores da época,
como Augusto de Campos (em “Balanço da
Bossa”) defendiam que o Brasil estava retomando a “linha evolutiva” de sua
música popular, e entendiam o movimento como uma renovação constante. Fosse a MPB
qualquer música popular feita no Brasil, ela viria desde os primórdios, da
modinha e outras manifestações, até os dias de amanhã. Mas o que se
convencionou chamar de MPB é um movimento, e essa referência reflete um período
exato, finca origens em uma era em que Noel, Wilson Batista, Ary Barroso,
Dolores Duran e um rosário de nomes históricos abraçados pela classe média
urbana, aliada a influências externas, lhe deram novas roupagens.
Zélia Duncan (foto: divulgação) |
Não se sabe quando a MPB exatamente
começa e menos ainda onde termina, ou se vai terminar, pois vestiu-se de
camaleão com Raul Seixas, Cazuza, Cássia Eller, Ana Carolina, Zélia Duncan,
Zeca Baleiro e tantos outros.
Concluindo, a quem interessar possa: a MPB é um movimento surgido
na classe média urbana brasileira, e como tal está em constante mutação. Suas
palavras-chave maiores talvez sejam transformação e qualidade.
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