Os livros de história do colégio afirmavam: “O Brasil é um
país de contrastes”. Mas até encontrar minha real dimensão da frase tive de viver
muito. Pouco importa a intenção do autor do texto, pois pensando como o dramaturgo
Pirandello, “assim é se lhe parece”, ou seja, tanto faz a intenção, o que
interessa mesmo é o que parece ser ao leitor. Garoto ainda, pensei: esses
contrastes estão na natureza! Verdade é que há um nordeste seco, a caatinga, e
há um sul de clima meio temperado, jeito de europeu.
Mas nos EUA os contrastes são muito maiores! Há um
calor intenso na Florida, por exemplo, regiões geladas perto dos Grandes Lagos,
divididos com o Canadá. Em algumas grandes cidades, como NY e Boston, na costa
leste, há tanto fortes nevascas (blizzards), temperaturas abaixo de - 15o
e verões acima de 40o à sombra. Há regiões chuvosas (Buffalo, NY, é
“campeã”), e desertos como os do Sudoeste e o Mojave, no sul da Califórnia, o
mais escaldante.
Deserto de Mojave |
Rev. Martin Luther King, Jr. |
Em
alguns estados americanos há pena de morte, em outros não. Em alguns, aos 18
anos jovens podem comprar bebidas destiladas, em outros apenas após os 21. O
preconceito racial pouco mudou desde a luta e assassinato de Martin Luther
King, Jr., até as recentes crises com morte a tiros e riots. Contrastes sociais resultam de preconceitos:
lá, negros são mais negros e brancos mais brancos do que no Brasil.
Placa dos tempos da segregação oficial |
Onde, então, nossos grandes contrastes?
Não
seriam, talvez, o abismo social entre a massa de deserdados e o pequenino topo
da pirâmide, seleto grupo de donos fortunas em paraísos fiscais, que pode
comprar um dos 200 mil imóveis que brasileiros possuem em Miami? Há os que
comem calango com farinha na mão e há os que degustam caviar com vinho
Échezeaux de mais de mil dólares a garrafa.
Sim, são nossos contrastes, concluo eu, já deixando o livro
no passado. Ah, a escravidão no Brasil foi abolida! Foi? É só pensar nas diferenças.
O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, bem lá atrás, no séc. 18, escreveu, em “Do Contrato Social”: “O homem
nasce livre, mas por todos os lados ele continua acorrentado”. Vale até hoje.
Chiaroscuro de Giovanni Baglione (1603) |
Na arte barroca, predominava o claro-escuro, a
figura-fundo, na música barroca isso e também o forte-piano: o contraste.
Sem contraste, surge uma mistura só, as coisas podem ficar meio indistintas, especialmente se transportadas da arte à vida real: Igrejas invadem
a política, fazendo exatamente o que a Bíblia não prega, políticos famintos pelo poder e
o vil metal, qualquer troco de 30 dinários, a câmbio de hoje.
Dinários como os de Judas |
Há uma pátria que diz educar e corta 9 bi do orçamento
para a educação. Há gente com passado nada casto que se diz honesta porque é
“de berço e religiosa”, e há devotos dominicais poderosos com condenações
internacionais. Há criminosos da adolescência à chamada “melhor idade”, mas há
contraste com os adeptos de coisas sadias como o ciclismo e a maratona mortos por
facadas ou atropelamento, como recentemente um médico carioca, ou nosso saudoso
professor de fagote da Escola Municipal de Música de São Paulo, o austríaco
Gustav Busch.
Não há contraste na chamada "carteirada",
preâmbulo de lei que não está escrita, cujo Art. 1o. diz “sabe com quem está
falando?” (Ela vem de cima, sem esperar resposta). Já houve juiz que se achou acima da lei dos homens, um desembargador
que assaltou os cofres públicos na construção de portentoso foro trabalhista, e
há até advogados de grande expertise que ficaram milionários na defesa de
corruptos condenados.
E se há um contraste enorme entre o que se diz e o que se
faz, especialmente antes ou depois do poder, há também o contraste da lucidez:
um frade, meu primo Betto, amigo pessoal de um ex-presidente, declarou
recentemente que os alardeados avanços sociais do governo facilitaram o acesso
aos bens pessoais de consumo - um micro-ondas, até um “carrinho no pé do
morro”, mas não avançou sobre os bens sociais verdadeiros: “essa família
continua no barraco, sem saneamento, transporte público e segurança de
qualidade”. (Esse, o contraste sadio: a livre crítica e a autocrítica que a
enriquece. Betto já a ensaiara em 2004, quando abandonou uma assessoria de
governo e lançou o livro “A Mosca Azul – Reflexão sobre o Poder”).
A mentira, com certeza, é prática muito mais antiga do
que a própria origem desta palavra, por volta do século XI, na Lusitânia. Ela é
o anti-contraste, mas pode surgir por mágica: “O que é bom a gente mostra, o
que é ruim se varre para debaixo do tapete”, disse um certo ministro do
passado, sem perceber que o microfone do estúdio de TV estava “aberto”. “Ganhei
200 vezes na loteria”, disse um famoso ex-deputado, em 1993. “No Brasil não há
espaço para ditadura” (Costa e Silva, em 1964), ou “não tenho conta em banco
estrangeiro”, repete ad nauseum outro conhecido deputado.
Uma brincadeira com um lemmon, em venda de carros usados |
A mentira é um só lado, um sem-contraste que passa um produto
de má-fé, gato por lebre. Ela vende um carro de segunda mão condenado – nos EUA
conhecidos como lemmons, limas -,
vende imagens falsas e encobre malfeitos de uns e seus amigos ou companheiros.
E se é verdade que a prostituição foi a primeira profissão do mundo, ela
certamente começou escondida atrás de uma grande mentira. A história é sempre
contada pelo vencedor, teria dito George Orwell (para alguns, ou Karl Marx, mais
provável), e por isso mesmo é a grande depositária de mentiras.
Goebbels em um de suas longas interlocuções com Hitler |
A maior das mentiras é a censura, porque não
permite contrastes, ela quer que seu lado prevaleça, impõe-se para que sua
falsidade impere como verdade absoluta e se torne, como o vencedor que conta a
história, a chamada “verdade verdadeira”, final e inquestionável.
A pior
mentira pretende encarnar-se verdade, após repetida indefinidamente,
como pensava Goebbels, que foi braço direito de Hitler, seu ministro da propaganda e depois sucessor do Führer como chanceler. Possuía títulos universitários em 4 universidades, incluindo um doutorado em Heidelberg, mas ordenou a queima de livros que considerava perniciosos à "causa alemã" (leia-se: ideologia nazista).
Salve o contraste!
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