Há um velho dilema que persegue os professores de arte, e uma
pergunta que nunca terá uma resposta. Penso no artesão, no pintor primitivista
e no músico popular de raiz. Arremato o final deste texto com uma sábia
resposta para o “ensinar” o que não deve ser aprendido.
Henrique Boliani: óleo sobre madeira |
Vejamos a pintura primitivista, a que
dedico especial apreço. Tenho algumas peças, e entre elas três versando sobre o
tema violoncelo, feitas a meu pedido, por dois artistas com um laço em comum:
ambos eram porteiros. Um, da Escola Municipal de Música de São Paulo, Henrique
Boliani (autor da capa de meu livro “O Arco”), e AD Jonas, porteiro da ECA/USP.
O primeiro, intuitivamente, enamorou-se do cubismo e afins (ver ilustração
acima), enquanto o segundo mostra qualquer coisa de pop e expressionista
(ilustração abaixo).
AD Jonas: óleo sobre madeira |
Francisco de Souza: acrílico sobre madeira |
Uma quarta obra é de um jardineiro de Petrópolis, Francisco
de Souza.
Absolutamente surreal, imaginária, em que as proporções entre pessoas
– músicos com clarineta, flauta e violão (simbolizando um contrabaixo - provavelmente o meu!) – e a poderosa magia da flora de seus jardins
são totalmente distorcidas pela imaginação.
Tarsila do Amaral: Abaporu |
Nenhum estudou. O Boliani eu já havia visto folheando um
fascículo desses de banca de jornal, mas os outros dois, Francisco de Souza e
AD Jonas, são mais ecléticos. O jardineiro tem seu jeito surrealista e
modernista, mas certamente nunca viu um Salvador Dali ou as lindas
“desproporções” do Abaporu da Tarsila do Amaral. O que, então, ensinar a esses
nossos artistas? Técnicas de desenho, geometria, anatomia? Teríamos aí alguns
grandes talentos condenados à vala comum dos artistas infelizes e frustrados.
Esse é ponto central da questão, a interferência “erudita” no que já é perfeito
por si, o fim da pura ingenuidade (naïveté,
como se diz em francês) que é mãe da arte que brota das mãos como a semente que
germina: naturalmente, sem artificialismos, curtida pela natureza.
O pequeno virtuose Yehudi Menuhin |
A provocação que me trouxe o assunto foi a música. Vi filmes
de adolescentes musicistas simplesmente geniais, virtuoses. Quando se trata de
prodígios executando Mozart e Paganini, só há um caminho: o estudo bem
orientado, a formação completa, a busca por um grande mestre de renome que lhe
passe o caminho das pedras rumo aos degraus da perfeição (gradus ad parnassum). O artista prodígio, mas depois de explodir
muito jovem, tem de compreender que o caminho rumo ao seu destino será longo, e
deverá ser trilhado sem atalhos, independentemente da exuberância técnica que
demonstrava quando criança. Esse o caso de Yehudi Menuhin, gênio violinista,
que já chamava atenção aos cinco anos de idade. Aos 12 anos, já tocava os
pirotécnicos Caprichos de Paganini, não muito diferente de Arthur Rubinstein,
um dos maiores pianistas da história, iniciado já aos três anos de idade.
A jovem Anne-Sophie Mutter, em seu début com Karajan em Berlim |
Exemplos mais modernos foram a jovem musa de Von Karajan, a
violinista Anne-Sophie Mutter, levada pelo maestro a solar com a Filarmônica de
Berlim aos treze anos de idade, e mais recente ainda o fenômeno Lang-Lang, que
aos dois anos se apaixonou pelo piano e aos três começou seus estudos; com
cinco, apenas, venceu o Shenyang Piano Competition, concurso nacional da China. Terminou na afamada Curtis Institute, da Philadelphia, e, com o tempo, o amadurecimento fez seu fogo de virtuose infantil conhecer uma
interpretação mais estudada, mais cautelosa, sem perder a exuberância natural. (Veja e ouça abaixo Lang Lang, tocando a Rapsódia Húngara nº 2, de Liszt)
Agora, sem traçar uma linha divisória entre o primitivismo e
o estudado, o que acontece quando uma criança é um prodígio em viola caipira,
sanfona, rabeca? Mostra-se exímia desde cedo nessa arte, tão pura, parte do
verdadeiro folclore, de nossas raízes, arrimo sem o qual nossa arte, mesmo a
mais moderna, passa a perder o sentido? Ensinar-lhe técnica de violão,
dedilhados, postura “correta”, leitura, métodos, solfejo, harmonia? Se for por
opção dela seguir uma carreira diversa, que lhe fique ao livre arbítrio, e
somente dela, será uma escolha pessoal. (Veja e ouça abaixo uma menina virtuose
na viola de cocho, não identificada, registrada pela rádio mexicana La Campesina).
Léo Canhoto e Robertinho, após "banho de loja" de "maestro" e mídia |
A interferência externa pode ser daninha. Há muitos anos, um
certo compositor brasileiro de formação clássica, ‘maestro’ como tantos por aí
e enfronhado na MPB com ares de irreverência erudita, inseminou na música
sertaneja pura dos que foram trabalhar nas construções de São Paulo outras
influências – que logo passaram a ser o principal, deixando a raiz original,
por sua vez, passar ser a simples influência. Foi o início do pior. Para fazer
sucesso na hora, aproximou-os da Jovem Guarda: óculos escuros, costeletas,
anéis, roupas modernosas e “carrões”, mudando os temas de porteiras de fazenda
para os carangos de então, como o hoje raro Karmann Ghia, e apartamentos na
Augusta. Assim, começou a deturpação, em detrimento das origens dos próprios
artistas – que, claro, acharam muito mais interessante largar a construção e
receber dinheiro com as breguices que lhes impunham os produtores do que
preocuparem-se com sua arte.
Torneio de Cururu: José Pinto (esquerda) e Josué Conservatório de Tatuí. Foto: Kazuo Watanabe |
Sou fã do Cururu, desafio do Médio Tietê, que desde a época
das missões uniu coisas indígenas e influências musicais portuguesas à religião
dos missionários. Criamos no Conservatório de Tatuí um Torneio de Cururu anual
que repercute em toda a região,
abrigamos a festa, estimulamos a prática, festejamos com eles e
aplaudimos os riquíssimos improvisos e os acirrados desafios. Porém, nunca
devemos “ensiná-los” nada, pois o mestre deles é a tradição, de avô para pai,
de pai para filho, cujo aprendizado se dá na prática, olhando, ouvindo,
experimentando. Ensinar-lhes prosódia, rima, harmonia, forma, técnica vocal...
seria condenar à morte uma tradição tão brasileira.
Nesse ponto, minha opinião
é de respeito a Noel Rosa: “O samba é um privilégio / ninguém aprende samba no
colégio...”
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