Ensaio (onedirection.com) |
No calor das polêmicas
sobre responsabilidade criminal e matérias correlatas, nesta segunda-feira
(27/07) um assunto me caiu de súbito como luva para um artigo. Aconteceu no Rio
Grande do Sul um fato ao qual me reportarei no final, após relatar coisas do
passado e minha experiência de 25 anos dirigindo escolas de música. Pois foi
essa vivência (entre outras) que me levou a refletir várias vezes sobre a
não-interação entre violência e um ambiente musical sadio. Falo não apenas de
infrações penais, refiro-me também à convivência social diferenciada dos que
vivem a música.
Crianças: uma aula pacífica |
Nesses longos anos, não me
lembro de ter visto uma vez sequer um caso de violência entre alunos, enquanto
hoje, fora do ambiente musical, episódios grotescos são cada vez mais frequentes
nas escolas, na falta de limites. A sociedade está cada vez mais permissiva
quanto à questão da indisciplina e indiferente aos abusos; moralmente, ao
inverso, está cada vez mais retrógrada, uma amarga contradição entre dois lados
de uma mesma moeda.
Professora: boletim de ocorrência (extra.noticias.com.br) |
São frequentes os
noticiários da TV ou postagens nas redes sociais mostrando agressões físicas
violentas até contra professores! Disciplina e hierarquia parecem letra morta
nessa “nova ordem” obtusa de perigosas consequências. Rasga-se a lei, a indisciplina
parece tolerada e, pior, começa a ser aceita como corriqueira. Pais frequentemente
tomam partido de filhos agressores e instâncias competentes têm espaço para
pleitos descabidos na justiça.
Lang Lang, prodígio |
Em música, não se
conversa enquanto se toca. Ela mesma é a combinação de sons e pausas, elementos
indissociáveis. E o silêncio interior do executante lhe é parte fundamental, é
a alma do fazer música, seja no estudo, seja no palco. Quando se toca, tem-se
que estar envolvido e submerso em apenas uma coisa: o som, e esse é estado de
contemplação quase monástico.
Cristo com Maria (sentada) e Marta Óleo de Vermeer (1635-1675) |
Corto aqui para
lembrar o episódio do Evangelho Segundo Lucas (10:40) em que Maria contemplava
Cristo quando Marta, irmã dela, reclamou ao Senhor que lhe faltava ajuda nos
afazeres domésticos. Jesus respondeu: “Maria escolheu a parte certa, que nunca
lhe será tomada”, conforme explicou-me um doutor em teologia da Universidade de
Chicago, versado nas línguas bíblicas - a tradução vulgata (popular) “Maria escolheu a melhor parte” parece sugerir
que Maria estava acomodada).
Ed. Fundamentos |
A contemplação é exercício
espiritual milenar que ressurge no mundo cristão em The Cloud of Unknowing (“A Nuvem do Não-Saber”, outro título em
português não bem traduzido). O escrito original, de um monge beneditino inglês
anônimo do séc. 14, é na verdade um guia para iniciação na meditação e no
caminho a ser percorrido rumo ao estágio mais próximo do Altíssimo, a
contemplação em transcendência terrena, que nada difere do que sempre foi
praticado pelos monges budistas tibetanos.
A boa música exige
concentração, e com o progresso do artista o grau de introspecção deve ser crescente.
Ao topo do Gradus ad Parnassum
(degraus, ou passos, para a perfeição) somente chegam os grandes e abençoados músicos,
mas o domínio dessa espiritualidade deve estar aliado a uma técnica adquirida em
estudos de rigor quase canônico. Gradus
ad Parnassum serve de título para inúmeros trabalhos de estudos musicais,
de Clementi (1752-1832) a Debussy (1862-1918).
Sidney Mattos: músico, educador |
No início de 2007,
participei de um seminário em São Paulo que avaliaria o que vinha sendo
produzido com os milhares de jovens do Projeto Guri, um trabalho social como
fim e musical como meio, especialmente em áreas mais pobres na capital e no
interior. Lembro-me de ter indicado o músico Sidney Mattos, que havia ido parar
na França depois de ter participado do GUM (Grupo Universitário de Música) de Gonzaguinha,
Ivan Lins e outros então estudantes, ocasião em que o conheci. Sidney ficou
paraplégico após uma cirurgia na coluna, e hoje se dedica a uma ONG que
trabalha com jovens em uma favela carioca. Nossas palestras e reuniões com
orientadores do Guri foram muito proveitosas – não apenas pelo que pudemos
acrescentar-lhes, mas também pelo que aprendemos sobre o papel da música nos segmentos
mais carentes da sociedade.
Rebelião de internos no CASA |
Impressionou-me de
maneira especial o depoimento de pessoas que trabalhavam com jovens internos do
CASA (antiga Febem). Nas rebeliões, colchões foram queimados e até mortes
aconteceram, mas o que mais chamou a atenção foi que, conforme os monitores, a sala de instrumentos era sagrada,
ninguém depredava, era o símbolo do acesso à liberdade via conquista interior.
A música lhes servia como elemento mágico!
Complexo Presidiário Frei Caneca (1850-2010) |
Salto mais para
trás: nos anos 1970, toquei com uma big-band no Presídio Frei Caneca, no Rio (construído
em 1850, implodido em 2010). Auditório abarrotado, perguntei a um dos policiais
se havia perigo de uma rebelião. Calmo, ele sorriu e respondeu que não, nas
apresentações musicais os presos se transformavam. Tudo ocorreu na mais
completa normalidade, aplausos, até uma certa euforia para relaxar do confinamento
decretado em suas penas.
Dalmir e banda (ajuris.com) |
O comentário da
promotora local foi sábio: “todos são iguais perante a música”, e isso pode ser
interpretado como uma comunhão entre a Justiça e infratores que ela mesma
condena. Os depoimentos daqueles internos e dos que já estavam livres após
cumprirem sua pena soaram quase em uma só voz, ilustrando o achado da representante
do Ministério Público: “todos são iguais perante a música”. Pois se “todos são
iguais perante a lei”, conforme reza o artigo 5º da Constituição, também o devem
ser na vida espiritual os que através da música se elevam e se iluminam. A música
liberta!