Nunca se falou tanto em Clarice
Lispector como agora. É uma das recordistas de frases nas redes sociais,
incluindo as que ela nunca escreveu, muitas com espírito de autoajuda (a última
coisa que ela escreveria!). Pensadora poliglota (dominava seis idiomas!),
cultíssima, o sofrimento que transparecia linha após linha em seus livros tinha coloração emocional bastante pesada, que já vinha alimentada desde sua infância viajante com a família
judaica. Ao lado de Saul Bellow, Anne Frank e Franz Kafka, é considerada por muitos como
um dos grandes nomes entre os escritores judeus. A origem e trajetória de vida delineiam
a personalidade literária de Clarice.
Nascida em 1920 na Ucrânia, seu pai
obteve na Hungria o passaporte alemão para a família, após um périplo para fugir. De Hamburgo, veio para
Recife, logo após a I Guerra Mundial. Escreveu uma peça teatral (“Pobre Menina
Rica”) aos tenros dez anos de idade. Mudou-se para o Rio de Janeiro ainda
adolescente, e logo ingressou na Faculdade Nacional de Direito (hoje, da
UFRJ). Entregou-se ao seu enorme talento literário, escrevendo suas primeiras
matérias para a imprensa e alguns pequenos contos. Não tardou em se aventurar
em um primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem” (1946), um monólogo interior
como outros de sua época, assim como meu pai, Autran Dourado, com quem ela compartilhou uma amizade com profunda cumplicidade intelectual.
Lucio Cardoso: escritor, jornalista, pintor e grande amigo |
Identificava-se com escritores
brasileiros, a exemplo de Lucio Cardoso, jornalista como ela, que a conheceu na
redação da Agência, e que como ela também tinha um talento nato para a pintura.
Mesmo após sofrer um AVC (1962), lembro-me do dia em que, ainda menino, fui com meu
pai à casa do Lucio, e fiquei impressionado ao vê-lo criar um óleo com um pincel
entre dedos dos pés. Entre Lucio e Clarice havia uma paixão espiritual, filosófica e intelectual - e apenas isso, já que ele assumira sua posição de homossexual.
Clarice e Maury em Veneza |
Clarice conheceu um diplomata,
Maury Valente, com quem se casou e foi residir nos EUA. Enquanto a FEB se unia aos aliados na
luta contra o nazismo, foi para a Itália, onde colaborou em um hospital para
feridos de guerra. Já madura em seus escritos, debruçou-se sobre a forma mais complexa, que em
música chamaríamos ‘grande forma’: o romance. Desse novo tempo nasceu sua obra maior,
a marcante “A Paixão Segundo G. H.” (1964). No livro, o personagem, de quem Clarice só
menciona as iniciais, entra em crise após ter esmagado uma barata, e a partir
dali se constrói uma figura envolta em uma espécie de terror, um turbilhão neurótico
esmiuçado em capítulos cuidadosamente alinhavados e concatenados. Ao final,
vendo uma gosma branca sair da casca da barata, G. H. a devora. É o abandono de
uma personalidade, de sua existência como indivíduo no mundo.
Caricatura de Kafka como sua "barata" |
Uma alusão ao enorme inseto em que
Gregor, personagem de Kafka em “A Metamorfose”, se transformou? Pois Kafka foi uma
das maiores influências de Clarice! As iniciais G. H. poderiam ser uma referência ao “Gênero Humano”, segundo
alguns estudiosos. Em tempo: a “Paixão” de Clarice não é a dos amantes, é a do sofrimento, como as que Bach
compôs para o calvário de Cristo: “Paixão Segundo Mateus” e “Segundo João”. (Veja e ouça abaixo o coro final da Paixão Segundo Mateus, de J. S. Bach)
Clarice e Pedro, com um mês e um dia |
Vítima de
um incêndio em seu apartamento provocado por um cigarro aceso ao adormecer enquanto descansava na
cama, Clarice amargou o sofrimento das sequelas até sua morte, em 1966, no auge
da maturidade literária. Antes disso, outro grande dissabor: a transferência de seu marido para Berna, na Suíça,
onde nascera seu filho mais velho, Pedro (1948). Pedro foi mais tarde diagnosticado
esquizofrênico com surtos agressivos frequentes e complicados, e mais esse fardo impusera à escritora uma
grande dor e um sentimento de culpa sem fim. Nada mais lhe agradava e crescia-lhe
a angústia, o que a levou a separar-se de Maury por falta de condições
psicológicas e pelas mudanças constantes de país impostas pelo Itamaraty.
Alguns de seus livros foram temas
de filmes, como “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral (prêmio da crítica no Festival de Berlim), trama de poética visualmente deslumbrante, introspectiva como Clarice, sua pessoa e seu livro. A notoriedade de Clarice pela profundidade de sua literatura, seu pensamento e seu estilo originalíssimo nunca
a levaram à fama, como aliás sempre acontece no Brasil com a melhor literatura. Mas
no exterior seus livros foram traduzidos em 93 edições. Benjamin Moser,
escritor nascido em 1976 nos EUA e radicado na Holanda, apaixonou-se pela obra
de Clarice e publicou Why this World: a Biography of Clarice Lispector (que no
Brasil chamou-se "Clarice, uma Biografia”, versão que omite o elemento primordial do título
em inglês: “Por que este Mundo”, uma pergunta em forma de afirmação).
Clarice (segunda à esquerda, em cima) e escritores. Autran Dourado, à direita, embaixo. |
Moser consegue fazer um retrato da
vida intensa, conturbada e sofrida de Clarice, que já era revelada muitas vezes por seu estilo de vida e em
palavras explícitas, como na dedicatória de uma pintura com que presenteou meu pai, em 1976: “Clarice Lispector, sua e de Lucia (N. do A.: minha mãe),
Clarice. Você já conheceu como eu o desespero. Mas é um erro, tudo vai dar
certo”. Moser escreveu: “Autran Dourado,
uma dos mais importantes intelectuais e novelistas brasileiros, lembra-se de
longos domingos com Clarice e intermináveis discussões filosóficas que iam de
Spinoza a Nietzsche”. E prossegue: “Em meados dos anos 1970, Clarice era tida
como um gênio excêntrico, tanto quanto isolada da sociedade, que havia assumido
lendárias proporções. Autran e Lucia Dourado convidavam-na para almoçar quase
todos os domingos. No final da tarde, sentada no apartamento deles, ela tomava
uma pílula para dormir e começava a retirar suas joias, para não adormecer com
suas pulseiras e brincos. Eles a colocariam em um táxi e a despachariam para
casa, onde às vezes chegava dormindo profundamente” (Trad. livre do A.).
“Aquela rara pessoa que se parecia com Marlene Dietrich e
escrevia como Virginia Wolf” (Moser)
“Um grande livro...Clarice Lispector é um dos grandes gênios
ocultos da literatura do século 20” (Colm Tóibín)
“Glamurosa, culta, espiritual, Lispector é uma emblemática
artista do século 20 que pertence ao mesmo panteão de Kafka e Joyce” (Edmund
White)
A vida de um artista é indissociável de sua obra.
Clarice era ela própria sua grande obra viva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário