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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O REINO ESTÁ NU

Das fábulas de que mais gosto lembro-me de uma que ouvi há muitos anos, e que eu não conhecia até então. Não lhe sei a origem, o que vale é a lição final, por isso merece ser aqui narrada, especialmente por ser, digamos, uma fábula educadora. Mesmo não lhe sabendo o autor, a quem reverencio, passo a descrevê-la, convidando o leitor à reflexão, uma vez que serve como luva para ilustrar a vida do artista ou mesmo a de qualquer pessoa que se destaca por sua capacidade, razão pela qual lhe rogo especial atenção.

Certo dia um vagalume, cintilante e serelepe, estava a revoar ziguezagueando pelos campos, pisca-piscando aquela luzinha mágica que leva em sua cauda. Voava, perambulava no ar como um colibri luminescente, até que se deparou com uma cobra, uma perigosa cobra! Voou para mais longe, porém mais adiante deu de cara outra vez com a malvada, que tentou abocanhá-lo cruelmente. O vagalume esquivou-se, foi para mais longe, porém a cobra, matuta velha conhecedora daquelas pradarias, embrenhou-se no mato e, rastejando, ressurgiu irada para devorar sua almejada presa. Nosso herói luminescente, vivo que só, pairou no ar em distância segura e resolveu interpelar quem o perseguia: não fiz nada para você, não lhe devo nada, não sei se veio a mando de alguém, nem o que você apita. Além disso, não faço parte de sua cadeia alimentar, esses matagais estão cheios de preás, sapos, ratos e outros animais que lhe serviriam de repasto, como é do paladar de qualquer serpente. Por que, então, me persegue? A cobra baixou a guarda, sem argumentos, e sussurrou com ódio: é que eu detesto este seu brilho!

Fábula vem do latim fabulae, estória, narrativa alegórica, e tem ainda outros sentidos, pois além de criação para o público infantil (e adulto!), pode referir-se também a mentira, golpe, e até mesmo a algum valor incalculável, como quando alguém diz aquela casa custou uma fábula. Como adjetivo, certa derivação se refere a algo muito além do esperado, assim posso dizer que o show foi fabuloso, surpreendente, uma maravilha. No sentido literário, pode-se usa-la como alegoria, ou seja, “(...) representar pensamentos, ideias, qualidades de maneira figurada, em que cada elemento funciona como disfarce da ideia apresentada” (Houaiss).

Ao pé da letra, uma fábula usa estórias imaginárias entre bichos, como é o caso dessa do vagalume e da serpente, ou as populares do leão e do rato e a da cigarra e da formiga. Contam sobre animais falantes com comportamento humano em seus habitats naturais para ilustrar uma ideia que, de alguma forma, faça as pessoas refletirem sobre sua conclusão, uma lição de moral.

Outra fábula inteligente conta de um escorpião e uma rã, que, ilhados em uma grande pedra no meio do rio, veem as águas subindo por causa das chuvas, e assim seu espaço e a esperança de permanecer na morada ficam cada vez mais reduzidos. Para a rã seria apenas uma breve travessia, mas o pânico apossou-se do escorpião, que não nada. Humilhou-se e, em uma última súplica, aos prantos, prometeu-lhe que não a picaria, implorando-lhe uma carona. De princípio, ela negou categoricamente, escorpiões são perigosos e traiçoeiros, mas, em ato de compaixão, impôs a condição de o pretendente à carona jurar que não a picaria, com o que o peçonhento animal, de pronto, concordou.

Subiu nas costas da rã e lá foram, atravessando o rio. Do outro lado, mal chegando na margem, o escorpião lhe pica mortalmente a nuca. A rã, agonizando, diz, entre gemidos lancinantes de dor, você me prometeu, jurou, por que fez isso? Ao que o escorpião respondeu desculpe, mas é da minha natureza, não posso fugir dela. Essa fábula questiona até que ponto se pode confiar na aparente mudança na natureza de uma pessoa, dada sua índole natural, sob uma face aparentemente diversa do seu caráter e atitudes de tempos idos.

Esopo
Do Oriente milenar à Grécia, com Esopo (6 a.C.), a fábula e suas variações chegam à França de La Fontaine no século 17, à Dinamarca no séc. 18, e aos contos de Hans Christian Andersen e os irmãos Grimm, alemães autores de O Patinho Feio e João e Maria. É do século 19, do já citado Andersen, a estória conhecida no Brasil como A Roupa Nova do Imperador, que hoje se faz bastante oportuna. Mesmo para quem já conhece, vale revisita-la, para uma reflexão sobre os dias atuais.

Um rei extremamente vaidoso contratou um costureiro recém-chegado, certamente de nome francês, comme il faut, para lhe fazer uma bela veste para um desfile. Sem saber que o novo mestre da haute couture do reino era um vigarista da pior laia, pagou-lhe muito ouro e joias para que confeccionasse para a ocasião as roupas mais lindas e imponentes de todos os tempos. Ao apresentar sua criação, o costureiro, já guardada a fortuna que recebera, estendeu sobre a enorme mesa do palácio, com perfeição mímica, mantos e vestes feitos de... absolutamente nada. Mas esclareceu que apenas os inteligentes e cultos poderiam ver aquelas roupas, e essas palavras correram o reino inteiro.

Para não parecer ignorante, o rei mostrou-se deslumbrado ante tanto luxo, emoção que contagiou seus nobres que, cupinchas e servis que eram, no início entreolharam-se, mas logo derramavam elogios à confecção e riqueza do novo vestuário. Chegado o dia do desfile, o rei à frente de sua corte, inteiramente nu, de início foi aplaudido pela multidão incrédula diante do que via, porém, contagiada pela magia do poder e glamour do desfile, cedeu à ilusão daquela cena embusteira. De súbito, um moleque desavisado, sem mais nem menos, gritou o que ninguém via, inebriados que estavam pela sedução do desfile: “o rei está nu, o rei está nu!”. Não demorou muito para que a multidão saísse do transe real e começasse a repetir em coro o bordão “o rei está nu, o rei está nu”. O reino estava nu.



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O ENDEREÇO DE BEETHOVEN

Em 1792, um ano após a Morte de Mozart, Ludwig Van Beethoven muda-se para Viena. A cidade, após a partida do gênio de Salzburg, acolheu o mestre de Bonn com a mesma cordialidade, apesar de ele ser apenas um jovem talento, mas promissor aos 21 anos. Foi aceito como aluno de Joseph Haydn, entre outros, que lhe proporcionou amplas perspectivas de crescimento musical. Cinco anos mais tarde, foi constatada uma doença que lhe causou uma surdez degenerativa, e com a qual deveria conviver e sofrer até o fim da vida. Dez anos depois de sua chegada à capital da música europeia e duas sinfonias após, começa a escrever a sua Sinfonia nº 3, ‘Eroica’, monumento musical que foi o grande marco do novo caminho que haveria de trilhar.


Goethe e Beethoven (Adolf Karpellus)
O problema maior de Beethoven era o gênio, a personalidade impossível de se lidar. Seu grande amigo Wolfgang von Goethe achava-o um sujeito absolutamente intratável, e o perfil mal visto dava a Beethoven a fama de pessoa conturbada e geradora de problemas. Suas várias mudanças deveram-se quase sempre a crises com vizinhos e senhorios, seu comportamento indomável era o mote das frequentes trocas de residência.


Fortepiano (1817) de Beethoven
Seu fortepiano, então um novo instrumento de maior volume do que o cravo, era mais um problema a acrescentar – som, aliás, é motivo que ainda suscita discussões e crises para músicos em todos os lugares do mundo: a perturbação do silêncio (já eu pagaria para ter um vizinho como ele).  As casas, com seus pisos de madeira, tinham frestas entre as tábuas por onde escapava o som que iria incomodar o vizinho de cima, de baixo ou de parede, que deixavam também vazar algumas sobras da água que Beethoven usava, em jarras, para refrescar sua cabeça e mãos sempre fervilhantes.

Quarto de Beethoven em Heilingenstadt
Heiligenstadt, subdistrito de Viena com vestígios da ocupação romana, foi o destino escolhido para o compositor tratar-se dos males trazidos pela depressão, a tortura da surdez crescente, além dos óbvios sinais de algum tipo precoce de demência. Em 1802 Beethoven para lá se mudou, seguindo orientação médica. No final daquele mesmo ano, redige um dos documentos mais famosos da história, depois conhecido como "O Testamento de Heilingenstadt”, escrito aos seus irmãos Carl e Johann, embora o nome do segundo tenha sumido do papel (ver o título do documento, abaixo) – com certeza, por conta de algum desentendimento familiar, como de costume.

O Testamento de Heilingenstadt
Na verdade, esse testamento ia muito além, era um desabafo insano sobre sua doença, a falta de compreensão dos médicos e um depoimento sobre suas intenções de suicidar-se – tragédia que nunca acontecera, fruto que era de seus delírios em espiral, sua tempestade interior. Apesar de ter sido escrita em 1802, a carta revela que as ameaças de terminar com a própria vida eram na verdade um desabafo para si mesmo, apesar de que, na época, o documento também pudesse produzir efeitos legais com relação aos bens que descrevera. O testamento foi descoberto somente 25 anos depois, após a morte de Beethoven, e permanece como um depoimento de inestimável valor histórico.

Mesmo após o isolamento em Heilingenstadt, Viena era um local onde a fama abria ao compositor todas as portas, apesar de seus problemas de convívio e intolerância. Seu pessimismo era outra marca, e bem o mostra o dia em que, ao lado de seu grande amigo Goethe, passeando entre os belos e muito bem cuidados arbustos e sebes da capital austríaca, resmungou que aquilo tudo lhe parecia um bando de carneiros mortos. Um dia, em um sarau na casa do Conde Browne, Beethoven apresentava seu aluno Ries ao pianoforte quando, diante do falatório do Conde e convivas, que se refestelavam fartamente, foi-se embora, diz-se que aos resmungos. 

Certa vez, de braços com seu amigo de sempre, Goethe, viu a multidão e seu companheiro curvarem-se em honra à imperatriz da Áustria, Maria Ludovica, cuja carruagem se aproximava. Mas Beethoven não deu trela e continuou seu passo, repreendendo Goethe pela subserviência. Conforme teria contado Beethoven depois, em sua própria versão, a carruagem parou para que ele pudesse receber a atenção da soberana e suas mais entusiasmadas deferências. O compositor já se confundia com tudo e a todos, mas a cidade o tinha como grande trunfo.

Pois Beethoven continuou com suas mudanças, sempre complicadas, uma espécie de sina interminável. Não lhe importavam muito as coisas materiais, além do fortepiano, que era uma das razões maiores de sua vida, instrumento no qual tocava e improvisava como ninguém, e sobre ele esboçava suas obras cada vez mais complexas e grandiosas, culminando na Sinfonia nº 9 -  ironicamente, para um deprimido, a “Ode à alegria”, cujo último movimento traz um coral que entoa o lindo poema homônimo de Schiller. Apego a lugares e coisas não eram afeitos ao seu estilo, mas todos sabiam que ali, naquela cidade, estava um dos maiores gênios que o mundo já conhecera, e isso lhes era motivo de júbilo. De mudança em mudança, era um misto de lenda e malvisto cidadão, embora a certa altura já mais bem tolerado em função de sua glória e seu nome, que ajudaram a guindar Viena ao patamar de centro da música clássica e pré-romântica.


Um dia, um velho amigo por acaso o encontrou, e disse que andava procurando-o desesperadamente, queria corresponder-se com ele, mas não lhe sabia o endereço e ninguém conseguia informa-lo ao certo. Perguntou-lhe para onde deveria endereçar suas cartas, para ter certeza. Disse-lhe o compositor: “escreva apenas: Beethoven, Viena”. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

TRISTÃO E ISOLDA - Uma ópera de Wagner nos bastidores de Brasília

A amada Mathilde, Srª Wesendonk, e Wagner
Richard Wagner (1813-1883) andava, apesar da glória, endividado até o pescoço. Tal qual nosso Carlos Gomes (1836-1896) nos seus últimos tempos no Pará, que chegou a pular o muro para fugir de cobradores, apesar do prestígio. Por essas e outras, além da paixão desmedida e impossível que sentia por Mathilde, poeta e esposa de Wesendonk, seu protetor, Wagner viu-se obrigado a uma escapada para a Suíça – não para um paraíso fiscal, onde hoje viveria na fartura se tivesse alguma fortuna obscura, pois os então recém-fundados Crédit Lyonnais e Crédit Suisse ainda não operavam como refúgio.

A Tetralogia de Wagner
Em meio a turbulências e paixões, interrompeu o volumoso trabalho do “Anel do Nibelungo”, uma tetralogia monumental com as óperas “O Ouro do Reino”, “A Valquíria”, “Siegfried” e “O Crepúsculo dos Deuses” -  para compor esta obra que marcou o começo de uma nova era na música universal. Wagner partiu de uma lenda celta (celtic, pronuncia-se keltikdo séc. 13, etnia poderosa na Europa durante muito tempo, e sobre a mitologia desses povos arquitetou “Tristan und Isolde”, um drama musical sem precedentes. Foi o turning point, o rompimento com a tradição de seu século.

Hans von Büllow
Na obra, o compositor se liberta das amarras tradicionais, navegando em constantes mudanças de tonalidade, melodias a vagar como espíritos. Introduz o cromatismo (do grego khrômacores), distanciando-se do chamado sistema tonal, e com isso traçou a linha divisória entre este último (de quase três séculos), e os rumos futuros. Em 1868, a ópera em três atos estreou enfim em Munique, sob a regência do poderoso Hans Von Büllow.

O castelo de Cornwall
1º ato: Tristão (Lula, tenor) e seu assistente Kurwenal (Rui Falcão, barítono) levam a princesa Isolda (Dilma, soprano) ao palácio de Cornwall, para casar-se com o rei Marcos (Temer, baixo) conforme o prometido. Em português, Cornwall é Cornuália – palavra que, convenhamos, não soa lá muito bem. Coincidências à parte, é também a terra para a qual foi agraciada duquesa a Srª Camilla Parker-Bowles, que com o príncipe Charles traiu a belíssima Lady Di, um tema para uma bela ópera wagneriana!

Tristão e Isolda bebendo a poção mágica
(John Waterhouse, 1916)
 Retomando, Brangäine (Marina, mezzo-soprano), antiga apoiadora, odeia Tristão-Lula, por suspeitar dos maus-olhados que teriam resultado na terrível morte acidental de seu noivo Morod (Campos), o que levou à ruína o plano do casal. Isolda-Dilma pede a Brangäine-Marina que prepare uma solução de um veneno infalível para matá-la juntamente com Tristão-Lula, no que seria o rito da celebração do pacto de amor e morte. Porém, ao invés de veneno, Brangäine-Marina, estrategicamente, despeja na taça um misterioso filtro de amor, pois manter a união dos dois seria mais interessante para suas ambições. Sentindo a proximidade da morte após beberem a poção, Tristão-Lula e Isolda-Dilma olham-se fixa e desesperadamente, temendo o pior que ainda estaria por vir.

O rei Marcos vai à caça
2º ato: Isolda-Dilma se casa com o rei Marcos-Temer, em Cornwall. Certo dia, o rei vai caçar (e como lembra “O Marido vai à Caça”, comédia de Feydeau!). No palácio, Isolda-Dilma e Tristão-Lula se encontram, e em êxtase amam-se enlouquecidamente. “Eu sei que vou te amar / desesperadamente eu vou te amar / por toda minha vida / eu vou te amar / até a despedida...” (Como música de fundo, Wagner teria feito uma citação a essa desvairada declaração de amor de Vinicius e Tom Jobim, caso ela já existisse).


[A vida imita a arte: já com este blog pronto, Tristão volta ao castelo, onde, na ausência do rei Marcos-Temer, que havia ido à caça, entrega-se desesperadamente à amada Isolda (jornais de 14/10), selando o pacto de morte. Por fim, ontem (15/10) Kurwenal-Janot preparou o golpe de misericórdia em Melot-Cunha. Ópera da vida]

Melot (por Henry Kavill)
O rei Marcos-Temer ouvira de Melot (Cunha, tenor/barítono) sobre o terrível affair, e decidiu retornar, flagrando-os em tórrido romance, sem entender o porquê de Tristão-Lula trair-lhe os sonhos de rei. Melot-Cunha, antes aliado de Marcos-Temer, golpeia o traidor, mas o rei não o deixa mata-lo. Precisa dele vivo. Distante do poder, mas vivo.

O Castelo (Instituto) de Tristão
3º ato: Em seu castelo (Instituto), Tristão, ferido, vai perdendo forças, esvaindo-se, desesperado diante da proximidade de seu trágico e previsível fim. Mas eis que aporta então um navio, e dele desembarca sua protegida Isolda. Tristão, severamente machucado, arranca as ataduras que cobrem seus ferimentos e corre, cambaleante, para os braços da amada, mas logo sucumbe à morte que o aguardava. O rei Marcos-Temer, ao saber que a troca do veneno pelo “filtro de amor” fora um engodo, resolve perdoar Isolda. Kurwewall (que ressurge como Janot) dá fim a Melot-Cunha, outrora colaborador de Tristão e Marcos-Temer.

Waltraud Meier, ensaiando Isolda, no La Scala de Milão
Isolda, desesperada, clama por um outro mundo, onde poderá se unir a Tristão no mistério da eternidade. Canta, então, com enorme sofrimento, a fulgurante ária “Liebestod” (amor e morte): “na resplandecência de uma luz imortal eu me entrego e me regozijo”. “Suave e gentilmente / como ele sorri, com seus olhos / profundamente abertos”...  Ante todos, crédula, ainda canta: “vocês podem ver, amigos? Vocês não veem? Como ele brilha ainda mais ofuscante / como auréola de uma estrela?” (Trad. livre do A.) Nessa entrega sublime, Isolda entra em profundo êxtase, uma espécie de nirvana, transcendendo seu corpo e o de seu par, esvaindo-se em plena comunhão, fundindo as duas almas no além.

Waltraud Meier, como Isolda, regência de Barenboim



Jornada ao desconhecido (foto de Kartik Bhat)
Wagner sequer chegou a pensar em um 4º ato, porque sem os heróis da ópera, Tristão e Isolda, o desfecho tornara-se absolutamente imprevisível. Preferiu encerrar a cena com a comunhão espiritual de seus protagonistas. O “Liebestod”, canto de morte-amor, consagra-se talvez como a mais longa e bela ária de paixão e sofrimento da história da ópera, o final transcendente de um sonho que leva a heroína à fusão espiritual com seu amado, rumo ao desconhecido. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

EU NUNCA VI UM PAÍS FECHAR

AO MESTRE ELEAZAR DE CARVALHO, COM CARINHO

Um dia, descobri a pedra fundamental para meu aprendizado de vida: ouvir os ensinamentos dos que têm grande sabedoria. Não falo de simples aulas, mas de certa convivência com um mestre, por mais curta que seja, que é uma escola a ser cursada por etapas e a longo prazo. Respirar o mesmo ambiente, ouvir-lhes o dom e o tom das palavras, absorver pensamentos, um rito de admiração e cumplicidade. Em classe de alguns raros, cheguei a gravar aulas para ouvi-las novamente em casa, tomar notas, não perder nada. Aprender com os sábios, coisa que os orientais fazem há milênios.

Thimóteo da Costa, óleo (1919)
Também falo do mestre que há nas pessoas mais simples, no mais das vezes de idade avançada, muito experientes. Poucos bons aprendizes pensam assim, os mestres de hoje não costumam ser vistos como antes, infelizmente.


Ano que vem completam-se vinte anos que Eleazar de Carvalho esteve no palco do Teatro Municipal pela última vez. Lá, foi velado pela família, amigos e músicos. Meus tempos de convivência com ele foram puro garimpo: tiradas geniais, na velocidade que ele queria ensinar aos músicos: “vivacidade, vivacidade!”, bradava para a orquestra. Tinha perspicácia surpreendente para analisar os acontecimentos políticos, mesmo sem envolver-se em nenhum deles. Disse-me um dia “caro professor, tive muitos amigos comunistas, e sempre os respeitei, dou-me muito bem com eles”.

Mas eu não sou comunista, falei, eu diria se fosse, sou um desencantado com esse novo tipo de doença infantil (que era como Lenin, russo de Simbirsk e artífice da revolução de 1917, se referia aos que se diziam esquerdistas. Ele os descartava, achava-os um entrave na luta pelo socialismo real). Ah, então esqueça, concluiu o maestro.

Teatro Sergio Cardoso (foto: Daigo Oliva)
Aquilo foi um teste, tudo o que ele falava embutia um truque, uma pegadinha, às vezes um motivo para anedota. A Osesp ensaiava no Teatro Sérgio Cardoso, e um dia fomos tomar um café – convite que, em seu código de sinais, era para saber de alguma coisa. 

Ofereci-me para pagar e ele deixou, coisa que não era de seu estilo. Despejei de uma pequenina bolsa porta-moedas sobre a palma da minha mão, e ele arregalou os olhos vendo umas fichinhas de DDD para orelhão. Ora, exclamou, o senhor está com más intenções! Deduzi que ele queria insinuar que eu estava planejando mudar-me da cidade. Acho que sequer passava pela minha cabeça, era para ligar para meus pais, no Rio. Pois retruquei de pronto: não, maestro, é que mudei de bairro, e uma nova linha de telefone demora para ser instalada!

Livros e estudo: o chão de todos
Tive outros mestres, alguns bem idosos, outros menos. Pela presença, observando-lhes as mãos, pela leitura de gestos, olhos e palavras, os movimentos. Entre eles, meus professores de instrumento e composição nos EUA, e aqui, também, outros com quem tive curto mas proveitoso trânsito. E os eventuais, como o Frei Betto, ou meu pai, Autran Dourado, e um primo dele, grande advogado que me ensinou muito sobre a arte forense e a vida, Antonio Moacyr Braga. Houve também um economista de enorme peso que me deu breves e sutis lições sobre condução de reuniões, administração pública, cuidados com procedimentos corretos, precauções contra os espertos e traquejo político, tudo isso entremeado nas conversas, fossem elas formais ou coloquiais.

Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,
Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende
Quase que por osmose, também vale a turma de escritores e artistas plásticos que volta e meia passava na casa de meus pais, e apesar de eu na época ser criança ou adolescente, marcou-me à medida que fui me aproximando, lendo e descobrindo quem eles eram. Livros, estudos, teses, pesquisas, títulos, tudo foi meu chão, claro, mas a experiência com todos os grandes mestres foram as asas para construir minha formação.

1985: posse de José Sarney na Presidência da República

O episódio que agora vou relatar aconteceu em 1986. Um ano antes José Sarney havia sido empossado Presidente da República, sucedendo o general João Batista Figueiredo. Era o começo do fim do regime de exceção. A eleição indireta de 1984 fora vencida por Tancredo Neves, que faleceu antes de assumir, em abril de 1985. Sarney, eleito vice, tomou posse, embora o Art. 2º do Ato Institucional nº 16, de 1969, decreto imposto pela ditadura sob medida para a morte do general Costa e Silva que complementou por canetada a malfadada Constituição de 1967, também pudesse ter sido usado como impedimento.

“Art. 2° - É declarado vago (...) o cargo de Vice-Presidente (...), ficando suspensa, até a eleição do novo Presidente e Vice-Presidente (...)”. Mas o regime fez vista grossa por simpatia ao Sarney, da Arena, na transição “lenta, gradual e segura”, pois da velha e maquiada realidade econômica já escorria uma inflação de 239% e uma grave recessão à espera do novo presidente! Inábil e inapto como líder e executivo, mesmo com o auxílio de boas cabeças não foi capaz de segurar a besta inflacionária e nem seduzir povo e empresários com os planos Cruzado I e II, Bresser e Verão.

Figueiredo (dir.), com Ronald Reagan
A inflação galopava como os cavalos puro-sangue do general Figueiredo no pátio do quartel do III Exército, onde ele fora Chefe do Estado Maior. A frase “a economia vai bem, mas o povo vai mal” já foi atribuída a outros generais, mas os bastidores creditam-na a outro oficial de altos coturnos, Golbery do Couto e Silva, o Niccolò Machiavelli de todos os príncipes do regime, mostrando que a camuflagem da economia estava apodrecendo.

Os generais Golbery e Geisel
Inconformado com a ascensão do general Costa e Silva à presidência, plano de que foi ferrenho opositor, Golbery abandonou o front do governo para assumir a presidência nacional da norte-americana Dow Chemical, a partir de 1968 - apenas quatro anos após o golpe que teve participação decisiva de grandes empresas aqui instaladas, como a petrolífera Dow, a IBM e outras 29 das 55 maiores do Brasil (56%) e, claro, da CIA (Operação Brother Sam), além de outros serviços de inteligência americanos, como a DIA (Defense Intelligence Agency, de 1961), em plena guerra de bastidores contra a União Soviética. A ITT havia sido estatizada por Jango, o que provocou profunda irritação e angústia nas demais empresas sediadas no país. (O general Vernon Walters, amigo pessoal de Castelo Branco, era homem forte na CIA, e chegou  à sua vice-presidência, além de adido militar de 1962 a 1967. Lincoln Gordon, embaixador dos EUA de 1961 a 1966, e autor do sinal verde para Brasília desencadear o golpe - obteve no salão Oval, de Kennedy, o equivalente a R$ 250 milhões para reforçar as tropas, já abastecidas pelas empresas americanas  - foi autor de ações para neutralizar o poder soviético na América Latina durante a chamada guerra fria, com projetos como a "Aliança para o Progresso" e "MEC-Usaid"). Pois o casamento de Golbery com a Dow foi pouco cristão ou kosher, embora celebrado com a bênção da então chamada matriz. 

Certo dia, saindo de um ensaio, eu e o maestro assuntávamos sobre os rumos do país. (Ele havia me dito outra frase célebre para o meu repertório: "vamos ficar olhando o aquário de cima, para ver a hora em que os peixinhos vão subir para respirar"). Como músico, eu ganhava 7 mil cruzeiros, ou sete milhões, se o Plano Cruzado, um mês antes, não tivesse surrupiado três zeros do salário. O dinheiro era o mesmo, mas os milhões fascinavam, apesar de os zeros nada valerem. Foi quando ele me veio com uma afirmação meio surreal, um quase vaticínio, coisa que eu não repetiria hoje, já que sou inveterado otimista. Olhos nos olhos, afirmou, com o humor sério e cáustico de sempre, adaga afiada como seus típicos cortes orquestrais (vide abaixo): “nunca vi um país fechar, mas sempre pode haver uma primeira vez”.




sexta-feira, 2 de outubro de 2015

BRASIL: MINHA PRIMEIRA CRISE

Antigo prédio da UNE, na praia do Flamengo, quando declarada ilegal
em 1964, depois sede da Música e Artes Cênicas da Fefierj
Ela surgiu antes de eu me achar gente. Quando comecei a me descobrir no mundo, vivi a ditadura no colégio, com a família, amigos e amigas. Senti a censura e a mordaça imposta a todos os brasileiros. Entre ordens e desordens, progressos e regressos, ingressei no curso superior de música da Fefierj, hoje Uni-Rio, tendo o Gen. Jayme Ribeiro da Graça, do SNI (Serviço Nacional de Informações), como interventor-diretor. Alunos chegavam a serem revistados por policiais na entrada, pois sabe-se lá o que jovens artistas poderiam tramar contra o regime em nome do outro totalitarismo, o soviético. Fui ameaçado pelo diretor, em classe, por uma opinião divergente sobre flautas de osso indígenas, que o general entendia inferiores às “civilizadas”, modernas, e eu obviamente não concordei, cada coisa é uma coisa e cada cultura uma cultura. Saiu, bateu a porta, voltou, abriu-a novamente e apontou o indicador para mim: “e o senhor, cuidado para não virar flauta, ouviu?”.

Rádio de ondas curtas
E veio a data cabalística, 7/7/77, minha partida para Boston. Queria apenas viajar, estudar e arrumar trabalho, ficar, talvez, e lembrei Caetano: “No dia em que eu vim-me embora / minha mãe chorava em ais / (...) e eu nem olhava pra trás”. Nos EUA, costumava ouvir notícias da ditadura no Brasil pelo rádio de ondas curtas, via estações de outros países, mas do regime de força o país somente começou a escapar com a anistia, em 1979. Chegavam pelo correio revistas enviadas por minha mãe, sempre enroladas e com etiqueta selada de fora, e era com elas e o rádio com que eu acompanhava o que acontecia em meu país.

A classe operária querendo ir ao paraíso - foto da época
Um susto: acho que em 1979, quando vi em uma das capas de revista um sujeito barbudo, cabelo crespo e camisa de malha branca suada à frente de um batalhão de metalúrgicos, parecia coisa  dos líderes ítalo-americanos Sacco e Vanzetti, em 1920. Esses caras estão loucos, pensei, vão morrer todos. O barbudo atendia pelo apelido de Lula.

O potente Olds Delta 88, modelo 1977, motor 5.0, 8 cilindros
Também vivi crises americanas, como a do petróleo. 
"Graças" a ela, comprei um Oldsmobile Delta 88, uma barcaça com motor 5.0, 8 cilindros em “V”, que navegava a coisa de 3 km/l na cidade, por módicos 300 dólares, já que ninguém queria sustentar um beberrão daqueles (a moda passou a ser comprar econômicos japoneses que os americanos classificam como "tamanho pequeno", como o Corolla). Dirigia o Olds apenas para levar o instrumento para um concerto, ou um rápido passeio no fim de semana. O cidadão americano estava cansado de guerra como a Teresa Batista do Jorge Amado, já havia passado por vários conflitos, entre eles duas Grandes Guerras, mais as da Coreia e do Vietnã, entre outras. Era dever cívico cultivar um Victory Garden, espécie de horta doméstica de uso estimulado pelo governo para o povo suportar as crises entre as guerras, como na Grande Depressão de 1929/30, essa uma bomba econômica de efeitos devastadores.

A desastrada ordem de Jimmy Carter
Prosseguindo, nos EUA vi a crise com o Irã, e o famoso fiasco do Jimmy Carter, quando 52 americanos sequestrados e mantidos reféns naquele país serviram de desculpa para uma desastrada ordem presidencial: um super-helicóptero de combate matou vários e feriu muitos outros ao se chocar contra um enorme avião-tanque C-130. Houve protestos nas ruas até durante as madrugadas, tanto de parte dos americanos quanto dos estudantes iranianos da cidade.

O terrível monstro do Lago Ness
De volta ao Brasil, vi a primeira crise econômica de grande vulto, arrastada no vácuo da volta à democracia, com a eleição indireta de Tancredo e a posse de Sarney, na falta do primeiro. A bomba econômica ficara enterrada durante anos, maquiada pelos artífices Delfim Netto e Mário Simonsen, cuja mágica fazia sumir do balancete produtos com preços disparados e agregar alguns que não subiram (e nada interessavam) ou até caíram, baixando a média para alívio do povo. A censura ajudava. A maquiagem desmanchou com o retorno do país à liberdade de expressão e de imprensa: logo emergiu da lagoa o monstro da inflação galopante, e os brasileiros se viam obrigados a comprar tudo de uma vez logo que recebiam os salários, pois o dinheiro definhava no dia a dia.

Eu era um simples músico, mas da classe média para cima havia meios de o assalariado aplicar no chamado overnight, que chegava a pagar 1% ao raiar do dia. Tornou-se popular uma pasta de plástico com divisórias onde guardávamos a conta nossa de cada dia para pagar no dia seguinte ou até no fim do mês, enquanto o salário, aplicado, parecia render a olhos vistos.

Osesp (na FPA), registro na CTPS
E veio o confisco do Collor, que deve ter feito até Fidel Castro corar: ele não havia pensado em nada parecido nos tempos mais duros da revolução cubana, desde 1959. Menos azar teve quem, como eu, tinha contas a pagar registradas. Poupança congelada, meu boleto viria a saldar prestações de um terreno que havia comprado, havia essa “liberalidade” para devedores comprovados. O tempo passou, e até Carolina viu, foram vários planos, moedas, trios de zeros eram cortados das cifras. Na Osesp, eu ganhava em 1985 exatos Cr$ 2.622.851,00 mensais, assinados em minha CTPS! (Foto acima).

Ninhada de coelhos
Em 1994, com Itamar Franco, uma equipe de jovens economistas da melhor formação, como André Lara Resende (Harvard), Pérsio Arida (MIT) e Pedro Malan (Berkeley), Edmar Bacha (Yale), todos ungidos pelas teorias do inglês Keynes, bolou um sistema inédito, em busca de cortar “as raízes da inflação pós-ditadura”, como disse Chana Joffe-Walt, em “Como Dinheiro de Mentira Salvou o Brasil” (trad. livre), publicado em 2004. Esse dinheiro "fake" chamava-se URV (Unidade Real de Valor), e depois cedeu o lugar para a nova moeda, o Real - quando o plano foi lançado, FHC já havia saído do Ministério da Fazenda para se desencompatibilizar, com vistas à eleição presidencial. O truque deu certo, mas a dívida do setor público chegaria a 48,7% do PIB, em 1999 (em agosto deste ano de 2015, já alcança escandalosos e insaldáveis 68,3%). Quase 20 anos depois do plano, os gastos públicos, vencimentos e mordomias dos três poderes haviam subido às nuvens, e com eles a classe política e de empresários foram juntas ao paraíso, em perfeito contraste com o que queria o cineasta Elio Petri, em 1971, no filme La Classe Operaia Va in Paradiso. Ministérios se acumularam e com eles cargos, estatais, contratos, grandes dutos de destino incerto, ralos de dinheiro, e mesmo simples cuecas, calcinhas e bolsas, tudo coberto com a linda bandeira de fachada dos grandes investimentos e programas sociais, sem falar nos projetos deficitários e até suicidas, desde as insustentáveis obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas, até transfusão de águas do São Francisco, hoje na UTI, para onde escorreu o manancial de gastos públicos que deu crias e crias, assim como os impostos, rápidos e inconsequentes qual fossem ninhadas de coelhos e coelhas no cio.

Sobre a crise econômica e política deste ano não vou me estender, todos a sentem na carne, e já basta. Ela também é serevra crise de credibilidade, de competência, de moralidade e ética, coisa tão profunda e complexa que não ousaria abordar em detalhes por ora. Por isso, concentrei-me na crise do regime pós-64, na do Sarney e na do Collor. Esta de 2015, mais parecida com esquadras de caravelas monstruosas mais perdidas na calmaria do que (conforme nos ensinaram nas escolas) o navio de Cabral. É um naufrágio exposto à visitação pública ("Precisamos enterrar os nossos mortos" diz Desdêmona, em Otelo, de Shakespeare). Da proa das torres da nau, telescópios nada veem, nada além de tempestades. 

Aquele histórico anúncio da TV sobre peças íntimas para meninas adolescentes do genial Washington Olivetto, de 1987 (estrelado por uma menina de nome Eliana, na época com 13 anos e hoje famosa apresentadora de TV), criou uma frase de efeito, depois eternizada e feita de multiuso público. Parodiando a propaganda, com as devidas escusas ao Olivetto, lembro minha juventude e digo: “a primeira crise a gente nunca esquece”.