LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

REPÚBLICA: O QUE COMEMORAMOS MESMO?

Passada a data que o país consagra à Proclamação da República, dia 15 de novembro, surge a mesma questão que me incomoda em todos os inúmeros feriados. No caso, quis a sorte que neste ano o dia caísse em um domingo. Além da folga, do churrasco ou da balada, quantos se lembram do significado das datas? Todos os feriados passam a ser mera festança e preguiça, menos para os que precisam deles para trabalhar mais e levantar uns trocos, como bem cantou o Chico, em Meu Caro Amigo: “é pirueta pra cavar o ganha-pão / que a gente vai cavando, só de birra, só de sarro...”

Sábia a declaração do Papa Francisco, em jogo aberto, na quinta-feira, 19/11: “as festividades do Natal soam falsas em um mundo que escolheu a guerra e o ódio. Haverá luzes, festas, árvores iluminadas, presépios, (...) mas é tudo falso. O mundo continua em guerra”. Isso, no mesmo dia em que foi instalado na Praça de São Pedro um enorme pinheiro para as festividades natalinas.

Platão
Pois voltemos à República desde sua etimologia (origem das palavras). Do latim res+publica, o termo significa “coisa pública”. Os preceitos do que seria tal instituto remontam à Grécia e depois à Roma antigas, e se consolida na palavra latina e seus significados. A comunidade, o consenso do direito e os interesses comuns devem nortear a república. O grego Platão (428/7 a 348/7 a.C.) tinha em seus pensamentos a politeia, de polis, de onde Petrópolis, cidade de Pedro, e Acrópole, a parte mais alta do burgo, onde ficavam os poderes.

Cícero
Os latinos seguem os pensamentos de Cícero (106 a 43 a.C), que fez sua versão da Politeia, original de Platão, para República, mas o sentido original de comunidade harmônica permanece, com suas diferenças. A palavra veio designar, mais tarde, uma forma de governo em que prevalece a busca pela igualdade de direitos entre os homens e sua representatividade nos poderes. Surgiu em nossa língua por volta do século 15, e foi usada até pelo Império Português (D. João II) com sentido de comunidade.

Bandeira do Império Brasileiro
Modernamente, República passa a significar, de forma simplista, o oposto de Monarquia, colocando de um lado um sistema em que o poder é exercido pelo povo e para ele, e, na contramão, aquele em que o soberano o exerce de forma pessoal e absoluta. Curioso é que em monarquias como Grã-Bretanha, Dinamarca, Suécia e Espanha elementos republicanos estão mais presentes do que em boa parte das chamadas repúblicas.

A bela Ilha Fiscal, na Baía da Guanabara
Deodoro proclamou a nova forma de governo no Brasil derrubando o Império, já em frangalhos – no famoso Baile da Ilha Fiscal do Rio de Janeiro, no dia 9 de novembro de 1889, D. Pedro II caiu, ao subir as escadas. Levantou-se exclamando: “cai o Imperador, mas não cai o Império!”. Seis dias depois, o regime viria abaixo. Com o golpe, Deodoro vestiu-se de déspota, mas conseguiu ser ultrapassado por seu sucessor, Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”, que instaurou de vez a ditadura, controlou a imprensa, manietou e ameaçou de prisão os membros da Suprema Corte. O florianismo foi inspiração para o getulismo e tantas ditaduras declaradas ou dissimuladas, até a mais longa e cruel de todas, a de 1964, que deu sinais de falência múltipla ao completar a maioridade, aos vinte e um anos, após a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney em 1985.

Original do 6º volume de A República, de Cícero
Mas voltemos a Cícero e sua república, avançando sobre o Brasil dos dias de hoje. Segundo ele, haveria três pressupostos básicos: interesses comunitários (communio), o povo (multitude) e o consenso do bom direito (consensus juris). Quanto ao communio, ele está presente, de uma forma ou de outra, mas esses interesses não ficam em primeiro plano: decidem sobre ele pessoas em sua maioria despreparadas e grande número de representantes que só defendem seus próprios bolsos, sem a menor preocupação de simular castidade ou honestidade. Há um poder executivo que trabalha por seu grupo e interesses, embriagado pela volúpia de perpetuar-se no poder.

O controvertido Nelson Rodrigues
A multitude, ou seja, o povo, está presente apenas como massa, que querem “massa ignara” como a ela se referiu o polêmico teatrólogo Nelson Rodrigues. Já o consensus juris, ou consenso do direito, pouco existe, e é atropelado por toda sorte de embargos, agravos, seguranças, recursos ad aeternum às segundas e terceiras instâncias ou a várias delas, até os chamados “repetitivos”: cabem todas as manobras protelatórias e até mesmo os chamados embargos infringentes, que anulam todos os julgados anteriores, caso de alguns réus do mensalão. A Suprema Corte é obrigada a interferir nos desmandos do legislativo e executivo, embora soterrada por centenas de milhares de processos que vão desde uma condenação por porte de pequena porção de maconha – um caso recente, ao menos, criou jurisprudência -, e mesmo furtos famélicos, cometidos pelo instinto da fome ou necessidade pessoal absoluta, como uma escova de dentes.


A Politeia de Platão e
a República de Cícero: Ed. 1713
Por onde andam a nossa “coisa pública” e os preceitos que norteiam o instituto republicano? Contraditoriamente, nas já citadas monarquias europeias eles se mostram mais presentes e dominantes do que em países como o nosso. Por tudo isso, pensando no Papa, quando ele se referiu à falsidade das festividades natalinas, fica minha ‘pergunta sem resposta’ (título de música de Charles Ives) sobre um feriado para algo que tem perdido significado, o da República. Nostri culpa, nostri culpa, nostri maxima culpa, já que “todo poder emana do povo, que o exerce”, como dita a Constituição da República! Ou assim deveria.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

PARIS N'EST PAS UNE FÊTE

Estive em NY não muito tempo depois do ataque ao World Trade Center. Subi ao único ponto de observação permitido na época, um saguão pouco acima de uma sobreloja vizinha. Quem lá viveu aqueles trágicos acontecimentos descreveu-me cenas dantescas. As pessoas ficavam apopléticas a ver a terra arrasada, compartilhando enorme tristeza: o vazio profundo que restou depois da demolição dos prédios. Era só silêncio. Lembrei-me da música do Gilberto Gil, “Se eu quiser falar com Deus”, na voz de Elis Regina, a cappella (sem acompanhamento) em que ela repete seguidamente a palavra ‘nada’.


Boston, MA, 2013
Saí dali com o corpo pesado, lembrava os 4.300m de altitude no Pike’s Peak, no Colorado: difícil caminhar e mais ainda descrever a sensação. Depois daquele dia onde ainda restava em terraços vizinhos a fuligem e restos de pedaços de pessoas que restaram do 9/11, entendi o excesso de zelo com a segurança no país. Saindo de Richmond, Virginia, em cuja Universidade fui dar uma palestra, para entrar no voo para NY, tive de responder a um questionário agressivo no aeroporto. Minhas coisas foram reviradas ao avesso, e ainda tive de submeter-me a humilhante inspeção, seminu por trás de um biombo, antes de pegar o voo. Repetia na cabeça o mantra de que tudo era para minha própria segurança, havia um estado de guerra. E o clima do 9/11 ainda voltaria recidivo na Maratona de Boston de 2013.

A Bela Richmond University, local de minha palestra
De volta ao Brasil, já no aeroporto de Cumbica, senti-me aliviado, e feliz quando avistei minha bagagem na esteira. Ao pegá-la, reparei que o zíper havia sido cortado por uma lâmina, e uma série de faixas adesivas a amarravam: baggage inspected. Ainda tenso com a neurose dos policiais e funcionários dos aeroportos e uma sensação contraditória de que toda aquela paranoia era necessária à proteção de todos, resignei-me. Um alemão da orquestra de Desden havia me presenteado com uma pesquisa que escrevera sobre Dittersdorf, mas o livro chegou todo amassado entre as roupas e os poucos souvenirs. Pensei nas vítimas do episódio, e no que poderia ter sido evitado se precauções tivessem sido tomadas com antecedência. Mas ninguém tinha bola de cristal para prever o ataque do 9/11.

Café da boa e velha Montparnasse
Mais uma tragédia, agora na França. A primeira da série, em 2011, a que se seguiu o ataque ao hebdomanário Charlie, em janeiro deste ano, e por fim a mais recente, da sexta-feira, 13 de novembro de 2015. Paris não será mais, por algum tempo, uma festa, contrariando o Paris, c’est une fête do escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1861), que no título deste artigo li ao revés. No passado, reunia-se em cafés e bistrôs na Montmartre la crème de la crème, a nata dos intelectuais e artistas. Toulouse Lautrec, Dali, Mondrian, Van Gogh, Stravinsky, Picasso e Chopin, em grupos, por vez ou aos seus tempos, tomavam cafezinhos ou absinto, regados a charutos e a melhor cultura. Era a efervescência cultural que germinou dos ecos do iluminismo e floresceu no século 19 pós-revolução, até bem entrado o século 20.

Le Carrillon: tristeza no lugar da alegria
Em meia dúzia de locais do recente ataque havia ‘points’ da jovem boemia, bares e casas de shows. O número de mortos crescia a cada nova descoberta, e a conta parecia não fechar. Pelo menos 11 ataques foram cuidadosamente planejados e sincronizados em pontos nevrálgicos da capital francesa: os bares e restaurantes Le Carrillon, Le Petit Cambodge e La Bonne Bière, ficam nos arredores da Praça da República, e o maior alvo, Le Bataclan, e o La Belle Équipe, situam-se próximos à Praça da Bastilha, símbolo da derrubada da monarquia pela revolução francesa. Fora as bombas no imponente Estádio da França, onde o presidente François Hollande assistia a um jogo de futebol entre seu país e a Alemanha. Na vaga lembrança do 9/11, imagino o que devia estar sentindo minha irmã, Ofélia, que ainda estava em Paris até que, no dia 18/11, recebi uma mensagem, à noite, retornando de São Paulo após uma cerimônia, informando que chegara ao Rio. Minha filha Marta, que mora em Londres, e eu, ficamos apreensivos com o jogo de futebol do dia 17. Porém, em uma demonstração de união e exemplo à sua nação, compareceram o primeiro-ministro David Cameron e o príncipe Philip, da família real. Bem diferente de uma chefe da nação que mandou levantar um muro para conter simples manifestantes em um desfile cívico. 

Jovens fanáticos de um falso estado islâmico
Estragando a festa parisiense, os ataques foram cruéis e aterrorizantes. Os criminosos eram, em grande maioria, jovens. Seus grandes alvos foram locais de convivência de jovens pacíficos. Coincidência? Jovens terroristas atacaram suas vítimas liberais, gente curtida e intelectualizada. Esses fanáticos e inversamente ultrarreacionários e radicais instalaram-se em países europeus, treinam e doutrinam seus filhos no ódio e nas armas. Uma analogia parece inevitável, com a 2ª Grande Guerra, que foi um câncer focado em lugares conhecidos e alvos precisos, que a partir da união de Roosevelt, De Gaulle, Churchill e Stalin pôde ser tratado de maneira pontual e radioterápica.

Churchill, Roosevelt e Stalin: o fim da 2ª Grande Guerra
Por outro lado, o que vivemos hoje é uma grande e descontrolada metástese que se espalhou por boa parte do mundo. Ao contrário da 2ª Guerra, a nova praga surge disseminada, enquanto alguns equivocados aproveitam para destilar seu ódio generalizado lançando-o contra os fiéis que nada têm a ver com o fanatismo que usa em vão o nome de Alá – ou Deus, tanto para muçulmanos quanto judeus e cristãos de língua árabe - pelo Al-Qaeda, os Jihadistas, EI (ex-Isis) e outros grupos de terroristas suicidas alucinados.

Francisco e o símbolo do Agnus Dei
“Corão é um livro de paz”, disse sobre a necessidade de os líderes muçulmanos condenarem o terrorismo, ao qual o Islã não pode ser associado. Palavras do Papa Francisco (fonte: Agência Ecclesia). 

"Teremos luzes, festas, Francisco lembrou a aproximação do Natal, mas disse que todos os preparativos não irão refletir a verdade. Árvores luminosas e presépio. Tudo falso: o mundo continua fazendo guerras”. (Francisco, Agência AP)

A França, que tem orgulho de seu hino A Marselhesa, escrito para a tomada da Bastilha, brada a todo momento seu l’étandard sanglant est levé (a bandeira sangrando está erguida), de um longo passado de guerras. O país é preparado para defesa e ataque, e já costura apoio do mesmo bloco de grandes potências que, ao se juntarem, selaram o destino da Segunda Guerra.

Caças russos em 17/11/15
A participação da Rússia, dia 17 de novembro, nos ataques aos foco do EI, mostrou que se caminha em uma direção que parece a única, no momento. Não há como vislumbrar acordo, armistício ou diálogo com quem não está disposto a outra coisa senão matar. O jogo amistoso de ontem, em Londres, apesar de toda a segurança que o cercou, além de ser uma linda homenagem, trouxe dois de seus símbolos, o premiê Cameron, e Philip, neto da Rainha, para assisti-lo, sem medo mas sabendo que haveria riscos.


Tomara que a história, dessa vez, não siga a máxima do velho pensador alemão, e assim não se repita como farsa. O que acontecerá a partir de agora é imprevisível, mas urge um chega, já, basta! Antes que a estupidez se expanda e espalhe sua luta insana nos centros, ruas e becos, campos e montanhas, plantações e indústrias, inundando como lava de uma gigantesca napalm de pânico. Que Deus nos abençoe. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

MARTHA HERR: UM CISNE FORA DA CURVA

Esopo
Canção do Cisne  é expressão que se relaciona a uma despedida, no sentido mais amplo. Diz a lenda que esses pássaros aquáticos entoam uma lindíssima canção ao se verem perto do fim. Finca origens no século 3 a.C., apesar de já haver referências em 6 a.C. Na mitologia grega, o cisne era um pássaro consagrado ao deus Apolo, e, como ele, um paradigma de beleza. Na fábula de Esopo (6 a.C)  O Cisne e o Ganso , o belo pássaro escapou cantando, após ser capturado por engano como ganso. Grego também é Agamemnon , de Ésquilo (458 a.C.), em que Cassandra, que anteviu a guerra de Tróia, canta como um cisne em seu final.
Gravura de Reinier Van Persijn (1615-1668)
Michelangelo: Leda e o Cisne
Michelangelo (1475-1564), 
em seu belíssimo óleo Leda e o Cisne, descreve Zeus, transubstanciado no pássaro, possuindo Leda, rainha de Esparta. E Leonardo da Vinci (1425-
1519) já havia feito sua versão. Isso, embora logo no início a lenda do cisne já tenha sido desvendada pura invencionice - a História Natural  do romano  Plínio, o Velho (77 d.C.), deu fim a ela. Olorum morte narratur flebilis cantus, falso, ut arbitror, aliquot experimentis (resumindo: a lenda do cisne é falsa!), decretou.

Uma obra-prima: O Cisne de Kew Gardens, Londres.
Foto de Beto Binder, com os agradecimentos
Ainda assim, continuou inspirando: o escritor medieval Geoffrey Chaucer e depois seus conterrâneos ingleses William Shakespeare (1564-1616), em  O Mercador de Veneza e Samuel Coleridge (1772-1834). Não é de se estranhar esse apego dos britânicos ao majestoso pássaro aquático: para eles, o cisne é animal sob proteção da Coroa, e desde o século 12 é crime, passível de prisão, apossar-se ou maltratar um deles, verdadeiro símbolo real! O pássaro é também símbolo constante em brasões reais, como os de Jonava, na Lituânia, Horgen, na Suíça, Unterschwaningen, na Alemanha, Buckinghamshire, condado inglês, e, como cisne negro, na Austrália Ocidental.

Montagem de Danse des Petites Cygnes, de Tchaikovsky
Na música, cito o Schwanengesang , um concerto para oboé de 1773 do alemão Telemann, tributo póstumo a Garlieb Sillem, prefeito de Hamburgo.  Já Le Cygne, do romântico francês Saint-Saëns (1835-1921), era o único movimento que o autor achava  ‘sério’ em seu Carnaval dos Animais  (os demais eram troça com personagens e compositores de sua época). O cisne-violoncelo canta com o acompanhamento de um piano, até se esvair no nada. A obra fora encomendada para um solo da prima donna do balé clássico Anna Pavlova, estreada em 1905 em São Petersburgo, Rússia, e por ela repetida mais de 4.000 vezes. Fora seu Cygne, o compositor achava seu Carnaval  “uma  nobilíssima bobagem”, que me parece uma blague como a  “reverendíssima besta”, de Mário de Andrade. (Abaixo, um vídeo raro de Anna Pavlova dançando Le Cygne, em 1910, com acompanhamento de harpa).





Conheci Martha Herr no Encontro de Orquestas Jovens de Tatuí, em 1984, em que fui um dos professores e Martha abordava técnicas de respiração. Em alguns de meus intervalos ia assisti-la, pois respiração é para todos - o grande violoncelista Janos Starker (1924-2013) foi autor de estudos sobre a coordenação entre os movimentos do arco e o diafragma. 


Seguiram-se 31 anos de admiração e amizade absolutamente imaculada. Martha tinha uma erudição incomum em nosso idioma, foi uma brasileira nascida nos EUA. Em comum, também, o signo do Touro no zodíaco. Todo mês de maio, fazia reuniões com seus amigos taurinos, usando o signo como desculpa – curioso:  signe, em francês, soa como cygne , cisne. Desculpa talvez não foi, vai saber se algo em comum estava escrito nas estrelas. Pura diversão: nós, o finado violinista Bruce Mack, a violoncelista Gretchen Miller e outros.

A diva
Na penúltima vez em que Martha esteve em Tatuí, para provoca-la  lembrei a divíssima Bidu Sayão, que havia reclamado a Villa-Lobos que na Dança (Martelo), segundo movimento das Bachianas nº 5, aquele  “cariri” agudíssimo era muito ruim de ser cantado por causa da vogal  “i”. Bidú era da tradição do belcanto, à maneira de seu tempo.

Isabela Autran, Wladimir, Martha Herr e eu. Teatro Procópio Ferreira
Conservatório de Tatuí. Foto: Kazuo Watanabe
Há uma brincadeira que faço com as sopranos, já que Villa-Lobos queria que suas músicas fossem cantadas em claro português brasileiro. Perguntei a Martha se ela tinha problemas com o “cariri”, e então, com a boca bem aberta, aqueles dentes de criança, lascou “o caririiiiiiii” com tamanho volume em minha orelha que parece zunir até hoje.

Martha e as Bachianas Brasileiras nº 5, no Conservatório
Foto: Xpress
Há poucos meses, pedi ao amigo Roberto Tibiriçá, que guarda tudo organizado como colecionador obcecadíssimo que é, que encontrasse uma gravação que fizemos com a Nova Sinfonietta, com ele próprio regendo, no Teatro Cultura Artística (12/06/1988), em que Martha Herr cantava o 2º mvt. do lindo Exultate Jubilate, de Mozart. Pois Roberto, é claro, tinha a gravação! Por ser uma das minhas favoritas interpretações de Martha, e a que mais me tocou nas vezes em que ouvi este moteto, que soa como um verdadeiro canto de alegria (Exultai, Jubilai-vos!), a peça (1777) de Mozart surgiu como gema preciosa para um presente a uma amizade de 31 anos: gravada em fita K7, foi masterizada digitalmente pela nossa Deise Juliana, e então feita uma edição exclusivista, coisa de 3 exemplares.

Para completar o presente, achei por bem uma boa leitura para uma exemplar lutadora como Martha: comprei via Londres um exemplar de The Cloud of Unknowing (em português, A Nuvem do Não Saber, tradução não muito feliz já no título), uma espécie de guia à iniciação à meditação e contemplação de um monge beneditino anônimo do século 13, sequência de exercícios espirituais que levariam, tal qual monges do Tibet (não havia lá muita diferença, no passado, entre práticas meditativas tibetanas e monásticas beneditinas), a um estado contemplativo, de pura abstração: o nada pensar, nada saber, estágio em que se pode observar a perfeição a sentir a proximidade do Superior. Sei que Martha, naquela altura compreendendo mais sua língua nativa – apesar de ter falado português como qualquer um de nós, para dizer o mínimo -, haveria de enfrentar seus momentos de introspecção. Os presentes chegaram a tempo, apesar de as expectativas daqueles dias conspirarem contra nós. Torci pelos Correios e os intermediários que entregaram a Martha minhas lembranças, em mãos. Leu trechos algumas vezes, e pediu que lhe lessem outros tantos, na sequência que o livro propunha. O alívio para o espírito é o bálsamo para a mente angustiada e o corpo – mens sana in corpore sano, diziam os latinos.

Dr. David Chew, OBE
Em comum também é o grande e admirado amigo, brasileiro nascido na Inglaterra, David Chew, OBE, Order of the British Empire – a mesma láurea recebida pelos Beatles -, concessão da Rainha Elizabeth. Chew é um violoncelista e vulcão empreendedor na música brasileira. Com passagem agendada anteriormente, não deve ter sido por coincidência que David pousou em São Paulo, bem pouco antes de ela se despedir. No RICE, Rio International Cello Encounter, que já teve sua extensão em Tatuí, Martha cantou, nesses 25 anos de festival, talvez igual número de vezes a Bachianas Brasileiras nº 5, para soprano e orquestra de violoncelos, de Villa-Lobos, neste evento centrado no instrumento que lhe dá nome, mas aberto a outros, assim como a outras áreas das manifestações artísticas, como a dança. Chew chegou de avião no dia 2 de novembro, indo direto para o hospital. Teve pouco tempo para se despedir da amiga de longos anos. 


Martha foi especialista em música contemporânea e brasileira, dedicando-se, em seus estudos e trabalhos acadêmicos, à pronúncia clara em sua língua adotiva: enorme contribuição, seus alunos e colegas que o digam! (Ver texto acima, na imagem. Crédito: Fundunesp). Com tudo isso, tornou-se cobiçada por nossos compositores, fazendo várias primeiras audições. Participou da estreia brasileira do ciclo completo do Anel dos Nibelungos, de Wagner, no IX Festival Amazonas de Ópera, mas sempre reclamou que era raro ser chamada para grandes títulos de ópera, razão pela qual firmou sua reputação como camerista ou solista de textos de câmara, missas e motetos, além da música do séc 20, uma dedicada especialidade. A última aparição como diva em um palco brasileiro foi na ópera Olga (2006), do nosso ilustre amigo comum Jorge Antunes com libreto de Gerson Valle. Dos bastidores, conheço a cena.

Prof. Dr. Jorge Antunes (Unb), compositor da ópera Olga. Divulgação
Em 2003, provavelmente, recebi Jorge Antunes, de Brasília, e o levei à então sede Orquestra Experimental de Repertório, da Prefeitura de São Paulo. Antunes veio puxando um carrinho de viagem com as três enormes partituras de seu extenso trabalho de dez anos. Contemporâneo de invejável formação europeia, uniu um tema histórico e o repente nordestino ao pai da grande ópera, Richard Wagner, que o inspirou em um lindo intermezzo eletroacústico que cita o prelúdio de  Tristão e Isolda, do mestre alemão. Outra citação é o canto do cisne do  Liebestod  (amor e morte), uma ária de quinze minutos para o ocaso de Olga, tal qual a Isolda de Wagner.
Martha: Olga Benário presa, na ópera de Antunes
Dedicatória
Malsucedida a primeira tentativa, fui ao então Secretário de Cultura, Calil, falar sobre a importância de estrear a ópera. Havia o livro do Fernando Morais e o filme, e raras são as óperas brasileiras. Calil concordou, mas o Teatro Municipal ofereceu um cachê para Martha e Fernando Portari simplesmente inaceitável. Com presteza, Calil logrou quase triplicar os cachês, para um valor digno. Em 14 de outubro de 2006 Olga finalmente estreou no olimpo, o Municipal de SP, sob a batuta de José Maria Florêncio, um especialista em óperas residente na Polônia. No camarim, após abraçar autor e soprano, recebi uma dedicatória, o afago “ao querido amigo e grande músico”, do compositor, e um agradecimento especial da cantora: “Obrigada por ajudar. Beijos, Martha”.

Com tudo o que nos legou como artista, pesquisadora, professora, amiga de caráter exemplar, escreveu uma página da nossa música, dedicando-a sem precisar de autógrafo ao país que adotou. Martha nunca morreu, nem foi o falso cisne da lenda, pois cantou a vida inteira! Apenas não se pode mais assisti-la ao vivo. Mas viva a Martha, que ainda vive cantando dentro de nós.

Olga, ária final, com Martha - Liebestod, segundo Antunes

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

ENEM 2015 E SIMONE DE BEAUVOIR

Simone
Uma polêmica além do surreal. Mesmo que ninguém soubesse quem foi Simone de Beauvoir, a questão teria sido simplíssima. Porém, os “diplomados” pelas redes sociais que tiram conclusões apressadas já pelos meios-títulos cunhados com má intenção, sempre caem na esparrela. Houve uma mocinha que escamoteou levianamente com o dedo a segunda parte da questão nº 5, deixando entrever na postagem apenas o início: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Jogou na rede e escreveu no caderno da prova este descalabro: “nasci mulher, tenho vagina”. Simone pensava que tornar-se mulher era quando ela se assumia como tal em uma sociedade em que “o segundo sexo” (título do livro de onde saiu a frase) é subserviente. Ora, talvez navegando em pensamentos da moda como “o sexo ou opção de gênero acontece depois”, a garota desferiu um golpe mortal na lógica. A segunda parte da introdução, que ela encobriu, explica que tornar-se mulher significa encontrar seu lugar na sociedade machista. Nada a ver com sexualidade, ponto.

Usar jargão moderno para se referir a uma frase de 65 anos atrás foi para lá de cabotino. As respostas em múltipla escolha tiveram antes uma curta explicação, e essa quase que trazia embutida a resposta: “na década de 1960, a proposição de Simone de Beauvoir serviu para estruturar um movimento social”. Ponto. Mostro minha discordância quanto à clareza da pergunta, pois esta segunda parte, “na década de 1960”, é uma redação dos que elaboraram a prova, nunca afirmação de Beauvoir. O livro de Simone é de 1949, e a segunda frase do texto, que não é de autoria dela, refere-se a quase 18 anos depois. Para confundir mais ainda, em letras miúdas, a bibliografia do texto da questão: "BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980". Para atrapalhar ainda mais, a edição citada na bibliografia é de 1980. A tradução para o português foi no mesmo ano de lançamento, 1949, assim como naquele ano e mais de 30 idiomas, em 1950. Samba do candidato doido. 

Movimento feminista: protesto no Brasil, anos 1960
Se fossem respostas dissertativas, e não por múltipla escolha, dá para imaginar o nível das explicações. Pois vamos a elas. (A) “Ação do poder judiciário para criminalizar a violência sexual". Absurdo, não seria da alçada do judiciário inventar algo que a lei não define. (B) “Proposição ao Poder Legislativo para impedir a dupla jornada de trabalho”. Impedir? A “segunda jornada” se refere ao lar, depois do trabalho, e é uma questão de divisão de trabalhos domésticos, a mulher dando duro e o maridão descansando da lida. Não há como legislar sobre a intimidade do lar, indevassável pela Constituição. (C) “Organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero”. Seria a resposta correta, fora a minha restrição aos citados anos 60, muito depois do livro Simone. Meu filho cravou por lógica. E ainda me falou nas questões femininas do pós-guerra. (D) “Oposição de grupos religiosos para impedir os casamentos homoafetivos”. Naquela época? É coisa de dos dias hoje, o assunto nem sonhava em ser cogitado. Tabu 100% (E) "Estabelecimento de políticas governamentais para promover ações afirmativas”. Soa como coisa oficial, da Secretaria da Política para as Mulheres ou discurso político.

A discussão, eivada de maldades e distorções, foi além do ridículo. A literatura brasileira não foi solapada pela francesa, pois a questiúncula (no diminutivo mesmo) era tão curta, entre 45, que mais lembrava as “leituras silenciosas” do colégio. Ninguém precisaria conhecer o pensamento da filósofa, sequer saber quem ela foi. A simples lógica induz à opção correta. Simone propunha ideias feministas, sim, e nunca pelas mãos do estado, haja vista que à mulher francesa foi “concedida” a bênção do direito de votar apenas quatro anos antes de seu livro. Não interessava - nem interessa ainda - ao estado machista abrir espaço às mulheres. Ademais, o jargão empregado nas respostas erradas, (D) e (E), é típico vocabulário recente brasileiro, sendo a (D) coisa da “bancada da Inquisição” do Legislativo e (E) vindo de instâncias do governo, de cima para baixo, e não de um movimento de conscientização popular, de baixo para cima. Conseguiram radicalizar uma coisa simples, e pilantras dos mais reacionários e ignorantes subiram ao palco armados. Segue-se um cenário de terror onde quem apavora são os atores principais, autoridades da justiça e do Legislativo, dois poderes constituídos.

Gloria Steinem: a ativista sedutora
Nos anos 1960, a que se refere a parte que não saiu do livro da Simone, e não ficou claro, mais precisamente nos tempos de ouro 1968 a meados dos anos 1970, grandes líderes feministas surgiram, em especial nos EUA, onde a mulher passou a ter o direito a voto já em 1920, seguindo a Inglaterra (1918), e entre elas dois nomes se sobressaem: Betty Friedan (1921-2006) e Gloria Steinem (1934). Essas sim, não pensadoras e intelectuais como Simone de Beauvoir, mas ativistas provocadoras de atitudes em favor da emancipação e dos direitos femininos. Steinem teve aliadas de peso, como a atriz Jane Fonda, e um aspecto sedutor para mulheres e homens: era linda na época. Usando essa condição, conseguiu disfarçada um contrato em bares da revista Playboy, em que viveu e relatou as condições humilhantes e ridículas, e o constante assédio a que as mulheres ali eram submetidas. Seguindo o modelo das americanas, a brasileira Rose Marie Muraro (1930-2014) despontou como líder, e militou nos anos 1970. A partir de 1980, passou a ser perseguida. Mas voltemos ao início, o Enem e Beauvoir, lembrando que o dia 3 de novembro, terça, é comemorado internacionalmente, como o "Dia da Instituição do Direito de Voto da Mulher"! 


Normal o fato de a quase totalidade das pessoas não conhecer o trabalho de Beauvoir: estamos no século da escuridão, e não no século das luzes (18, pré-revolução francesa), ou no 20 das proposições de Beauvoir, Marcuse e outros. Responder à questão implica apenas em um mínimo de bom-senso, mesmo com todas as falhas do texto da prova. Agora, “ideologizar o ENEM”, como querem os radicais das bancadas "da bala” e "da Inquisição”, Bolsonaro e Feliciano, como sendo uma interferência ideológica do governo, é uma demonstração de que o radicalismo e a ignorância imperam e correm sem freios.

Se a questão fez a menina, por má-fé ou sendo usada, tampar o restante do preâmbulo e fotografar o caderno de provas para fazer sobressair sua infeliz anotação “nasci mulher, tenho vagina”, só cabe lamentar. Também não descarto que ela possa ter sido usada. Talvez seja a busca pelos “15 minutos de fama” como preconizou Andy Warhol – e essa fama hoje via redes sociais pode ser até curtida anonimamente, mero prazer. Porém, uniu-se a outros ignorantes e oportunistas na leitura maliciosa do texto. Para apimentar o festival de besteira - saudades do FEBEAPÁ! -, vereadores de Campinas aprovaram, em 28/09, moção de repúdio contra Simone de Beauvoir na prova do ENEM! (Será que conseguiram oficiá-la no cemitério de Montparnasse?).

Revista Forum, 31 de outubro de 2015
Campos Filho (DEM) bradou: “a questão é demoníaca (...) como alguém pode ser homem de dia e mulher à noite?” Colégio e zero nele! Jaírson Canário (SD) saiu-se com essa pérola: “se Deus quisesse que não tivesse diferença entre homem e mulher, teria feito Adão com dois órgãos genitais” (sic). O analfabetismo e a cegueira grassam. Erros de português, de pronúncia, de vocabulário legal (exarar é emitir sentença ou decisão por escrito, e não opinar) macularam o alto status cultural campineiro pela patuscada de seus legisladores. Sem falar no promotor de justiça sorocabano Jorge Marum: “uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não raspa as axilas”. Um promotor de justiça! Onde andam a PGE (Procuradoria Geral do Estado) e a Embaixada da França? Um representante do MP saiu de sua função para atingir uma estrangeira e seu país, onde é um ícone histórico!

Já a redação proposta no exame, “violência contra a mulher”, ou, em geral, "violência doméstica", não tem ideologia nem partido – é sobre crime e ponto. Ter tido o privilégio de ter e poder ler Sartre e Simone em casa e um pai que conheceu o casal em 1960 não me habilitariam melhor para responder à questão do que qualquer leigo preparado para ingressar em uma universidade. É puro conhecimento de história universal e um mínimo de inteligência.


Lembro-me de ter ouvido tantas vezes, em tantos anos de universidade, que, desde a fundação, a USP não se propõe a criar mão de obra para o “mercado de trabalho!”. Se isso acontece, é por decisão do aluno, conquistada por opção e mérito. As públicas devem focar nos formadores de opinião e futuros docentes, que, esses sim, deverão trabalhar com a “mão de obra” nos mais diversos segmentos. Aí entra o ENEM. Com o nível a que estamos chegando, será difícil levar o debate e a discussão de ideias, os questionamentos – daí o sentido mais amplo de uma universidade – em todas as áreas do conhecimento, isoladas ou entre elas: a criação do saber! Apenas lamento que a ignorância tenha atingido profundidade abissal e mostrado que o país está ferido de morte, e, cada vez pior, sem perspectivas de sobrevida inteligente.