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sexta-feira, 13 de novembro de 2015

MARTHA HERR: UM CISNE FORA DA CURVA

Esopo
Canção do Cisne  é expressão que se relaciona a uma despedida, no sentido mais amplo. Diz a lenda que esses pássaros aquáticos entoam uma lindíssima canção ao se verem perto do fim. Finca origens no século 3 a.C., apesar de já haver referências em 6 a.C. Na mitologia grega, o cisne era um pássaro consagrado ao deus Apolo, e, como ele, um paradigma de beleza. Na fábula de Esopo (6 a.C)  O Cisne e o Ganso , o belo pássaro escapou cantando, após ser capturado por engano como ganso. Grego também é Agamemnon , de Ésquilo (458 a.C.), em que Cassandra, que anteviu a guerra de Tróia, canta como um cisne em seu final.
Gravura de Reinier Van Persijn (1615-1668)
Michelangelo: Leda e o Cisne
Michelangelo (1475-1564), 
em seu belíssimo óleo Leda e o Cisne, descreve Zeus, transubstanciado no pássaro, possuindo Leda, rainha de Esparta. E Leonardo da Vinci (1425-
1519) já havia feito sua versão. Isso, embora logo no início a lenda do cisne já tenha sido desvendada pura invencionice - a História Natural  do romano  Plínio, o Velho (77 d.C.), deu fim a ela. Olorum morte narratur flebilis cantus, falso, ut arbitror, aliquot experimentis (resumindo: a lenda do cisne é falsa!), decretou.

Uma obra-prima: O Cisne de Kew Gardens, Londres.
Foto de Beto Binder, com os agradecimentos
Ainda assim, continuou inspirando: o escritor medieval Geoffrey Chaucer e depois seus conterrâneos ingleses William Shakespeare (1564-1616), em  O Mercador de Veneza e Samuel Coleridge (1772-1834). Não é de se estranhar esse apego dos britânicos ao majestoso pássaro aquático: para eles, o cisne é animal sob proteção da Coroa, e desde o século 12 é crime, passível de prisão, apossar-se ou maltratar um deles, verdadeiro símbolo real! O pássaro é também símbolo constante em brasões reais, como os de Jonava, na Lituânia, Horgen, na Suíça, Unterschwaningen, na Alemanha, Buckinghamshire, condado inglês, e, como cisne negro, na Austrália Ocidental.

Montagem de Danse des Petites Cygnes, de Tchaikovsky
Na música, cito o Schwanengesang , um concerto para oboé de 1773 do alemão Telemann, tributo póstumo a Garlieb Sillem, prefeito de Hamburgo.  Já Le Cygne, do romântico francês Saint-Saëns (1835-1921), era o único movimento que o autor achava  ‘sério’ em seu Carnaval dos Animais  (os demais eram troça com personagens e compositores de sua época). O cisne-violoncelo canta com o acompanhamento de um piano, até se esvair no nada. A obra fora encomendada para um solo da prima donna do balé clássico Anna Pavlova, estreada em 1905 em São Petersburgo, Rússia, e por ela repetida mais de 4.000 vezes. Fora seu Cygne, o compositor achava seu Carnaval  “uma  nobilíssima bobagem”, que me parece uma blague como a  “reverendíssima besta”, de Mário de Andrade. (Abaixo, um vídeo raro de Anna Pavlova dançando Le Cygne, em 1910, com acompanhamento de harpa).





Conheci Martha Herr no Encontro de Orquestas Jovens de Tatuí, em 1984, em que fui um dos professores e Martha abordava técnicas de respiração. Em alguns de meus intervalos ia assisti-la, pois respiração é para todos - o grande violoncelista Janos Starker (1924-2013) foi autor de estudos sobre a coordenação entre os movimentos do arco e o diafragma. 


Seguiram-se 31 anos de admiração e amizade absolutamente imaculada. Martha tinha uma erudição incomum em nosso idioma, foi uma brasileira nascida nos EUA. Em comum, também, o signo do Touro no zodíaco. Todo mês de maio, fazia reuniões com seus amigos taurinos, usando o signo como desculpa – curioso:  signe, em francês, soa como cygne , cisne. Desculpa talvez não foi, vai saber se algo em comum estava escrito nas estrelas. Pura diversão: nós, o finado violinista Bruce Mack, a violoncelista Gretchen Miller e outros.

A diva
Na penúltima vez em que Martha esteve em Tatuí, para provoca-la  lembrei a divíssima Bidu Sayão, que havia reclamado a Villa-Lobos que na Dança (Martelo), segundo movimento das Bachianas nº 5, aquele  “cariri” agudíssimo era muito ruim de ser cantado por causa da vogal  “i”. Bidú era da tradição do belcanto, à maneira de seu tempo.

Isabela Autran, Wladimir, Martha Herr e eu. Teatro Procópio Ferreira
Conservatório de Tatuí. Foto: Kazuo Watanabe
Há uma brincadeira que faço com as sopranos, já que Villa-Lobos queria que suas músicas fossem cantadas em claro português brasileiro. Perguntei a Martha se ela tinha problemas com o “cariri”, e então, com a boca bem aberta, aqueles dentes de criança, lascou “o caririiiiiiii” com tamanho volume em minha orelha que parece zunir até hoje.

Martha e as Bachianas Brasileiras nº 5, no Conservatório
Foto: Xpress
Há poucos meses, pedi ao amigo Roberto Tibiriçá, que guarda tudo organizado como colecionador obcecadíssimo que é, que encontrasse uma gravação que fizemos com a Nova Sinfonietta, com ele próprio regendo, no Teatro Cultura Artística (12/06/1988), em que Martha Herr cantava o 2º mvt. do lindo Exultate Jubilate, de Mozart. Pois Roberto, é claro, tinha a gravação! Por ser uma das minhas favoritas interpretações de Martha, e a que mais me tocou nas vezes em que ouvi este moteto, que soa como um verdadeiro canto de alegria (Exultai, Jubilai-vos!), a peça (1777) de Mozart surgiu como gema preciosa para um presente a uma amizade de 31 anos: gravada em fita K7, foi masterizada digitalmente pela nossa Deise Juliana, e então feita uma edição exclusivista, coisa de 3 exemplares.

Para completar o presente, achei por bem uma boa leitura para uma exemplar lutadora como Martha: comprei via Londres um exemplar de The Cloud of Unknowing (em português, A Nuvem do Não Saber, tradução não muito feliz já no título), uma espécie de guia à iniciação à meditação e contemplação de um monge beneditino anônimo do século 13, sequência de exercícios espirituais que levariam, tal qual monges do Tibet (não havia lá muita diferença, no passado, entre práticas meditativas tibetanas e monásticas beneditinas), a um estado contemplativo, de pura abstração: o nada pensar, nada saber, estágio em que se pode observar a perfeição a sentir a proximidade do Superior. Sei que Martha, naquela altura compreendendo mais sua língua nativa – apesar de ter falado português como qualquer um de nós, para dizer o mínimo -, haveria de enfrentar seus momentos de introspecção. Os presentes chegaram a tempo, apesar de as expectativas daqueles dias conspirarem contra nós. Torci pelos Correios e os intermediários que entregaram a Martha minhas lembranças, em mãos. Leu trechos algumas vezes, e pediu que lhe lessem outros tantos, na sequência que o livro propunha. O alívio para o espírito é o bálsamo para a mente angustiada e o corpo – mens sana in corpore sano, diziam os latinos.

Dr. David Chew, OBE
Em comum também é o grande e admirado amigo, brasileiro nascido na Inglaterra, David Chew, OBE, Order of the British Empire – a mesma láurea recebida pelos Beatles -, concessão da Rainha Elizabeth. Chew é um violoncelista e vulcão empreendedor na música brasileira. Com passagem agendada anteriormente, não deve ter sido por coincidência que David pousou em São Paulo, bem pouco antes de ela se despedir. No RICE, Rio International Cello Encounter, que já teve sua extensão em Tatuí, Martha cantou, nesses 25 anos de festival, talvez igual número de vezes a Bachianas Brasileiras nº 5, para soprano e orquestra de violoncelos, de Villa-Lobos, neste evento centrado no instrumento que lhe dá nome, mas aberto a outros, assim como a outras áreas das manifestações artísticas, como a dança. Chew chegou de avião no dia 2 de novembro, indo direto para o hospital. Teve pouco tempo para se despedir da amiga de longos anos. 


Martha foi especialista em música contemporânea e brasileira, dedicando-se, em seus estudos e trabalhos acadêmicos, à pronúncia clara em sua língua adotiva: enorme contribuição, seus alunos e colegas que o digam! (Ver texto acima, na imagem. Crédito: Fundunesp). Com tudo isso, tornou-se cobiçada por nossos compositores, fazendo várias primeiras audições. Participou da estreia brasileira do ciclo completo do Anel dos Nibelungos, de Wagner, no IX Festival Amazonas de Ópera, mas sempre reclamou que era raro ser chamada para grandes títulos de ópera, razão pela qual firmou sua reputação como camerista ou solista de textos de câmara, missas e motetos, além da música do séc 20, uma dedicada especialidade. A última aparição como diva em um palco brasileiro foi na ópera Olga (2006), do nosso ilustre amigo comum Jorge Antunes com libreto de Gerson Valle. Dos bastidores, conheço a cena.

Prof. Dr. Jorge Antunes (Unb), compositor da ópera Olga. Divulgação
Em 2003, provavelmente, recebi Jorge Antunes, de Brasília, e o levei à então sede Orquestra Experimental de Repertório, da Prefeitura de São Paulo. Antunes veio puxando um carrinho de viagem com as três enormes partituras de seu extenso trabalho de dez anos. Contemporâneo de invejável formação europeia, uniu um tema histórico e o repente nordestino ao pai da grande ópera, Richard Wagner, que o inspirou em um lindo intermezzo eletroacústico que cita o prelúdio de  Tristão e Isolda, do mestre alemão. Outra citação é o canto do cisne do  Liebestod  (amor e morte), uma ária de quinze minutos para o ocaso de Olga, tal qual a Isolda de Wagner.
Martha: Olga Benário presa, na ópera de Antunes
Dedicatória
Malsucedida a primeira tentativa, fui ao então Secretário de Cultura, Calil, falar sobre a importância de estrear a ópera. Havia o livro do Fernando Morais e o filme, e raras são as óperas brasileiras. Calil concordou, mas o Teatro Municipal ofereceu um cachê para Martha e Fernando Portari simplesmente inaceitável. Com presteza, Calil logrou quase triplicar os cachês, para um valor digno. Em 14 de outubro de 2006 Olga finalmente estreou no olimpo, o Municipal de SP, sob a batuta de José Maria Florêncio, um especialista em óperas residente na Polônia. No camarim, após abraçar autor e soprano, recebi uma dedicatória, o afago “ao querido amigo e grande músico”, do compositor, e um agradecimento especial da cantora: “Obrigada por ajudar. Beijos, Martha”.

Com tudo o que nos legou como artista, pesquisadora, professora, amiga de caráter exemplar, escreveu uma página da nossa música, dedicando-a sem precisar de autógrafo ao país que adotou. Martha nunca morreu, nem foi o falso cisne da lenda, pois cantou a vida inteira! Apenas não se pode mais assisti-la ao vivo. Mas viva a Martha, que ainda vive cantando dentro de nós.

Olga, ária final, com Martha - Liebestod, segundo Antunes

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