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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

2017 E DOIS SÉCULOS PARA NOS LEMBRARMOS

A ideia de debruçar-me sobre dois séculos antes surgiu da lembrança do saudoso amigo,  compositor Osvaldo Lacerda, que completaria 90 anos em 2017. Metódico e regrado como meu pai, nascido um ano antes, Lacerda era outro obcecado por sua obra e nada, nada mais. Mandava-me bilhetes, cartões e lembranças, ora dizendo que fazia duas palavras cruzadas diariamente a conselho médico, durante o desjejum, para manter a memória em bom estado, ora elogiando-me o trabalho em Tatuí empenhado pelo cururu, fenômeno musical em forma de desafio do Médio Tietê, do qual ele era grande admirador.

Serão 110 de nascimento do tieteense Mozart Camargo Guarnieri, cujo prenome não foi obra do acaso, já era um gênio predestinado desde o berço. Um de nossos mais profícuos compositores, discípulo de Mário de Andrade, coerente em sua fidelidade à música nacional mas sem deixar de explorar com extremo bom gosto a própria modernidade, Guarnieri trabalhou sempre apegado à sua raiz brasileira. Para mim – e para muitos -, foi o maior compositor do país. Um artista com um domínio da escrita musical incomparável, dono de uma técnica completa, como a dos grandes mestres universais. Infelizmente, ainda não é reverenciado à merecida altura.

De 1897, há 120 anos, Francisco Mignone, também regente e pianista, mestre dos ritmos brasileiros, era dono de uma impressionante técnica composicional. Estudou em Milão e teve sua ópera O Contratador de  Diamantes estreada por ninguém menos do que o grande Richard Strauss (compositor de Assim Falou Zaratustra, Don Quixote e Don Juan) à frente da Filarmônica de Viena. Como ele, Lorenzo Fernandes, outro ícone brasileiro, faria 120 anos. A suíte Reisado do Pastoreio é sua obra mais conhecida, e o Batuque da peça é tocado em todas as orquestras do mundo, obtendo elogios e reverências dos grandes Sergei Koussevitzky, da Sinfônica de Boston, e o gênio italiano da batuta, Toscanini. É um passaporte carimbado e tanto para um artista!

A revolução bolchevique de 1917
Fatos importantes também aconteceram há 100 anos: a revolução mexicana, que trouxe uma constituição digna, a visão de Nossa Senhora a três crianças em Fátima, Portugal, fez daquele ano de 1917 uma data-símbolo da Igreja Católica. Na Rússia, Trotski e Lenin tomaram à força a cidade de São Petersburgo - depois, chamada Petrogrado e, durante o regime soviético, Leningrado, homenagem ao líder da revolução. Em São Petersburgo, iniciaram a conquista do enorme país. Os czares haviam sido defenestrados, e o sonho de uma sociedade igualitária a ser instituída pela ditadura do proletariado, um dos pilares de sustentação da “sociedade sem classes” custou milhões de vidas e demorou décadas para ruir.

Vendo que o povo russo, em especial os campesinos, não cedia à tomada de pequenas propriedades para propriedade do estado, que controlaria a produção, houve incontáveis vítimas, um dos maiores genocídios da humanidade. Foi pelas mãos de Stalin, a partir de 1922, que foram trucidadas milhões de pessoas. A teoria de Marx e Engels, ao lado de Lenin, mostrou-se inviável na prática: cálculos e hipóteses históricos não são ciência exata. Com a morte de Stalin, chamado “guia genial dos povos”, o regime foi-se enfraquecendo, e já se esmorecia, a partir de 1956, sob o comando de Khrushchov, que iniciou o processo chamado “desestalinização”, ou seja, apagar os estragos de Stalin. Ainda assim, somente em 1988, com a memorável queda do muro de Berlim, o comunismo do “socialismo real” instalado na ponta de baionetas e sob o estouro de canhões começou a sucumbir de vez.

Há cem anos, também, nascia Jânio Quadros, folclórico e trôpego, de fala pretensamente erudita e muito pedante, com cuja renúncia à Presidência, em 1961, tentou provocar o apoio das forças políticas – e, claro, militares - para um retorno nos braços do povo, para governar com grande poder contra as “forças ocultas”, como ele dizia. Sua renúncia abriu espaço para a ascensão de seu vice, João Goulart, de inspiração sindicalista, cujo famoso discurso da Central do Brasil – hoje light, se comparado aos de governos recentes – foi o estopim esperado para o que viria pouco mais de 15 dias depois, com o golpe de 1964. Recrudescido em 1968, o regime marcou algumas das páginas mais negras de nossa história.

Também em 1917 os EUA declararam guerra contra a Alemanha, ampliando com grande impulso o primeiro grande conflito mundial, uma guerra que desde 1914 envolvia países da Europa, o que fez avolumar-se o conflito, matando muitos milhares de pessoas e espalhando pânico, ameaçando economias e levando o mundo a enorme instabilidade.

Há 200 anos, nascia o poeta, filósofo e abolicionista Henry David Thoreau, polêmico autor de teorias sobre desobediência civil, um pré-anarquista. Tornou-se um eremita e morou em uma diminuta cabana em Walden Pond, Massachusetts, que é um belíssimo lago com parques cuja "praia" eu, com meus amigos de Boston, usava como paraíso para lazer nos finais de semana.


De 200 anos até 2017, nasceram e morreram gênios, líderes e ditadores, deflagraram-se guerras e revoluções, mas o mundo parece ainda muito longe de conquistar sua “maioridade” e juízo. Hoje há progresso tecnológico e científico crescendo em proporção geométrica, mas as conquistas democráticas e sociais parece pouco prosperarem ou, quando o fazem, é de forma bem mais lenta e sujeita a revezes e retrocessos. De 2016 não se há de guardar muitas esperanças, restando dar nosso quinhão e trabalhar para que 2017 seja um ano que o Brasil e todos os povos merecem. Se não for, daremos uma meia-volta que atrasará o curso já tortuoso da história. 

domingo, 18 de dezembro de 2016

ENTREOUVIDO EM NEW YORK

Ou “Quadros de uma Exposição”

Garota 1: “ Essa guria tem uma visão miserável dela mesma”. Garota 2: “Mana, é só a cara dela”. Garota 1: “Hã?” (no Lincoln Center). Rapaz 1: “Quê que tu acha desta camisa nova?” Rapaz 2: “É boa pra cacete. Compre outra igualzinha e jogue as duas no lixo” (Hudson Hotel, West 58th Street). Balconista: “Amor não é amor que se altera quando encontra alteração”. Rapaz: “Como é que é?” Balconista: “Eu estava lendo a etiqueta do saquinho de chá”. Rapaz: “Você lê muito etiquetas de saquinho de chá?” Balconista: “Às vezes elas têm algo importante a dizer” (Deli, 51st Street).

Morgan Friedman, jornalista, é formado pela Universidade da Pensilvânia, e Michael Nalice é escritor e um dos mais lidos bloggers do jornal Daily News. São os criadores do site overheardinnewyork.com (visite!) e autores de “Overheard in New York”, publicado pela Roadside Amusements (Penguin), NY, um retrato cáustico mas saboroso do povo novaiorquino, com todas as suas maluquices, gírias, graças, palavrões e diálogos pornográficos impublicáveis aqui. Saíram pelas ruas, metrôs, táxis, bares, lojas, para captar e gravar não fantasias, mas o que realmente se ouve no dia a dia da Big Apple, como é conhecida a cidade. Quem já pôde passar algum tempo lá constatou o mesmo tipo de sandices e abobrinhas do multifacetado povo local.

Adicionar legenda
Um lugar onde se misturam africanos, paquistaneses (quase todos motoristas de táxi), indianos, judeus ortodoxos, burcas, quipás, negros, orientais, latinos, os peculiares porto-riquenhos e índios é um caldeirão efervescente do rico cotidiano da cidade, tida como a mais cordial do mundo (assino embaixo). Cumprimenta-se até poste, como se diz. “Como passou esta noite?”, ou “tenha uma boa noite de sono” são frases ditas para desconhecidos na porta de um hotel, no elevador ou saindo na rua.

“Comecem a espalhar a notícia / estou indo embora hoje / eu quero ser parte dela / New York, New York”, de Ebb e Kander, imortalizada na voz de Frank Sinatra (“eu quero acordar / em uma cidade que não dorme”). A música tornou-se um dos símbolos da cidade, e inspira também tema de Simon & Garfunkel e dezenas de outros cantores e compositores. NY é o lugar do possível e impossível, as ruas são a exposição de um verdadeiro show de seres humanos de todos os tipos, dos mais variados aos mais loucos. Uma cidade para se sentir livre, onde há ruas e bairros para todas as raças e etnias, fora cadeirantes, idosos em idade avançada e muitos cães (mas cuidado: se você não limpar o poopoo do seu cachorrinho a multa é alta), tudo uma eterna festa.

Se você vai viajar, esqueça Miami, vá a NY, leve o tênis mais velho que tiver porque senão vai sofrer, ande a pé e quando muito metrô, esqueça os táxis, que sobram. Na última vez em que lá estive, fui da 1st Street, centro das finanças, até a 34th, Madison Square - “apenas” 33 quadras! Parando aqui e ali, lembrei-me de “Quadros de uma Exposição”, obra-prima de Mussorgsky com maravilhosa orquestração de Ravel, em que entre a descrição musical de cada quadro há um ‘passeio’ (promenade) para o próximo. Isso é andar em Manhattan! Pena que hoje não conseguiria mais tal proeza de andar tanto, isso foi há sete anos, e as pernas agora já não são as mesmas.

Garota 1: “Oh, meu Deus, Brad Pitt é tão idiota!” Garota 2: “Eu sei, ele nunca devia ter deixado a Jennifer”. Garota 1: “Não, eu quis  dizer que ele não vê que tá na cara que aquele bebê não é dele” (banca de revistas da Penn Station). Rapaz na fila de garotas no banheiro feminino: “Ôaaa”. Garota: “Ei, você não pode entrar aqui!” Rapaz: “Tudo bem, eu sou sueco – sou praticamente gay” (sic) (Madison Square Garden). Yuppie 1: “E só fui ao Brasil por um mês. Mas no terceiro dia eu a encontrei”. Yuppie 2: “Mulheres na América do Sul são tão sensuais! Especialmente Brasil e Espanha!” (Cervejaria belga, West 4th Street). Cliente: “Este banner vai ficar aí pra sempre?” Caixa: “Sim, um pouquinho mais”. Yuppie 1: “Eu estava ensinando meus alunos método científico”. Yuppie 2: “Ah, então você os ensina indução e dedução?” Yuppie 1: “Os alunos não são tão inteligentes, então eu não os ensino palavras longas como essas” (festa no Upper Side West). Rapaz: “Eu quero te convidar para um ‘Dirty Sánchez’. Garota: “É melhor que isso seja nome de bebida!”. Rapaz: “Credo, mas é!”

O belíssimo Central Park
Isso tudo você pode ouvir enquanto visita alguns dos lugares mais fascinantes do mundo, um turbilhão de cultura de todos os cantos, além da Estátua da Liberdade, o Museu de Arte Moderna, o Central Park (ali em frente fica o prédio Dakota, onde Lennon morava e foi estupidamente assassinado). Vá ao Rockefeller Center, Radio City Music Hall, Carnegie Hall, Museu Guggenheim, Lincoln Center, Times Square, Museu de Cera Madame Tussauds, Broadway e uma interminável e preciosa mostra de toda uma civilização. É cultura em um volume que chega a cansar ao final de cada dia. Comida do mundo inteiro, calçadas largas, a cidade dotada de segurança do mais alto preparo, hoje consolidada graças ao trabalho do ex-prefeito Rudy Giuliani. E mantenha os ouvidos abertos onde quer que esteja, você vai se divertir, dentro de um carrossel para se ver, ouvir e comer. Vá entreouvindo também o grande número de besteiras do cotidiano, como atestam Friedman e Nalice, neste livro ou no site que o mantém vivo e em constante atualização! (Aproveite para ouvir abaixo a interpretação histórica de Sinatra)








domingo, 11 de dezembro de 2016

“I LOVE YOU, BOBÔ”


Tommy - nasci assim: sonhando,cabeludo e sorrindo (foto Beto Binder)
Quem já teve oportunidade de ouvir algo assim sabe do que estou falando. Minha filha Marta, que mora em Londres, sempre manda fotos, filmes e gravações do Tommy, meu netinho de dois anos e meio. Seja deitado na relva, subindo em um brinquedo, espalhando uma pilha de lindas folhas secas de maple no chão – é outono! -, cada dia um, ou melhor, vários afagos.

(Foto Beto Binder)
E dá para rir muito: disse, em inglês, “não é ‘uórer’, mummy”, imitando o sotaque americano da mãe, “é ‘uótter’”, com puro accent britânico. Mas é preciso estar atento para as traquinagens, há perigos à espreita até dentro de casa. Francamente, pensando em Londres, parece que há mais perigos em casa mesmo, ruas e parques, locais de brinquedos são ótimos e muito bem cuidados. (Mais adiante falo o porquê de ter escolhido falar do Tommy).

“Filhos, melhor não tê-los. Mas se não os temos, como sabê-los?”, disse o nosso ‘poetinha’, Vinicius de Moraes, em um bordado inteligente de palavras simples, como só ele sabia costurar com beleza. Mas nós que os temos sabemos, e todos os que os tiveram sabem a grande cota de recompensa que vem junto com essas criaturinhas maravilhosas. E são para sempre, onde quer que estejam no mundo – em São Carlos, São Paulo, Londres ou Seattle, como no meu caso -, serão sempre crianças, tamanho não é documento para filho.
(Foto Beto Binder)
Mas falo de outra categoria, os netos, que estão em outro andar. Há quem diga que neto é “filho com açúcar”, figura de linguagem adocicada para essas figurinhas. Outros pensam que o neto é como o filho, mas vovôs na verdade só ficam com o “filé”, não “roem o osso” como os pais – salvo exceções. Pode fazer, com vovô pode tudo, viu? Ganha tudo, e manda tudo para o coração do vovô. Tudo retribuído com sorrisos, depois, de volta, regiamente com beijos e doces. Filhos e netos só têm uma coisa em comum: se bem cuidados, bem educados, só trazem alegria. Mas, como disse, ambos, nossos filhos e nossos netos, estão em ‘compartimentos’ diferentes. É como o amor pelos pais, nada a ver com o dado aos filhos. Os meus amam o Tommy, figura única e adorada, que veneram de paixão, uma paixão desmesurada, um mimo só. É o “reizinho” da família, e todos juntos curtimos ser súditos dele.
Willesden Green
Os antepassados traçaram nosso caminho, nós traçamos os de nossos filhos e eles os de nossos netos, e as marcas de cada um estão de todos os lados. No meu caso, dois brasileiro-americanos, cada um em um continente, dois paulistas, filhos de pai mineiro, e um neto londrino, da aprazível Willesden Green. Canta o Chico, em Paratodos: “O meu pai era paulista / meu avô, pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô baiano...” (E ele mesmo, carioca). Esses traços são fundamentais na composição, na moldagem de uma personalidade e nos rumos marcados no passaporte da alma de uma família rumo ao seu destino. Entendê-los e compreender seu papel é essencial, pois, de uma forma ou de outra, são eles que levarão meu sobrenome adiante, de minha parte. Eu lhes passei o de meu avô que o deu ao meu pai, e que assim prossiga nas próximas gerações, ao menos enquanto as proles se repetirem.
(Foto Beto Binder)
Tommy é um menino extremamente carinhoso, muito inteligente, precoce, o que não faz dele uma criança diferente das outras (todos igual / nada es mejor – Gardel). Saudável até demais, apronta, faz suas molecagens, beija as menininhas, e eu brinco dizendo que ele um dia vai ganhar um bolsa para estudar na escolinha da Charlotte, filha de Kate Midleton, para a família sair do sangue barato (“o que usamos tem pouca tinta”, cortou fundo na carne o Severino do mestre João Cabral) e finalmente entrar na realeza do mais requintado sangue azul (isso é anedota familiar, claro).

Guarda da Rainha pronto para a troca, cookie na mão
Tommy é fã de uma chuva, água, poças d’água, guarda-chuvas, sol, rio, piscina e praia, como todas as crianças sadias. Vê-lo evoluir é como ver um filho crescer de novo, só que com outros óculos, pois que é outra dimensão. Apesar de sermos “pais de aluguel”, como se diz, somos figuras de proa na imagem do neto.

O ator negro norte-americano James Earl Jones disse um dia – e dá pra entender o porquê logo adiante - “cada vez mais, quando eu procuro a pessoa que mais me inspirou, eu volto ao meu avô”. E era pura verdade! O pai de Jones abandonara a família logo após seu nascimento. Claro que o papel maior de figura masculina em sua vida tinha de ser do avô. Isso, para vermos que ser avô é nunca imaginar-se pai, a não ser por algum acidente de percurso seja preciso fazer o papel de um, mas sobrevoar, fazer-se presente, sempre, onde quer que esteja (inexistem distâncias nas medidas do amor), sua lembrança fica na mente da criança. E isso vale para todos nós, avôs.
Resolvi cuidar de um tema tão leve, tão doce, pois ao escrever sobre assuntos como Trump, Brexit, corrupção, crise institucional e política, inevitáveis – e o dia a dia de uma pessoa que se quer consciente exige essa prática constante -, à parte tristezas profundas como a da Chapecoense, agora nos aproximamos de um final de ano em que a esperança vem convergir para nossas famílias, estejam os filhos e netos cá ou lá, e para o bem de todos os brasileiros.
Com tanto desgaste, todos estamos esperançosos por novos tempos para nossos filhos, netos e as gerações futuras, poderem ser mais felizes. “A paz e a felicidade só se encontram na luta constante”. De nós depende fundamentalmente colaborar para que os dias vindouros de cada um deles sejam melhores. Basta que cada um cumpra com a sua parte, que ao menos coloque o seu grãozinho na areia.
“Love you too, Tommy!”

(Foto: Beto Binder)



domingo, 4 de dezembro de 2016

MAU PRESIDENTE

SUGESTÃO DE LEITURA PARA DONALD TRUMP

Bad President (ROSEN, PRITCHETT & BARRET. NY: Workman Publishing, 2006), infelizmente sem tradução para o português, é uma análise da gestão George Bush que traz séria advertência na capa: “Cuidado! Pode vir com doloroso humor político”. Isso, apesar de ser um texto cuidadosamente escrito, baseado em fatos, com todas as devidas fontes ao final. No Brasil, algo similar poderia ter sido escrito pelo irreverente Stanislaw Ponte Preta (heterônimo de Sérgio Porto), autor de “FEBEAPÁ – O Festival de Besteira que Assola o País”, sobre alguns de nossos ex-dirigentes.

No livro, avisam os autores logo na introdução, as citações são documentadas fielmente, cautela  para quem vai mexer com peixe graúdo. Após cada parte anedótica, vem a crítica: “A triste verdade”. Citam, ao final, organizações reputáveis, entidades de pesquisa, registros governamentais e decisões judiciais. Explicam também que não acham a gestão Bush assunto para rir. Por isso mesmo, teriam escrito este livro de humor sobre o assunto. Pensam eles que o desmascaramento de homens e mulheres no poder, coisa fácil de ser feita, é um “prêmio de consolação” em uma democracia, um afago, ao menos.

Juíza Sandra Day O'Connor
Bush era tão alucinado que pensava que poderia prender estrangeiros nacionalizados ou mesmo americanos natos sem processo judicial, inclusive mantendo pessoas incomunicáveis, se necessário. A conhecida juíza Sandra Day advertiu que “a história e o senso comum nos ensinam que um sistema desses – o ‘estilo Bush’ - carrega o potencial de ser um meio de opressão” (cautelosa, como convém a uma magistrada da Suprema Corte americana).

Rumsfeld
Meses antes da invasão do Iraque, o chefe das Forças Armadas disse ao Secretário da Defesa Rumsfeld que estimava que o controle daquele país necessitaria entre 300 e 400 mil homens. Rumsfeld, que não tinha experiência alguma sobre guerra no solo, disse que era um “chute” e achava 140 mil suficientes. Foram necessários oito anos de guerra, mesmo com o apoio de homens do Reino Unido, Austrália e Polônia.

Discurso a bordo do USS Abraham Lincoln (atrás, "Missão Cumprida")
Porém, já em maio de 2003 – oito anos antes do fim da guerra e a apenas dois meses e meio de iniciada -, Bush, a bordo do porta-aviões USS Abraham Lincoln, discursou, blefando para a tripulação, os americanos e o mundo. Declarou que a guerra havia terminado, e que os EUA teriam saído vitoriosos (uma faixa enorme atrás dizia “Missão Cumprida”). Apesar de toda essa verborragia ufanista, o conflito só terminou muitos anos depois.

Tortura e diversão em Abu Ghraib
A Suprema Corte americana denunciou violação das leis americanas e da Convenção de Genebra. O juiz John Steven cita violações à dignidade humana e submissão de prisioneiros a tratamento sádico, cruel e degradante, a exemplo dos surreais abusos e torturas na prisão de Abu Ghraib, sob as vistas grossas do Secretário da Defesa Donald Rumsfeld.

Montagem sobre "A Criação" de Michelangelo e Bush, "o predestinado"
Bush tinha visões de que era um predestinado, uma bênção divina para o mundo. Seriam alucinações ou golpe de marketing? (Vale ler também The Bush Dyslexicon). Durante sua primeira corrida para a presidência, disse ao pastor evangélico James Robinson, para que ecoasse pelo país, “eu sinto que Deus me quer candidato à presidência. Eu não poderia explicar, mas eu sinto que meu país vai precisar de mim. Eu sei que não será fácil para mim e minha família, mas simplesmente Deus quer que eu siga”. “God’s greatest gift”, diz-se nos EUA das pessoas prepotentes e soberbas que se acham ‘o maior presente de Deus’.

A imponente US Supreme Court
Sentindo-se onipotente pelas mãos divinas, no começo de 2002 Bush determinou à Agência Nacional de Segurança (NSA) que se embrenhasse em espionagens mesmo sem mandado judicial, de telefonemas entre americanos e estrangeiros naturalizados ou residentes. Não havia resquício de legalidade nessa ordem, mas como o Presidente dos EUA detém até o poder unilateral de decisão sobre uma guerra, e Bush se sentia abençoado, esqueceu-se – e depois se complicou – do FISA (Ato da Inteligência para Vigilância de Estrangeiros, de 1978), que aprova, em raros casos, a espionagem doméstica em nome da Segurança Nacional. O fato ficou de ser julgado pela Suprema Corte, que anos depois condenou a atitude de Bush - mas não o puniu.

Assim, aos trancos e barrancos, aos gritos e asneiras, na truculência e ao arrepio da ordem e das leis americanas e acordos internacionais, Bush, alvo de anedotas e medos, governou os EUA. Foi uma experiência terrível que não deveria se repetir.

Seu clone (piorado ao quadrado), Donald Trump, vai governar a maior nação do planeta com ideias radicais, protecionistas, xenófobas e muito mais truculentas do que seu colega republicano, com o apoio da extrema direita e grupos racistas inspirados em tempos medievais, como o Ku Klux Klan. Pensa em coisas mirabolantes como um muro colossal e o controle dos cidadãos, e terá, para esses sonhos alucinados, a maioria branca a apoiar. Alvos serão os latinos, negros e os de fé islâmica que até hoje têm convivido em paz dentro dos EUA. E mesmo as mulheres.

O problema é que terá, para seus delírios de poder, mais e mais possantes armas do que Bush e muito mais determinação e convicção, brincando com o mundo. Voluntarioso e acima de tudo e todos, leva nas mãos o totem sagrado para os americanos: segurança. Mas não ouve além de seu próprio ego (“Trump ignora briefings da Segurança Nacional”. Estadão, 25/11/2016, A13). Qualquer movimento brusco dele pode significar um golpe na economia mundial e na paz. Deveria ler Bad President. A tristeza é que a ele não caberá um livro no mesmo tom anedótico que os de Bush.


domingo, 27 de novembro de 2016

GÈZA KISZELY

Figura musical que todos deveriam ter conhecido

O povo judeu teve entre suas grandes habilidades, em sua trajetória nômade, o comércio e a música. Quanto ao primeiro, bastaria lembrar que, fincados na Holanda, de lá foram para os EUA – “Uma Nação de Imigrantes” título de um dos livros de John Kennedy, quer Trump goste ou não. Lá, fundaram New Amsterdam (1624), em homenagem à capital holandesa, depois New York, após a invasão inglesa (1664), e hoje é o centro do negócios do mundo (pois teriam ficado no Brasil, com Nassau, se não fossem expulsos).

Outra habilidade, a música, tem uma lista interminável de estrelas, em que predominam instrumentos de arco - o violoncelo de minha filha, que mora em Londres, pertenceu a Paul Wisa, que fugiu da Alemanha e dos horrores nazistas, a pedido do pai, levando consigo naquele cello as economias da família, à procura de um lugar no mundo com o instrumento a tiracolo. Nos campos de concentração os violinos eram tolerados porque, apesar das atrocidades, os soldados eram grandes apreciadores de música clássica, inclusive o próprio Hitler. Com isso, ao lograrem escapar ou serem libertados, às vezes conseguiam levar consigo seus violinos. A maioria dos grandes virtuoses do instrumento, e mais ainda depois da II Guerra, é de origem judaica: de Milstein a Heifetz, de Perlman a Zucherman.

Antigo prédio da Fefierj
No Brasil, para onde a família Kiszely imigrou, o pequeno Gèza era conhecido como George, nome mais fácil. Foi um violista e violinista da mão cheia, tocou em muitas orquestras brasileiras, inclusive o Municipal de SP. Eu o conheci em 1972, quando fui estudar na Fefierj, hoje UniRio, onde ele era professor de História da Música e História da Arte. O diretor da Fefierj era um general, interventor nomeado nos macabros tempos do Médici. Pois foi em uma aula do Kiszely, com slides projetando instrumentos indígenas, que vi mais um exemplo da ignorância que nos assolava.

Abre a porta e entra o general Jayme Ribeiro da Graça, o diretor – hoje atitude inaceitável, intromissão dessas em sala de professor! -, que em determinado momento se levantou e começou um discurso bizarro, dizendo que flautas de osso eram coisa pré-histórica, pois a arte evoluiu (sic), hoje havia instrumentos como as flautas de prata, “infinitamente superiores”, e por aí vai.

O mundo deu uma volta, retornei do exterior anos depois, e, por ironia do destino, em 1989 tornei-me diretor da Escola Municipal de Música, onde Kiszely era professor. Falava, e como falava. Um dia lhe perguntei como vai, como está a vida, esperando uma breve resposta. Ouvi “minha mãe, quando veio da Hungria, nos pedia para vender pães para ajudar no sustento”, e daí desenrolava a saga de sua vida. Orgulhoso de sua excepcional memória, chegava a detalhes absurdos. Certa vez, eu ia fazer uma reunião com alguns professores, e ele contou para a excelente Laís Kauffman, já com certa idade mas, claro, vaidosa, que a viu tocando ainda criança, com um lacinho de tafetá, castiçais do piano acesos, ela com uns doze anos - e isso foi em mil novecentos e... disse, com precisão. A memória prodigiosa o traiu: Laís levantou-se, furiosa, xingou Kiszely e foi embora.

Sede da velha Oficinas Três Rios
Lecionamos juntos nas Oficinas Três Rios, embrião da ULM-Tom Jobim, hoje Emesp, co-irmã do Conservatório de Tatuí. Pegávamos o metrô, na saída, e certa vez Kiszely convidou-me para tomar alguns drinques. Paramos em um bar, e ele também pediu salgadinhos. O tempo passou e a certa altura a conta já estava salgadinha como o torresmo. Veio a nota, e discutimos sobre o porquê de ele não querer me deixar dividi-la. Foi enfático, e naquela altura, já alegre, confidenciou-me que o fardo de ser judeu lhe era bastante pesado, por isso tinha o costume de pagar todas as contas, para que ninguém o acusasse de mão fechada. Disse que se sentia bem com essas gentilezas, o sentimento atávico de culpa lhe parecia amenizar com isso.

Casou-se em segundas núpcias com sua sereia do rio, Yara, violista, com quem formou um quarteto de cordas. Em meu segundo casamento deu-me de presente uma bela apresentação do grupo. Bufê simples, só para familiares e amigos, mas claro que foi ele quem pagou ao seu pessoal pelo mimo que me dera.

Teatro Santa Isabel, Recife
E contava tantas histórias, mas eram tantas! Uma delas logo me vem na cabeça: Ele, que chegou a morar no Recife, contou-me uma folclórica sobre um recital do lendário virtuose Jascha Heifetz – sim, ele mesmo -, em 1931. O Teatro Santa Isabel segue os padrões e gostos franceses, cultura impregnada na vida recifense. Ainda não existia ar condicionado, e como o calor era enorme certa época do ano, havia algumas aberturas na parte superior, para que o vento refrescasse um pouco a sala.

O lendário Jascha Heifetz
Pois mal Heifetz começou a tocar, um dos ilustres visitantes contumazes do teatro, um morcego, entrou por uma abertura, tirou um voo rasante do gênio do violino, que parou e gritou, em inglês mesmo, “ou eu ou o morcego”, exigindo que os ingressos fossem devolvidos. Tiraram o público, e prometeram expulsar o invasor. Uma hora depois, Heifetz e plateia estavam a postos, e o virtuose terminou o recital profissionalmente, mas seco e frio.

Anos depois, um certo violinista, catedrático da Escola Nacional de Música do Rio, foi fazer um recital no mesmo teatro e lá veio um morcego em rasante. O solista, aproveitando a deixa do mito Heifetz, parou e gritou: “ou eu ou o morcego”! - ao que o público, em coro, bradou “morcego, morcego”. Fim do show.
Kiszely nos deixou em 
2010, mas dos momentos mais divertidos na carreira vários passei com ele.

Violino e viola


domingo, 20 de novembro de 2016

PAI, O ESPELHO DE UM FILHO

Acredito que grande parte da insatisfação e frustração na vida de um filho se deve ao mau exemplo dos pais, especialmente a figura paterna. É natural que o filho quer ser realizado materialmente na vida, mas que tenha a parte financeira como secundária: inverter valores é sempre perigoso. O filho quer se espelhar desde cedo no pai, de pater, que também quer dizer terra, de onde pátria, e essa ligação é tão forte quanto esse simbolismo.

Quem há de se orgulhar de um pai pilantra, corrupto, desonesto, falso? Ora, claro que somente o filho que nele se espelha, e acha que a vida é mesmo regida pela Lei de Gérson: “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Até a personalidade sem rumo do filho de um bom pai pode ser desviada pelas trilhas obscuras da vida, ele se torna pródigo mesmo sob o teto paterno.

Meu avô paterno, Autran Dourado
Minha mãe teve um pai herói, constitucionalista preso e deportado pelo Getúlio, embora detestasse todas as histórias sobre aqueles tempos que passou, ainda criança, longe dele quando mais precisava, tinha ojeriza pelo assunto. Mas, dentro de si, guardava o pai-herói em segredo. Meu pai também foi contemplado com o dele, que começou juiz de direito na pequena Monte Santo de Minas – terra também de Ruth Luz, falecida em 2010, que foi professora do Conservatório de Tatuí e autora do hino da cidade. Meu avô chegou a desembargador em Minas e depois a ministro de Tribunal Superior no Rio. Foi seu pai-herói quem lhe deu o norte, a bússola, e, como diria o Gil, “régua e compasso". 

Biblioteca
Garimpando o imenso acervo de mais de 2.000 peças que, juntamente com os 5.000 livros, pelo testamento de meu pai, vai para a Biblioteca da UFMG, minhas irmãs, no Rio, vêm pescando alguns textos preciosos, que fazem crescer o orgulho e a admiração pela figura paterna – e os efeitos são vivíssimos, mesmo posto que sem a presença dele. Desde discursos para JK a coisas escritas para não serem publicadas, como uma carta pessoal para o Carlos Drummond, um desabafo contra a censura – na qual eu, surpreso, descobri-me citado e elogiado (havia dito a ele que “deveria ter orgulho de ter sido censurado”, e que eu me orgulhava disso também!).


A carta, que só não é auto-incendiável como em filme de ação de Hollywood, era para ser guardada por ele e pelo poeta, confidencialmente, e somente entre eles. Havia nela menções a alguns patrulheiros da literatura, figuras às vezes proeminentes, e até dedo-duro do regime de certa academia, pela qual ele não morria de amores (teria sido essa uma das razões?). Foi um desabafo, e, assim como a conversa tida com Drummond pela manhã, segundo escreve logo ao início, deve ter havido outra ou outras, mas confidência era confidência, de confiar (confidere, em latim), portanto morreria entre os dois. Mas meu pai não a jogou fora. Será que a deixou bem guardada para os filhos um dia terem um retrato do que passou na vida naqueles duros tempos?

Chegada de Eisenhower: croquis
Detalhes da segurança na visita de Eisenhower ao Brasil, recepção ao grande escritor André Malraux, que veio em nome de De Gaulle, discursos como ghostwriter, tudo é historicamente fundamental. Mas o que tem chamado a atenção – e me atraído, nessas descobertas -, talvez tenham sido, mais ainda agora, alguns escritos quase didáticos sobre a arte de escrever, tudo organizado em blocos, alguma coisa talvez publicada na imprensa e muitas inéditas. Entre esses textos, “Dois tipos de romance”, “Realidade e alienação do romance”, “Romance e personagem”, “Técnica narrativa e erros gramaticais” e “Um aprendizado literário e sentimental”, nota-se a preocupação com o didático, e isso valia para quem fosse ler ou para ele mesmo refletir, o que sempre é um meio de se autoaprimorar.

Publicou livros como “Uma poética de romance” (1973), “Uma poética de romance: matéria de carpintaria” (1976), “O meu mestre imaginário” (1982), “Um artista aprendiz” (2000) e “Breve manual de estilo e romance” (2003). Os que se aventuram nessa arte têm nesses escritos relatos da experiência de um homem que publicou seu primeiro livro aos 19 e escreveu até onde a saúde, já complicada, o permitiu. Leu e releu de tudo inúmeras vezes (ao final, vão restar-lhe apenas seis ou sete, disse um dia), de Machado a Bandeira, de Cervantes a Proust e de Faulkner e Joyce, sempre que possível no original.

Era um autor sistemático, metódico, que dizia não acreditar em inspiração (soa como “sopro divino”), mas em ideia súbita: uma vez surgida ‘do nada’, sabe-se lá se por associação, um objeto, uma palavra, uma relembrança dos seus tempos de criança até os 17 anos na pequena Monte Santo, começava a rabiscar notas (taquigrafia espanhola, mais rápida, dizia) em pequenos cartõezinhos, claros como hieróglifos, para mim. Em determinado momento, as anotações já eram a arquitetura de um livro pronto, era hora de começar o trabalho braçal de desenvolvê-lo na velha máquina de escrever. O horário era certo e sagrado, questão de método mesmo, e não apenas por causa do seu ganha-pão como funcionário público, que lhe permitia escrever. Curioso, segundo meu amigo Antonio Ribeiro, que foi aluno de composição do Camargo Guarnieri, mestre maior, é que o gênio de Tietê pensava da mesma forma: inspiração? Sentar e começar, trabalho duro, trabalho metódico.
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Nunca pensei em ser escritor um dia, apenas escrevo, mas tenho aprendido essas lições como as outras, de vida, que já carrego como a melhor herança. Tudo isso forma um retrato completo, e, como meus avós foram para meus pais, faz dele o meu espelho e herói.