Seminário da Prainha, Fortaleza |
No dia 7 de
fevereiro de 1909 nascia, em Fortaleza, um menino mirrado, como tantos de sua
gente. Um entre apenas oito sobreviventes de treze irmãos, via em seu pai, João
Eduardo, dramaturgo amador e jornalista, a paixão pelas letras, compartilhada
por sua mãe, a professora Adelaide Câmara. Ela percebeu, logo cedo, que o
menino Hélder tinha algo especial, que o diferenciava de seus amiguinhos.
Talvez pensasse como na linda Gesú
bambino, de Lucio Dalla (versão brasileira pelo Chico): “minha mãe não
tardou a alertar toda a vizinhança / ao notar que eu estava bem mais que uma
simples criança”.
Aos quatro anos,
revelou sua devoção a Deus e aos catorze sua vocação inequívoca para o
sacerdócio, ingressando no Seminário da Prainha, de Fortaleza, onde além das matérias
regulares dedicou-se à teologia e obras dos grandes pensadores. Passou a ajudar
causas de mulheres e homens pobres e trabalhadores, assumindo seu papel de
missionário, e tornou-se um batalhador da educação, causa pela qual lutou com
especial afinco (tinha na memória sua mãe, sempre dividida entre a prole, os
deveres domésticos e o magistério).
"Anauê", saudação da AIB |
Depois de mudar-se para o
Rio de Janeiro, foi seduzido pela Ação Integralista Brasileira, de Plínio
Salgado, com seu falso bordão “Deus, Pátria e Liberdade”. Afastou-se quando viu
o movimento assumir contornos político-partidários inspirados em Mussolini até
na saudação, o Anauê, braço levantado
como os soldados das milícias fascistas. Foi ordenado Bispo Auxiliar do Rio com
apenas 43 anos de idade.
Helder e Monsenhor Montini no Brasil |
Com
o apoio do Monsenhor Montini, depois venerável papa Paulo VI, obteve a
aprovação para a criação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil),
organização que esteve presente em todos os grandes momentos da Igreja Católica
e da história contemporânea de nosso país. A duas semanas do golpe de 1964, que
marcaria sua vida, foi indicado arcebispo de Olinda e Recife, e teve atuação
proeminente em toda a sociedade brasileira.
Hélder revelava-se
cada vez mais um soldado em luta pelos mais pobres, que entendia como sua
missão. Agregado à OFS (Ordem Franciscana Secular), foi simples como o
Francisco dos pássaros, no despojamento e no real voto de pobreza pela fé.
No peito, batiam forte seus profundos ideais.
"Quando dou de comer aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto o porquê de os pobres não terem comida, eles me chamam de comunista" |
Por causa de suas missões
junto aos pobres, a perseguição política tornou-se implacável. Hélder foi
censurado, proibido de dar entrevistas e sequer mandar mensagens. Como que um
carimbo na testa, recebeu a “pecha infamante de comunista” (ironicamente,
expressão cunhada por Marx e Engels, em O Manifesto, usada ao avesso). Uma vez
“carimbado” o cidadão ficava marcado como fosse o número tatuado no braço dos
judeus presos nos campos de concentração. (Lembro-me de que, depois de
libertados da prisão, os humoristas de O Pasquim escreviam, bem ao seu estilo
gozador, coisas como “fulano, comunista igual a nós”, começando a fazer a pecha
cair no ridículo, pois comunistas eram todos os que se opunham ao regime. E
ponto).
Nelson Rogrigues (baconfrito.com) |
Contra
Hélder, atacou-o doentiamente o dramaturgo Nelson Rodrigues, homem ligado à
ditadura (mesmo tendo o filho, também Nelson, sido preso e torturado). É da
lavra dele a maldosa alcunha “O Bispo Vermelho”, mais um estigma criado para
denegrir a imagem do religioso, então já maldita pelo regime, no afã de
isolá-lo completamente. Mas não. Em 1968, auge da repressão, publicou
“Revolução dentro da Paz” (Rio de Janeiro: Ed. Sabiá), traduzido em diversos idiomas,
talvez seu maior libelo em prol da pacificação pela justiça, direitos para
todos e contra a miséria aguda do povo.
General Médici e a Taça Jules Rimet (1970) |
Entre as dezenas de
prêmios, títulos de cidadão honorário, doutor honoris causa e homenagens que
ganhou durante a vida em diversas partes do mundo, um lhe escapou quatro vezes,
por obra dos próceres da ditadura: indicado para o Prêmio Nobel da Paz por sua
luta pacífica, comparado a Ghandi, foi em 1970, por instrução do G.al
Garrastazu Médici, que o embaixador brasileiro na Noruega travou campanha no
Parlamento de Oslo e países escandinavos contra a concessão da láurea, pois
aquele Nobel poderia servir de “estímulo ao avanço comunista” (sic) na América Latina.
Médici queria a glória para si, para o “ame-o ou deixe-o”, a taça da copa de 1970, que, esta sim, ergueu com orgulho de técnico palpiteiro e herói, capitalizando-a. Além de seu espírito censor e obcecado, talvez não lhe fosse do agrado, afinal, um prêmio Nobel da Paz.
Médici queria a glória para si, para o “ame-o ou deixe-o”, a taça da copa de 1970, que, esta sim, ergueu com orgulho de técnico palpiteiro e herói, capitalizando-a. Além de seu espírito censor e obcecado, talvez não lhe fosse do agrado, afinal, um prêmio Nobel da Paz.
Com o papa João Paulo II |
Mais recentemente,
uma comissão criada pelo então governador de Pernambuco, o recentemente
falecido Eduardo Campos, logrou obter farta documentação sobre a interferência
do regime de força contra a concessão do Nobel – de que o arcebispo seria o
único brasileiro laureado até hoje. Anos depois, Hélder recebeu um beijo na
testa do papa João Paulo II, que o saudou em público: “você é pelos pobres,
então você é dos meus”.
O enterro do Pe. Henrique, auxiliar de dom Hélder |
O nome do religioso
era proibido na imprensa, uma simples menção provocava urticária nos arautos do
regime. Antônio Henrique, o padre auxiliar de Hélder, foi encontrado morto,
logo após o famigerado AI-5, com sinais de tortura e sevícias, tiros e
enforcamento, assassinato covarde e bárbaro ao estilo das vendettas das
máfias da Córsega – a repressão chamava isso de um sutil “exemplar os cidadãos”
(leia-se: apavorá-los). O caso foi abafado com mordaça e pá de cal, à maneira
do Stalin soviético, e severamente censurado em todos os órgãos de imprensa,
coisa de todos os tipos de ditadura. E assim como o estudante Edson Luís, morto no Rio na mesma
época, no Restaurante Calabouço, Pe. Henrique foi alçado à condição de mártir
da ditadura. Mas o recado ao bispo havia sido dado: cala-te, Hélder!
Dom Hélder e Madre Maria de Calcutá |
Perdeu
o Nobel, láurea que pessoalmente não afagaria seu diminuto ego, não conhecia a
soberba da fama. Contudo, a visibilidade poderia ajudar no fortalecimento de
sua missão pelos que tinham fome e os perseguidos. Ironia da vida, em 2014 o
Vaticano acolheu o pedido de beatificação e santificação de Hélder Câmara,
apondo seu nihil obstat (nada a
obstar) ao seguimento do processo. A burocracia da Santa Sé tem seus dogmas, é demorada,
as exigências muitas, mas a anuência já concedida à análise do pedido abriu-lhe
a porta, que aliada ao anseio do papa Francisco em unir todo o seu rebanho, já
aponta ao menino prodígio e visionário de Fortaleza seu derradeiro destino.
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