Gainsborough St. |
[Conheço
bem o caso do estrangulador de Boston, e foi por pura coincidência. Um dia me
disseram que ele havia quase sido vizinho meu, perto de duas décadas antes, e se chamava
Albert DeSalvo.]
Só acreditei nessa história quando
ganhei o livro The Boston Strangler,
de Gerold Frank. Eu morava na Gainsborough St, que fazia esquina com a
Huntington Ave, do afamado Boston Symphony Hall. O pequeno apartamento ficava
no nº 79, geminado ao 77, onde DeSalvo residiu e começou seu périplo de
estrangulamentos de senhoras idosas.
Cronologia e mapa dos assassinatos |
Ali mesmo, em junho de 1962, a polícia descobriu, em um apartamento
do primeiro andar, o corpo de Anna Slesers, 55, enforcada com o cinto de seu
roupão de banho. Duas semanas depois, na vizinha Commonwealth Ave, foi a vez
Nina Nichols, 68, e a sequência continuou no mesmo dia com Hellen Blake, 65, só
terminando com Mary Brown, 68, oito meses depois. De Salvo acabou preso por seu
13º crime.
Os psiquiatras forenses costumam achar elos recorrentes em assassinatos
seriais - como fetiches, manias ou o absurdo prazer de deixar pistas, tal qual
autógrafos nos crimes. A psicopatia dos serial
killers é cruel. DeSalvo rejeitou a internação no hospital psiquiátrico de
Bridgewater, preferindo encarar o júri. Foi, e negou todos os crimes, para ao final confessa-los com riqueza de detalhes.
Mary Sullivan, 11ª vítima |
Terminou assassinado no presídio de segurança máxima de
Walpole, em 1971. Em 2001, já com as técnicas de identificação por DNA, o corpo
de Mary Sullivan foi exumado, mas os exames não remetiam a DeSalvo, e sim a
outros dois homens. O especialista Casey Shermann disse que se De Salvo confessou
que matou Mrs. Sullivan sem tê-lo feito, pode não ter assassinado algumas ou
mesmo qualquer das outras. Queria o “criminoso confesso” ter o prazer de
se ver na pele do verdadeiro assassino, hipótese não descartada?
Londres: todos são suspeitos. Ilustração da época |
Distrito de Whitechapel, Londres, 1888. “Jack, o estripador (the ripper)”, nunca identificado, confessou
ser o assassino serial por carta enviada à imprensa, mas, assim como sua
identidade, a mensagem pode ter sido apenas um jogo para disseminar o pânico na
cidade. Ou um trote. “Jack” também era chamado “avental de couro”, uma alusão
aos açougueiros, tamanha a crueldade empregada com as mulheres. Seus ataques visavam
geralmente às prostitutas do bairro pobre do East End londrino, e o “estilo”, garganta
cortada e abdômen retalhado.
A carta de "Jack" ao oficial George Lusk |
Há centenas de teorias sobre a identidade do estripador,
todas elas inconclusivas, o que certamente afagou e elevou o ego do misterioso
assassino às alturas, um intenso prazer. Em 15 de outubro de 1888, “Jack” envia
uma carta - cujo texto dá náuseas -a George Lusk, oficial de polícia de
Whitechapel, escrita com um inglês paupérrimo (traduzo ao meu jeito): “Do
inferno. Mr. Lusk., Sinho eu lhe mando metade do rin priservado eu tirei de uma
mulher a outra parte fritei e comi. Estava muito bon. Posso mandar a fac ensanguentada que tirei se o Sr. eperar um pouco. Assinado: pegue-me quando puder, Mishter
Lusk”. (Por esse "Mishter", mesmo partindo a carta de um semi-analfabeto, sinto-me ouvindo um escocês).
High Street, em Whitechapel |
Em função dessa loucura surreal que foi Jack, the ripper, foi criado até um
neologismo, a “ripperologia”, o estudo dos casos dessa série de assassinatos. Entre
as vítimas, há as chamadas “cinco canônicas”, que tinham elos mais próximos à
forma de agir de “Jack”, embora buscas nunca chegassem a lugar algum. Foram onze
vítimas em Whitechapel, mas fora dali houve algumas outras, de cuja autoria não
se tem segurança: a fama oculta e o desejo de matar podem ter sido despertados
em outros psicopatas pela ousadia impune de “Jack”.
O rio Tâmisa |
O “mistério Whitehall” foi um dos mais bizarros desses casos:
um braço encontrado boiando no rio Tâmisa, a que se seguiu um torso na
construção da chefatura de polícia de Whitehall, mostram a perversidade do
criminoso. Pouco depois, foi descoberta uma das pernas nas proximidades. A cabeça
da vítima e outros órgãos ou vísceras nunca foram localizados, tornando impossível
sua identificação. Em virtude das distintas características macabras, o chamado
“assassino de torsos” nunca foi identificado com segurança como “Jack”, uma vez que
os “serials” geralmente deixam sua espécie de marca registrada nos crimes, uma
assinatura tão repetitiva quanto sinistra.
O assassinato do garoto John Gill (ilustração da época) |
Quando John Gill, um garoto de apenas sete anos de idade, foi
encontrado morto em Bradford, estava com as pernas mutiladas e sem uma orelha,
suas vísceras e seu coração haviam sido arrancados. Semelhanças com a violência
brutal de Jack há, mas a idade, o fato de ser um menino e não uma prostituta não
faziam o elo lógico com “o conjunto da obra” do estripador. O patrão do menino,
William Barret, foi preso por duas vezes, e, por insuficiência de provas, terminou
solto, deixando o caso sem suspeitos.
O perfil psicopata do assassino serial tem algo a ver com a
patologia de outros crimes. O roubo, por exemplo. Atraído pela ocasião, como se
diz, o sujeito começa com muito pouco, talvez, mas o sucesso da impunidade e
ambição crescem em sua mente, tornando-o obcecado e cada vez mais ambicioso. O velho
provérbio lusitano “quem rouba tostão, rouba milhão”, vem da sábia visão
popular dessa volúpia crescente de ficar rico, daí mais rico e até infinitamente
rico, sem poder parar, vítima da mesma patologia dos homicidas seriais. Porém, com a tecnologia de hoje, dificilmente o criminoso consegue
prosseguir na trajetória sem ser descoberto, como logrou o mito “Jack”. Talvez até, em
seu subconsciente, o bandido queira prosseguir até ser flagrado, mas não o percebe de
forma consciente. Talvez os crimes em série, de assassinatos a corrupção, sejam gêmeos com
liames comuns em suas patologias. Os últimos, quando pegos, deixam seus autores
na clausura das celas e, pior ainda, de suas consciências, por terem assassinado indiretamente crianças, adultos e idosos em filas de hospitais, fora aqueles deixados sem escola, vacinas e tudo o que o Tesouro, violentado e estripado, deveria oferecer ao povo por obrigação de Estado.
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