(Divulgação) |
IN MEMORIAM
Conheci Naomi em 1985, quando ingressei como professor na Escola Municipal de Música, do Teatro Municipal de São Paulo. Naquela casa antiga, encontrei-me com colegas, alguns conhecidos, e outros menos, de quem sabia só de nome. Naomi era um deles. Passei a conhece-la melhor em 1989, quando, por indicação consensual dos professores à administração, tornei-me diretor da unidade. Daí, claro, meu contato com todos os professores passou a ser mais próximo, pois que diários, e Naomi tornou-se conversa constante e amiga. Era, a um só tempo, professora de teoria e aluna de harpa, uma combinação que eu não compreendia muito, mas que apenas aguçava minha ideia de que ela era uma pessoa ávida por aprender e se expandir.
Conheci Naomi em 1985, quando ingressei como professor na Escola Municipal de Música, do Teatro Municipal de São Paulo. Naquela casa antiga, encontrei-me com colegas, alguns conhecidos, e outros menos, de quem sabia só de nome. Naomi era um deles. Passei a conhece-la melhor em 1989, quando, por indicação consensual dos professores à administração, tornei-me diretor da unidade. Daí, claro, meu contato com todos os professores passou a ser mais próximo, pois que diários, e Naomi tornou-se conversa constante e amiga. Era, a um só tempo, professora de teoria e aluna de harpa, uma combinação que eu não compreendia muito, mas que apenas aguçava minha ideia de que ela era uma pessoa ávida por aprender e se expandir.
Naomi nasceu
em Hiroshima (pausa fora do assunto, pois nunca me conformei: hecatombe absurda a que se seguiu Nagasaki, dois dias depois da primeira bomba, quando o Eixo já
se desmontara, deixando o Japão indefeso). Os pais de Naomi decidiram para lá
ir assim que os efeitos da radiação daquele holocausto cessaram. E foi ali
mesmo, anos depois, no meio daquele pedaço de chão que é um passado vergonhoso da
história, que nasceu nossa amiga. Bons papos, eu a convidava, uma vez ou outra,
para minha casa em Jabaquara, e, com um fusquinha simpático, levava seu wok (fritadeira) e os apetrechos para
fazer uma de suas especialidades: um maravilhoso sukiyaky, que sabia elaborar com
toque de maestrina.
Saboreávamos
a iguaria e, já mais tarde, à noite, meu segundo filho, Lucas, ainda quase bebê
e difícil de fazer dormir, começava a ficar impaciente e irritado. Mas era
batata: bastava Naomi pegar o menino, colocar no banco de trás do fusca velho
de guerra, e dar umas voltinhas no quarteirão. Tiro e queda, lá vinha ele embalado
e dormindo. (Em uma viagem, achei uma bonequinha de pano de feições orientais cuja
face era bem parecida com a da amiga: chamei-a Naominha, e dei-a de presente ao
meu filho).
Ela
também dominava técnicas das tradições orientais com habilidade: certa vez, eu
estava com a coluna literalmente travada, muita dor nas costas, e ela pediu-me
que deitasse de bruços no chão de minha sala. Dito e feito, tirou os sapatos,
passou a caminhar sobre minha coluna, vértebra por vértebra, usando seus
calcanhares com precisão cirúrgica. Ao final, minutos depois, levantei-me, e
onde estavam a dor e a coluna engripada? Mágica da Naomi: levantei-me aliviado
e agradecido.
Eric Ericson |
O destino
de Naomi era mesmo o pódio, a regência coral. Com um ouvido impecável, aguda sensibilidade,
começou a embrenhar-se nessa missão e devotar-se a ela com grande paixão. Tendo
iniciado seus estudos musicais ao piano, aos tenros quatro anos de idade, mais
tarde acabou, durante anos, privilegiada pelas lições de mestres como Eleazar
de Carvalho, Hugh Ross e Sergio Magnani, entre outros. Obteve uma bolsa de
estudos da Fundação Vitae para estudar com o ‘papa’ da regência coral Eric
Ericson, na Suécia.
Porém,
havia um pequeno problema: para viajar, Naomi, funcionária admitida, não
possuía o privilégio dos servidores estatutários de poder afastar-se com
prejuízo de vencimentos. Porém, com a ajuda de pessoas de bom trânsito nos
meandros da Prefeitura – e entre elas cito minha ex-assistente e ex-diretora
administrativa do Centro Cultural SP, Maraíza Nascimento -, por uma espécie de
“ressonância” legal, lá foi Naomi, dispensada, para a Suécia, de
onde voltou preparada para trilhar nova gloriosa carreira.
(Divulgação) |
Tornou-se
regente do Coral do Estado, que lapidou com mãos de artesã. Mais tarde,
transformou-o em Coral do Estado e, em um salto, ergueu o Coro Sinfônico da
OSESP, na belíssima Sala São Paulo, criando não um coral, mas um verdadeiro grupo
vocal dedicado ao repertório sinfônico, que seria sua atribuição profissional, e o
dirigia com todas as sutilezas e nuances que esse tipo de formação merece. Naomi tinha o dom da simplicidade dos gestos, uma suavidade com as mãos que dialogavam em
sintonia com a voz, o controle sem a rigidez mecânica do tempo, algo com que
eu, com certa liberdade, posso parafrasear o liberalista econômico francês
Gournay, transportando-o para o contexto musical: laissez faire, laissez chanter (deixe fazer, deixe cantar). Nascia,
assim, o grande coro talhado para o repertório sinfônico - modelar, exemplar, um
paradigma para o Brasil. Lembrava-me do Coro de Tanglewood, um belíssimo
grupo de grandes cantores que se apresentava com a excelente Boston Symphony
Orchestra, em concertos e gravações.
Em
2014, Naomi tornou-se “regente honorária” – segundo o Houaiss, ‘honorário - “que,
após ter deixado de exercer função, cargo, emprego, conserva o título e as
prerrogativas” - da Osesp, o que parecia uma honra especial, mas que desde já deixava
transparecer o desfecho da ópera: no final de 2015, Naomi era demitida da Osesp,
por motivos que não se sabe, que agora menos ainda cabe discutir. Recolheu-se,
pois, como dizia o mestre Eleazar de Carvalho, quem é bom já nasce feito, não
precisa de estripulias para se afirmar. Recentemente, em 2016, Naomi, quieta
como se já aguardasse algo novo surgir, foi convidada e assumiu o posto de
regente titular do Coral Paulistano do Teatro Municipal, fundado pelo grande
Mário de Andrade. O que desejo para Naomi Munakata, agora, talvez não devesse ser
dito, mas cantado por todos os anjos: uma frase do famoso coro do terceiro ato da Ópera Nabucco,
de Verdi, resumiria tudo: “segue, pensamento, sobre asas douradas” (va, pensiero, sull’ali dorate), pois seu
voo é para sempre, ad lib, menina.
NUNCA PARE DE VOAR, NAOMI!
Que emocionante.
ResponderExcluirLinda essa amizade
Meus sinceros sentimentos ❤
Muita emoção!
ExcluirLindo texto e bela homenagem, ela bem o merece. Gratidão.
ResponderExcluirElsa
Que linda mulher. Linda!!!
ResponderExcluirMinha professora de canto coral na EMM, naquele antigo casarão na Vergueiro... mais tarde, na Estadualzinha, tocando uma missa desconhecida de Mozart. Vou guardar as melhores lembranças da minha primeira professora de coral. Que tempos são esses?...
ResponderExcluirMarco Tze Ju
delícia de relato, Henrique.
ResponderExcluirquerida Naomi, para sempre em nosso coração, querido Henrique ❤️
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