Os ricos versos do Aldir Blanc para a música de João Bosco, do
fim dos anos 1970, entraram para a história na voz inconfundível de Elis Regina,
sendo um dos maiores sucessos da cantora. Trata-se da riquíssima “O Bêbado e a
Equilibrista”, letra que conseguiu colocar em um mesmo caldeirão, tornando-as
plenas de sentido, figuras de linguagem e símbolos diversos - ainda não havia terminado
o ciclo mais duro da censura. A letra é um jogo inteligente de aparentes contrastes,
coisas desconexas ou contradições que faziam grande sentido para o ouvinte da
época.
“O bêbado trajando luto me lembrou Carlitos”, talvez pelo
andar oscilante do personagem de Chaplin, “a dona do bordel” que pedia “a cada
estrela um brilho de aluguel”, referência às facilidades das casas de
meretrício. E o “mata-borrão do céu” cujas nuvens chupavam manchas? Mais, a citação
codificada a fatos cruéis da época da perseguição aos artistas e intelectuais: ‘o
irmão do Henfil’ (cartunista de O Pasquim), era o “Betinho”, que depois de
preso exilou-se no Chile, pois sociólogos militantes das Juventudes Católicas
não eram exatamente bem-vindos, mas presos. Betinho escapou “num rabo de
foguete, com tanta gente que partiu...”
Clarice e família com o novo atestado de óbito, 37 anos depois: "asfixia mecânica por enforcamento, lesões corporais e maus tratos" |
E a letra diz “chora à nossa pátria-mãe gentil”, citação do Hino
Nacional, “choram Marias e Clarices...” Mas quem foram essas? Maria era Thereza
(e outras “Marias”), mulher do operário assassinado Manuel Fiel Filho, e o
sobrenome de Clarice era Herzog, esposa do jornalista e ex-professor da USP
Vladimir Herzog, morto por tortura nas dependências do DOI-CODI – crime já
confessado e reconhecido – tentando mostrar o suicídio por enforcamento na
cela. Mas, diz a letra, a esperança é equilibrista, e o show de todo artista
tem de continuar.
Engenheiro Freyssinet |
Agora, poucos sabem que a “caía a tarde feito um viaduto” é referência
a um dos maiores desastres do Rio, no pior dos anos Médici, em 1971. O viaduto
Engenheiro Freyssinet, nome oficial que não pegou, ficou conhecido como Paulo
de Frontin, popular avenida que passava por baixo, e ia ser prolongado. Simplesmente
viu ruírem perto de 150 metros de uma só vez sobre a via, esmagando quase 30
pessoas e ferindo outras tantas.
Viaduto Pulo de Frontin, 1971. Detalhe: a betoneira com 8 toneladas |
Mas por que caiu aquele trecho enorme de viaduto? Algum deslize
de cálculo no concreto protendido, invenção francesa do homenageado Freyssinet?
Superfaturamento por ausência de licitação? (A licitação é um Instituto
administrativo - ignorado pela ditadura - cujos primórdios são de 1862 mas somente
foi consolidado em 1988 e 1993). Mas depois o fenômeno foi explicado por
especialistas no assunto: stress
corrosion, ou corrosão por estresse. Pronto. Agora, em bom português: um
viaduto feito para passagem de automóveis não o foi para trânsito de caminhões
com materiais e concreto pesadíssimos que iriam para o prolongamento do
viaduto. A construção não suportou.
A Nelson Fiúza, depois da chuva de 9 de janeiro |
Vamos do Rio dos anos 1970 para a
Tatuí de hoje. Faltaram manutenção ou avaliações preventivas por pessoal
especializado, e com a impermeabilização crescente do solo, falta de escoamento
das águas pluviais, lençóis freáticos rompendo a asfalto, a cada tempestade as
velhas pontes foram sendo enfraquecidas enquanto a frota de veículos aumentava.
Frota de Tatuí. Fonte: IBGE |
Há meses ruiu a do ponte do Marapé, na entrada da cidade, causando
um enorme transtorno. Como era um acesso de uso frequente e vital para a
cidade, o trânsito passou a sobrecarregar a ponte do Junqueira, que, claro, também
foi cedendo – repitamos, por stress
corrosion - para afinal também ruir. Caiu também a sustentação da ponte que vai para o Jardim Paulista, tornando-a proibitiva.
Ponte do Junqueira (O Progresso) |
O fluxo de trânsito ficou impraticável com esses dois
desabamentos, e agora já sobrecarrega uma pequena ponte, que sai da Pompeo
Reali, com intenso movimento de veículos diversos, ônibus, autos pesados, muito
além da intenção primeira da obra da ponte.
O heroico pessoal do resgate de Tatuí, em operação de outro acidente passado |
A nova administração municipal tem inúmeros desafios pela
frente. Há que usar de criatividade e sensibilidade para obtenção de verbas emergenciais
do estado, diante do chamado “fato da natureza”. Ah, se estivesse tudo em
ordem, funcionando, para que as prioridades fossem para o lado social,
extremamente carente, como a Saúde! O problema é que, fora isso, para
determinadas emergências, os conflitos causados pela falta de manutenção na
cidade, o desconhecimento da importância da absorção da chuva – leia-se: verde
-, entre outros, podem colocar em risco vidas também por conta da morosidade causada
pela falta de rotas de emergência, dificuldades nas saídas da cidade para casos
de resgate críticos e outros.
Mutirão de limpeza da Pça Sta Cruz (Eduardo Grando) |
Eis o desafio do momento. Esqueçamos os bêbados e as equilibristas,
pessoas e partidos, o show tem de continuar. Em 1971, pouco se investigou a
queda do Viaduto da Paulo de Frontin. Hoje, em pleno estado democrático, há que
se analisar tudo com objetividade técnica. Atormentam os novos administradores,
com certeza, as noites de insônia, as preocupações, a procura emergencial por
verbas, a urgente dispensa de licitação e o trabalho diuturno. Mas tudo isso
pode ser atenuado com o apoio maciço da população, que já tem começado a
acontecer, das empresas que podem colaborar, da solidariedade em geral. Porque
não se pode jogar sobre uma só pessoa e sua equipe a responsabilidade de operar
um milagre. Pelo contrário, trata-se de dotá-la do apoio necessário, de
cooperar, como for possível, daqui por diante. O Conservatório de Tatuí pode
não tapar buracos nas vias, mas certamente, com música e teatro, pode cobrir os
vazios no espírito de todos, que, irmanados, dividem angústias e esperanças.
[Veja e ouça abaixo a música que deu
título a este artigo. Com a diva Elis]
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