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sábado, 28 de janeiro de 2017

NOSSA LÍNGUA NÃO É IMEXÍVEL !

Gustave Flaubert
Em ‘Notas à Margem de uma Tradução’, prefácio de meu pai para “A Lenda de São João, o Hospitaleiro”, de Gustave Flaubert (1821-1880), trabalho a quatro mãos dele e minha mãe para a Ed. Record (1987), há uma anotação que cita frase do grande autor francês, segundo Maxime Du Camp: “...o escritor é livre, conforme as exigências de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramaticais que regem a língua, e as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da harmonia”. Para meu pai, Autran Dourado, o grande escritor francês sempre foi um de seus nortes literários, além de Machado de Assis e os norte-americanos Faulkner e Henry James.

Antonio Rogério Magri
Pois passaram-se dali apenas três anos, e tomava posse na Presidência da República o Sr. Collor de Mello (1990-1992), na primeira eleição direta 29 anos depois de Jânio, que assumiu e renunciou em 1961. Era seu ministro do Trabalho e da Previdência Social o Sr. Antonio Rogério Magri, egresso do sindicalismo (foi eletricitário). Certo dia, no final de 1990, Magri discursava, quando provocou celeuma: “o salário do trabalhador é imexível”. Bateram no ministro de todos os lados, mas meu pai, fora da política e imerso na literatura, escreveu para a célebre coluna do Carlos Castello Branco no Jornal do Brasil, apoiando a palavra de Magri.

Otto Lara Resende
O ministro escreveu-lhe agradecendo a defesa, mencionando “a extraordinária sensibilidade social e humana de sua obra intelectual...”, etc. O bilhete foi enviado ao Castello, do JB, que o entregou pessoalmente ao Otto Lara Resende, para que chegasse ao meu pai. Assim Otto o fez, logo no dia 2 de janeiro de 1991: “li seu bilhete na Coluna do Castello (...). A palavra era bem formada e portanto vernácula. O fato de não constar no dicionário, se de fato não figura, só depõe contra o dicionário”.

Academia Brasileira de Letras, no Rio
De fato, onde quero chegar, e pensando em Flaubert – em que pese o Sr. Magri ser pessoa de formação bem superficial -, é a liberdade de quem faz a língua: o povo e os escritores, que a desenvolvem e consagram. O português não é língua morta, senão melhor seria voltarmos ao latim. A palavra foi incorporada pelo respeitadíssimo Houaiss, inclusive com seu antônimo “mexível”, e consta no Vocabulário Ortográfico oficial da Academia Brasileira de Letras.

Isso remete a um fato inusitado (in, prefixo latino que indica ‘negação’ - para o que não é usual), palavra que alguém um dia também inventou. Aconteceu comigo em ambiente acadêmico, local mais do que propício para picuinha de um "patrulheiro". Eu havia publicado um livro chamado “Pequena Estória da Música”, uma diversão sobre fatos da vida musical na história, coisa das curiosidades de cunho anedótico que se passaram na vida dos músicos desde os primórdios. Tratava-se de um texto com coisas pitorescas sobre músicos, e o título uma óbvia citação brincalhona do 

“Pequena História da Música”, do Mário de Andrade. 

Em uma reunião do Conselho do Departamento (eu, ausente), um professor, hoje com quase 90 anos e já de há muito aposentado pela compulsória, entregou espontaneamente um parecer pessoal sobre minha publicação, muito embora não se tratasse de trabalho acadêmico, mas de prosa livre. Mesmo não sendo o lugar adequado, leu o parecer, e disse que não existia a palavra ‘estória’. 

Mencionou o Aurélio da época, embora o Houaiss, de muito melhor gabarito, classificasse o termo como “narrativa de cunho popular e tradicional (1912)”, e mesmo que o mestre Guimarães Rosa tenha escrito seu “Primeiras Estórias”! Na pressa, o colega deslizou e cometeu seu ato falho: disse que eu “estava ‘desidentificando’ a história”, inovando ele mesmo, porque usou palavra que não existia, à época, em dicionários (hoje o Houaiss já a incorporou).

Foi a deixa para eu desferir um touché, que em esgrima é um golpe de ataque frontal bem sucedido. Escrevi que quem “desidentificava” era ele, usando o mesmo tolo argumento da não-dicionarização da palavra. E completei dizendo-me surpreso por ver um acadêmico com a titulação dele citar o Aurélio como fonte, não era para uma universidade. Picuinha de ancião, ele discutia o indiscutível na falta de assunto e do que fazer. O “parecerista” aposentou-se pouco depois, talvez aquele tenha sido seu triste “canto do cisne” acadêmico.

Autran Dourado, meu pai (Foto: Fábio Motta)
Meu pai escreveu diversas cartas para editoras, reclamando de mudanças em seu texto. Em uma delas, “Aviso”, disse: “há neles certas peculiaridades de estilo (...) palavras como perguntar, indagar, que não usam ponto de interrogação, por desnecessário, e sim vírgula, o mesmo com exclamar, gritar, seguidas de vírgula, e não ponto de exclamação”. E exemplificou: “ela o vencia, perguntou ele” (com vírgula e não interrogação). E abriu a exceção: “ela vai à cidade? disse Fulano. Aí, o ‘disse’ me obriga ao uso da interrogação”. Questão de estilo, insistia sempre, com certeza lembrando-se de Flaubert.


Galileu Galilei e o heliocentrismo
Aconteceu um episódio com o grande maestro Eleazar de Carvalho, quando o mestre cunhou uma de suas célebres frases lapidares espontâneas: “o que não muda, não se move. E o que não se move está morto” (depois de indagado por um músico sobre o porquê de ele ter alterado sua maneira de reger certa peça). Mais do que nunca, encerrando o assunto deste texto, cabe também a histórica frase atribuída a Galileu Galilei (1564-1642), supostamente dita em voz baixa após interrogado pela Santa Inquisição, obrigado que foi a rejeitar sua própria defesa do heliocentrismo - a terra gira em torno do sol, e não o contrário, o geocentrismo, como mandava o dogma da doutrina da Inquisição. Teria resmungado baixinho, após sua confissão: eppur si muove (e, no entanto, ela se move). Concluindo, juntando tudo, nossa língua no entanto se move, muda e não está morta. Por isso mesmo não é “imexível”. 

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