Gustave Flaubert |
O leitor mais atento pode ter estranhado a razão de
eu ter usado, para este título, ‘porque’ conjunção causal explicativa, e não
‘por que’, expressão interrogativa. Guardo a explicação para o final do texto. Também,
não deixa de ser uma brincadeira com o leitor sobre as regras gramaticais, que
uso mas sem idolatrá-las, até distorcendo-as ou violando-as conscientemente,
como recomendava Flaubert, quando apraz ao autor, pelo bem do estilo de
escrever.
Fernando Sabino |
O
título ‘escritor’ ficou ainda mais claro para mim quando, por ocasião do falecimento
de meu pai, em 2012, o crítico literário e articulista Humberto Werneck escreveu
sobre um caso divertido que acontecera com o Fernando Sabino. Na conversa, meu pai,
seu amigo, dissera que passara a vida inteira em “trabalho de formiguinha para
ser romancista”. E que se escrevesse poesia certamente seria um lixo.
Humberto Werneck |
Insistia
que Sabino, seu dileto amigo, tentasse publicar algo mais do que crônicas, enveredasse
pelo romance, pela verdadeira literatura. Werneck assim publicou a boutade em O Estado de São Paulo, uma
semana depois da partida do meu pai (2012):
Autran Dourado |
“Nos anos 70, trocou divertidas farpas com Fernando Sabino quando
o amigo, inebriado pelo sucesso do primeiro romance, O Encontro Marcado (1956),
que o impedia de reincidir no gênero, andou apregoando que o romance estava
morto (sic). Gozado o Fernando”, comentou meu pai: “foi campeão de natação, e
agora, que já não dá conta de nadar, quer esvaziar a piscina..." Essa uma tirada típica do velho Autran.
Sabino voltaria a tentar o romance, com O Grande Mentecapto, mas o
trabalho de elaborar uma grande trama literária lhe parece ter morrido após
mais duas tentativas. Já meu pai continuou a ser formiguinha, e construiu uma
obra já consolidada internacionalmente que deixou um lastro de quinze romances,
nove livros de histórias mais curtas, um de memórias e seis de ensaios. Por isso,
foi considerado pela Unesco autor de textos que figuram entre as obras representativas
da literatura universal.
Herbert Von Karajan |
Faço agora um paralelo entre ‘a pessoa que escreve e o escritor’
com ‘aquele que rege e o maestro’. Hoje a ‘produção’ de maestros no Brasil é como a
“geração espontânea” da antiguidade. Eu me autodenomino maestro porque quero (ou
seria uma autofagia oculta?). Muitos, muitos regem, mas, como os que escrevem e
não são necessariamente escritores, serem regentes não significa serem ‘maestros’.
Em outras línguas, não há paralelo: chef d'orchestre,
em francês, conductor, inglês, e Dirigent, alemão. Na Itália, diz-se que
é maestro o mestre, independentemente até do instrumento.
Isaac Karabtchevsky |
Quem confere então tal título no Brasil, perguntaria o leitor. Os
músicos! Nem a imprensa, nem a universidade, nem o público, apenas os músicos,
que reconhecem na liderança que os guia estarem diante de um mestre - do italiano
“maestro”. Nem quando músicos o dizem
por respeito ou costume, mas quando têm gabarito musical que lhes confere esse
poder de ‘unção’, de dar a quem os rege o galardão de líder de orquestra, é que
se ergue um maestro. Disse uma vez o célebre Isaac Karabtchevsky: é maestro quem
possui na cabeça as 9 sinfonias de Beethoven para reger amanhã, entre outros
cavalos de batalha. Na questão requisitos, como músico eu endosso o maestro
paulistano de anos muito bem vividos musicalmente aqui e no exterior, hoje aos 83.
Silvio Romero (1851-1914) |
Há e houve ensaístas e críticos, e gente preciosa, como o Humberto
Werneck, que mencionei acima (a imprensa recente desgastou “citar”, devido à
Lava Jato, provocando confusão quanto uso da palavra, entre o ‘mencionar’ e a 'citação
judicial'). Afrânio Coutinho, o mestre Antonio Cândido, Alceu de Amoroso Lima,
e, do século 19, Sílvio Romero, sem me esquecer do professor emérito da Usp e
membro da ABL Alfredo Bosi, independentemente de serem também poetas ou
escritores. É um ofício trabalhoso, cheio de espinhos, cujo protagonista tem de
estar pronto para receber de volta farpas dos criticados.
Cecília Meireles |
Dos poetas, artesãos de dificílima arte, temos muitos, desde o
versátil Gonçalves Dias à Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond (o “poeta
maior”), João Cabral, dos meus favoritos, e tantos outros. Cronistas da
imprensa temos aos montes, alguns que admiro pela memória e versatilidade no
jornalismo, destacando Carlos Heitor Cony, o saudoso Gullar, Sérgio Augusto, bem
versado em cinema, o às vezes debochado e cáustico Arnaldo Jabor, e outros menores
que servem para encher página de jornal, cujos nomes declino de mencionar, por
respeito à classe dos que emitem boas opiniões fora da aparente (mas não
transparente) isenção das notícias.
Marlos Nobre |
Entre compositores, o mesmo. Escrevi dezenas de peças curtas, mas
nem por isso sou compositor. No máximo, um ‘cronista da composição’. Um
compositor que merece esse título tem de ter escrito uma ou mais sonatas, ou
peças cuja complexidade mostrem sua expertise no tema, quem sabe chegar a uma
ópera ou sinfonia. Sou modestíssimo artesão, outra coisa são Guarnieri, Villa-Lobos
ou Marlos Nobre, entre outros. Componho, mas não me atrevo a usar o título de compositor.
Escrevi alguns livros, quase todos técnicos, fora uma brincadeira
musical publicada como diversão. Mas nada de literatura. Minha obra mais
importante é o Dicionário de Termos e Expressões da Música, que tem trânsito
entre músicos em geral. Nunca pensei em me aventurar pela literatura, pois o
trabalho deveria ter sido iniciado como meu pai, aos dezenove. Gostaria, até,
claro, a coisa me atrai, mas sei dos meus limites. Sou músico, e está na alma, mesmo que não persista
diretamente na atividade devido a problemas que, há anos, me obrigaram a deixar
de exercê-la diretamente. Dirijo escolas de música há 28 anos. Mas quanto a
escrever, digo que não sou do ramo, apenas faço minhas crônicas.
Porque não sou escritor.
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