Calabar |
Domingos Fernandes Calabar (1609-1635),
nascido na hoje alagoana Porto Calvo, talvez tenha sido o maior traidor,
o popular ‘traíra’, da história do Brasil. Era dono de um engenho em
Pernambuco, então nome da Capitania, enorme gleba que açambarcava algo como cinco
estados do Nordeste brasileiro. Quando os holandeses invadiram o Brasil,
Calabar tornou-se o que seria um ‘quinta-coluna’, para usar uma expressão
surgida três séculos depois, na guerra civil espanhola: um escarrado traidor da
pátria. Como brasileiro, Calabar deveria ter defendido a matriz, mas virou a
casaca e aliou-se aos holandeses, colaborando com os invasores da pátria
(pessoalmente, não sei se a expulsão daquela gente da Companhia Holandesa das
Índias Ocidentais foi a melhor opção).
Calabar, a peça |
Pelas histórias já
folclóricas ao redor de seu nome, o personagem foi tema de uma peça musical de
Chico Buarque e Ruy Guerra: Calabar, o Elogio da Traição (1973). O texto quase conseguiu
escapar da implacável caneta do ministro Armando Falcão. Quase, a peça terminou
censurada. Chico e Ruy Guerra, com essas dissimulações, burlaram a censura algumas
vezes, fazendo, por alegorias e fantasias, crítica velada aos tempos da
ditadura. A peça mostrava um apanhado de boas músicas e letras, como Cala a
Boca, Bárbara: “Ele sabe dos caminhos dessa minha terra / no meu corpo se
escondeu / minhas matas percorreu / os meus rios, os meus braços / Ele é o meu
guerreiro / nos colchões de terra / nas bandeiras, bons lençóis / nas
trincheiras, quantos ais, ai...”
Joaquim Silvério |
Joaquim Silvério dos
Reis (1756-1819), quase dois séculos após Calabar, foi outro grande traidor da
história do país. Por encontrar-se com as finanças combalidas pelos impostos
extorsivos da Coroa Portuguesa, Silvério foi convidado e bandeou-se para o lado
dos inconfidentes mineiros, na esperança de que o sucesso da empreitada o
livrasse da quebradeira em suas finanças mordidas pelas pesadas taxas da Matriz.
Porém, seduzido pela possibilidade de Portugal perdoar suas dívidas e dar-lhe um
bom carguinho no governo, transformou-se em delator de seus amigos
inconfidentes.
6400 réis |
Não se sabe o que
levou em troca, mas passou quase um ano preso na Ilha das Cobras, para seu
desgosto. Depois desse episódio, o máximo que conseguiu foi uma pensão vitalícia
de 200 mil réis que o deixou com sustento para amargar seu papel de delator e
traidor dos ideais do povo, pecha que ninguém gostaria de levar em vida por
trinta anos, e que perdura até hoje, mesmo após sua morte. (Os duzentos mil
réis não deviam ser lá muita coisa, já que havia moedas de 4.000 na época).
Joesley Batista (Estadão) |
Do latim delatio, onis, denúncia, a delação
premiada de hoje é uma espécie de toma lá dá cá amparada por lei trocada entre o
réu e a Justiça, em colaboração que pode render ao primeiro penas mais suaves e privilégios.
Pode haver redução de um a dois terços de prisão ao delator, fora algumas
benesses que escapam aos prisioneiros comuns. Tudo isso está no Código Penal
Brasileiro, disciplinado por lei de 1999. Assim, o traidor da bandidagem,
bandido que também é, delata tudo, no gozo do guarda-chuva da Justiça: o que
aconteceu e até o que possivelmente nunca acontecera. Pior: perante muitos cidadãos
comuns, chega até a ser admirado, por entregar notórios políticos de reputação pouco
ilibada, ou, como se diz no popular, “de família quase boa”.
Ilustração para o Dr. Faustus de Marlowe (+ 1564) |
Pior de tudo, parece
que o delator passa a sentir alguma espécie de prazer, uma sensação fálica, uma
certa libido trazida por vaidade, uma ‘energia vital’, um psicanalista freudiano
talvez conclua assim. Delatar mais e mais, até o que não houve, a Justiça que
se vire para provar sua ilação, pois a fome e sede do delator com o tempo parece
não terem mais limites. Tal qual o personagem do Dr. Faustus, de Thomas Mann,
que entregou sua alma ao diabo em troca de poderes desmedidos como músico:
“Destruído pelo extraordinário, seu gosto arruinado para qualquer outra coisa,
ele vai no mínimo deteriorar-se no desespero de executar o impossível”. É também
uma versão pós-moderna do “seja marginal, seja herói” (1968), do revolucionário
artista Hélio Oiticica. O delator deve sentir-se como o próprio Dimas, santo
católico, o “bom ladrão”, crucificado ao lado do Senhor, que Dele ouviu (Lucas,
23:38): “em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”.
Grande Otelo como Macunaíma |
‘Herói sem nenhum
caráter’ é descrição do personagem Macunaíma, um romance (1928) de Mário de
Andrade, navegando ainda nas águas da Semana de Arte Moderna de 1922. O nosso
herói é indígena, e com Mário faz chacota do povo brasileiro, repetindo aqui e
ali a frase “ai, que preguiça”, entre cenas surreais e anedóticas. Macunaíma
fica possesso quando sua pedra da sorte, um muiraquitã, é roubada por um
comerciante peruano, o gigante Piamã. O herói arrasta seus irmãos em busca do resgate
do talismã, mesmo sabendo que o gigante inimigo era antropófago.
Nascimento de Macunaíma, segundo José Celso Martinez |
Voltado à cultura
indígena, e na contramão do romantismo literário pré-1922, Macunaíma é o
próprio anti-herói, um escracho. Tornou-se um ícone de tanta importância para a
cultura brasileira que o cineasta Joaquim Pedro de Andrade fez de Macunaíma um
dos melhores filmes do nosso cinema (1969), com Grande Otelo no papel do ‘herói’.
Macunaíma nasce – ou melhor, é parido – tendo sua mãe de cócoras, costume
indígena que facilita o parto. Na verdade, Grande Otelo cai do útero de sua mamãe
de cabeça no chão, em uma cena das mais hilárias do nosso cinema.
Todos os traidores
são heróis “sem nenhum caráter”, mas Macunaíma foi apenas um simpático
preguiçoso, nada mais.
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