O
Aurélio acha que tudo deve ser história
com agá, mas prefiro reforçar o caráter do texto com estória mesmo. Já o Houaiss identifica
estória como “narrativa de cunho popular e tradicional.” (Os ingleses,
corretamente, não abriram mão de story, que é bem diferente de history).
Posso justificar essa escolha. A ideia de escrever este texto vinha sendo
acalentada há tempos, e quase que partiu do título. Desde o início da minha
carreira, seja nos conjuntos de Música Popular e orquestras, e mesmo durante os
muitos anos de estudo, pude somar experiências, estórias e situações
inusitadas, tão particulares do músico. Com o passar dos anos, passei a temer
que essas informações pudessem se perder, pois amontoaram-se em minha memória
e, por falta de espaço, muita coisa já estava sendo deletada (ah, esses neologismos de
hoje).
Músicos senegaleses em bate-papo |
Conversar fiado sempre foi uma das atividades favoritas
dos músicos, quando longe de seus instrumentos. O bate-papo nos bastidores,
camarins ou esquinas, além de divertir servia também para saber de algum disco
recente, o estilo de alguma estrela do jazz ou da regência, a performance de algum colega ou mesmo
técnicas para execução de uma ou outra passagem musical. Esses assuntos, apesar
de informais, com o passar do tempo acabam por se fundir, com naturalidade, no
panelão da História (com agá) da Música, com seus aspectos mais insólitos e
pitorescos.
Aproveitando essa interação entre formalidade e
informalidade, aviso aos navegantes que grafo Música e Cultura com a inicial
maiúscula ao invés de minúscula. Conforme o caso, prefiro música e cultura,
assim mesmo, e por igual razão escrevo maestro ou Maestro, a depender do
regente (essa última, por sua vez, é uma palavra que para mim implica em mero
gerúndio, aquele que está regendo.
Um Maestro é um Mestre).
PDQ Bach (fictício) |
Para
melhor esclarecer essas peculiaridades do texto, deve-se lembrar do inesgotável
repertório de anedotas sobre a classe. Mesmo sabendo que boa parte foi extraída
de casos reais, mas acabou inserida nesse verdadeiro folclore pelas mãos
mágicas do tempo. Por isso neste texto qualquer semelhança entre a história e
fatos ou pessoas verdadeiras na maioria das vezes não é mera coincidência.
O anedotárío sobre músicos é parte integrante
do dia a dia dos profissionais, e cada orquestra tem seu piadista de plantão - como o violinista Rastelli, da
Sinfônica de Campinas. Era no mínimo uma nova por dia (impossível conhecer
tantas, devia inventar). Certo dia, durante um intervalo entre ensaios, no City
Bar – então bar de média categoria e hoje point e must em frente ao Centro de Convivência -, Rastelli, cercado por colegas junto ao
balcão, disse: "Hoje vou contar uma de português". Do outro lado o antigo dono do bar, exclamou, irritado: "Pois não estás a ver que sou português?'
Rapidamente, Rastelli retrucou: "Não tem problema, se não entenderes eu
conto de novo".
O irreverente grande maestro e piadista Hans Von Büllow |
Deixando
de lado por enquanto o anedotárío, o conhecimento de fatos pitorescos da vida
de instrumentistas, regentes e compositores é parte da vida do músico, costume
que não vem de pouco tempo: talvez finque raízes em épocas tão remotas quanto
as das manifestações artísticas mais primitivas (o grande Maestro Hans von
Büllow costumava dizer: “No princípio era o ritmo").
Inicialmente, para este texto, passei a registrar as estórias de forma
mais ou menos aleatória, do jeito que emergiam à lembrança, esperando que
alguma hora eu pudesse concatená-las sem o risco de privá-las da naturalidade
com que foram surgindo. Quando esses fatos, causos e anedotas começaram a se
encadear, esboçaram-se tamanhas semelhanças entre eles que o texto passou a tomar
corpo de forma natural, agrupando-os em frases, parágrafos e capítulos, como em
uma composição musical: entretela de temas, variações, desenvolvimentos,
recapitulações, seções e finalmente movimentos. As ideias foram se sucedendo,
em improviso, tecendo aqui e ali verdadeiras cadências musicais.
Muito embora minhas reflexões tentem respeitar certa cronologia,
torna-se necessário com frequência preterir o tempo em favor do sentido
universal que empresto ao texto. Colaboram para quebrar a sequência histórica a
interferência de fatos recentes nas descrições de acontecimentos do passado
longínquo e vice-versa. Posso dizer que o verdadeiro Leitmotiv do livro é a personalidade
ímpar dos músicos, nem tanto sua história ou sua obra.
Gossips - Rockwell 1944 |
Outra característica importante a ressaltar é o
aspecto da transmissão oral (gosto de dizer: aural, de aura) de boa parte dessas
informações. Muitos fatos e situações narrados - seja por simples lembrança ou
complementados por pesquisa - surgiram do registro de relatos ouvidos e
vividos, de uma forma ou de outra também passados adiante em corrente e
gravados na memória de uma verdadeira teia de interlocutores.
Consciente
de que interpretava fatos que pertencem tanto a vivências pessoais quanto ao
patrimônio tombado da música universal, uma vez que o trabalho tomou corpo
surgiu uma natural preocupação com os personagens que surgiam em cena.
Situações passam a tomar um colorido especial, dando lugar à imaginação de quem
as descreve - pois isso não é interpretar? Preocupava-me, entretanto, o fato de
que as estórias narradas - sujeitas, é claro, a versões - traziam
frequentemente nomes de pessoas vivas e situações reais. Explico: a natureza
dos causos chega, às vezes, ao absurdo, e não raro desnuda situações
francamente vexatórias, surrealistas ou até mesmo pornográficas. Essas últimas,
por vício corporativista e preservando certo decoro da classe, tratarei de mascarar
e deixarei de pormenorizar.
[Continua
na próxima edição]
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