Reza a lenda que saudade é
palavra que só existe em português, e, nas águas do nosso ufanismo hoje meio em
baixa, só cá no Brasil. Mas ela também existe em outras línguas latinas, como o espanhol, añoranza, nostalgia, morriña; com o
mesmo sentido, rimpianto, em italiano,
ou regret, em francês. O curioso é
que em romeno, língua neolatina, saudade é “dor”, o que vem de encontro ao que
vamos ver, no uso em português. Mesmo não sendo língua latina, na Alemanha, que
tem palavra para tudo, e se não há, criam – “terra em que se juntando tudo dá”,
lembraria Vaz de Caminha –, saudade está lá, em Sehnsucht. Mas, que pena, não temos o verbo ‘saudadar’ em nosso
idioma, nisso perdemos para o inglês, to
miss, e o alemão, vermissen (sentir
falta de), que tem ambos, verbo e substantivo!
O meu amigo e linguista
Deonísio da Silva, lido por estudiosos e escritores, traz algumas observações
valiosas sobre a saudade (De Onde Vêm as Palavras. RJ: Lexicon, 2014. 17ª ed.): “do latim solitate,
solidão. No português arcaico, deu origem a ‘soedade’ ‘soidade’, ‘suidade’”,
embora, ressalta ele, não haja unanimidade entre os etimologistas (estudiosos da
origem das palavras). Silva mostra outra pérola: “Em árabe, as palavras suad, saudá, e suaidá têm
significado dramático, algo como “sangue pisado e preto no coração”. Ai, a
saudade dói!
Casimiro de Abreu |
Tão repleta de significados,
a saudade da Pátria, da terra natal, da infância, tem sentido todo especial –
tanto em são Paulo, onde é frequente dizer tenho ‘saudades’ ou ‘ciúmes’, e no
Rio, Minas e Bahia, elas costumam aparecer no singular. O poeta carioca
Casimiro de Abreu (1839-1860) escreveu um poema que todos conhecem, “A Saudade
da Pátria e da Infância”, inspirado em Gonçalves Dias: “Oh! Que saudades eu
tenho / da aurora da minha vida / da minha infância querida / que os anos não
trazem mais! / Naquelas tardes fagueiras / à sombra das bananeiras / debaixo
dos laranjais”. O irreverente modernista Oswald de Andrade (1890-1954) parodiou
Abreu com fina picardia, em Meus Oito Anos: “Oh que saudades que eu tenho / da
aurora da minha vida / (...) debaixo da bananeira / sem nenhum laranjais /
(...) Eu tinha doces visões / da cocaína de infância...” Saudade de sua terra
tinha Caimmy: “Ah, mas que saudade eu tenho da Bahia / ah, se eu escutasse o
que mamãe dizia”, cantou ele. Que, como todo baiano, amava seu torrão apaixonadamente.
Um bom livro do meu pai |
Há saudade de boas lembranças,
dos grandes amores, dos bons momentos com os entes queridos que já não nos ladeiam.
Do amor há a letra do imbatível Vinicius, com Carlos Lyra, em Primavera: “O meu
amor sozinho / é assim como um jardim sem flor / só queria poder / ir dizer a
ela / como é triste se sentir / saudade”. ‘Um jardim sem flor’, um coração
vazio (em inglês, broken heart:
quebrado, partido). A tristeza de não ver florir a paisagem, entregue à solidão
e uma derradeira tristeza. Solidão Solitude é um livro de meu pai, Autran Dourado, publicado em 1972, que conta histórias tristes escritas mais de 20 anos antes. Várias refletem momentos da vida dele, alguns bem ruins, e outras remetem a personagens fictícios. A solidão é o irmão mais velho da saudade.
Trata-se da mesma melancolia
expressa pelo “Poetinha”, com Jobim, em Chega de Saudade (1958), talvez a pedra
fundamental da bossa-nova: “Chega de saudade / a realidade / é que sem ela não
há paz, não há beleza / é só tristeza / que não sai de mim, não sai”. Está tudo
lá: quando o Poetinha fala de saudade, a tonalidade da canção é menor, que é geralmente
preferida para expressar sentimentos como tristeza. E modula (passa) para tom
maior, na segunda parte, que ajuda a expressar alegria, um rasgo de esperança a
reavivar o coração: “Mas, se ela voltar / se ela voltar, que coisa linda / que
coisa louca”. Melodia e harmonia falam com a letra. E todas juntas, em coro, cantam
a saudade.
João de Barro |
Em 1948, João de Barro - coautor,
com Pixinguinha, do imortal choro Carinhoso - compôs, com Antonio Almeida, a
singela toada A Saudade Mata a Gente, com gosto das coisas do campo: “...e na
rede, nas noites de frio / meu bem me abraçava pra me agasalhar / (...) A
saudade é dor pungente, morena / a saudade mata a gente, morena” (lembra a suad árabe, “sangue pisado e preto no
coração”).
Dolorida também é a saudade
pintada por Chico Buarque em Pedaço de Mim, décadas depois de João de Barro: “Oh,
pedaço de mim / Oh, metade afastada de mim”, para ilustrar assim seu
sofrimento: “...que a saudade dói como um barco / que aos poucos descreve um
arco / e evita atracar no cais”. O desenho de um arco no mar é raro achado,
coisa da erudição do compositor e de sua habilidade de escrever.
Falamos, há dias, de fé, e
agora de saudade. Como é difícil tentar expressar alguma coisa a respeito de
fé, credo, algo que se tem ou não, e, caso não, pode-se sempre vir a ter em um
átimo. Tudo o que se puder escrever sobre ela não é mais do que uma gota no
oceano que a palavra encerra. Tanto é que ainda não se concluiu nada, nem
haverá de ser, à altura de sua natureza divina. E a saudade é um sentimento
terreno, mas como avança sobre caminhos do coração torna-se igualmente difícil
descrever, pensar com objetividade, o que só podemos tratar nos assuntos materiais.
E cada um vê a saudade da cor que quer: Noel Rosa, após o funeral de sua mãe, foi
para casa e vestiu-se, chapéu e camisa florida, direto para o boteco, para curtir
sua fossa no velho conhaque. Alguém passou, viu, e lascou uma severa
reprimenda: “Noel, cruzes, sua mãe acaba de ser enterrada e você aí no boteco, e
com camisa colorida! Você deveria estar de luto!” Noel pegou sua caixinha de
fósforos e improvisou: “luxo preto é vaidade / nesse turbilhão de dor / o meu
luto é a saudade / e saudade não tem cor”. Percepção do gênio.
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