Paus de chuva |
Desde
o início dos tempos, a Música tem assumido papel
de destaque em nossa civilização. Desde aquele
troglodita que, sobressaindo-se na arte de se comunicar com pessoas,
coisas e deuses por meio de gritos, ruídos
e batidas no peito, logo foi designado
pelo chefe para animar a tribo, declarar guerra, comunicar-se à distância, expulsar demônios e mesmo mudar
o tempo - até hoje, entre nossos indígenas,
existe um longo chocalho de nome pau de
chuva. Fora a tradição que sobrevive em
nossos dias: encomendar o corpo dos defuntos.
Serra do Montejunto |
O
Instituto Português do Patrimônio Histórico e Antropológico (IPPFIA) divulgou resultados de
escavações feitas no final
de 1994 na Serra do Montejunto, próximo a Lisboa. Entre adereços, objetos e ossadas de mais de
cem trogloditas, foi
encontrado um fêmur de veado com uma escala de quatro orifícios. É mais do que
comprovada a existência
de instrumentos musicais rudimentares
entre os homens pré-históricos, que como
se vê não buscavam apenas a própria sobrevivência.
(Divertida é a anedota sobre o ancestral
encontrado por supostos arqueólogos
lusitanos, em algum sítio pré-histórico. Um
esqueleto descoberto dentro de uma espessa
parede de construção milenar trazia uma placa
no peito: "Guinness Livro dos Recordes - campeão mundial de esconde-esconde").
Entre
os sumérios, os músicos tinham atribuições funerárias,
talvez razão pela qual nas gravuras aparecem com os semblantes tristes. Dez séculos antes de Cristo, David acalmava
Saul com sua lira e mantinha um coral
de centenas de vozes para seus
salmos, além de orquestras que contavam
com até dezenas de trombetas, e nomeava
sacerdotes milhares de cantores e centenas de mestres. Os assírios, setecentos anos antes de Cristo, já conheciam a kithara,
instrumento de cordas com jeito de lira.
Kithara |
Antiga Flauta de Pã |
Os gregos - fora as contribuições
do matemático Pitágoras, que organizou boa
parte do sistema em que baseia a música
ocidental - já sabiam que o deus Apoio, além
de ideal de beleza, era protetor da Música. E
que Pã tocava uma flauta de sons misteriosos
com a qual iria conquistar o amor da ninfa Syrinx. No início do século 20, o compositor Claude Debussy criou belíssima
obra que leva o nome da ninfa, talvez a peça mais
famosa das escritas para a flauta transversal solo.
Caronte em seu barco: a fuga do Inferno |
Com sua lira, Orfeu narcotizou Caronte, para que
o conduzisse em seu barco ao inferno, de onde
resgataria sua amada Eurídice. A Odisséia
e a Ilíada de Homero eram cantadas, sendo que na
primeira delas Ulisses foi seduzido pelo canto
das sereias, vozes sedutores que quase o levaram ao naufrágio. Entre
os romanos, a Música também tinha papel de destaque.
Exércitos usavam fanfarras para animar
seus desfiles. E Nero, que era o vencedor hors-concours de suas maratonas de
canto, dedilhava uma Lira enquanto via Roma pegar fogo.
Barbarella (Jane Fonda) e a tortura de Duran |
Mais recente,
Jules Verne já fazia seu Capitão Nemo,
como fosse um Nero moderno, inebriar-se entre prelúdios e fugas no órgão de tubos de seu submarino, preparando-se para a grande explosão. O vilão intergaláctico Duran delirava com o som hipnotizante de seu órgão de tubos em cujo interior havia um mecanismo erótico, no qual prendera a estonteante heroína espacial Barbarella, utilizando o instrumento como máquina de prazer e tortura - iniciando com afagos prazerosos em ritmos
suaves, para
afinal punir sua prisioneira com um fortíssimo, para conduzi-la
à morte. Por prazer.
Curioso é que em 1475, em Florença, governantes já faziam uso
político da arte musical. Músicos municipais eram obrigados a tocar para o povo de uma sacada da Prefeitura todos os sábados à noite em loas ao governo, louvando-o por ter
ministrado justiça. Pois um quarto de século antes de Pedro Álvares Cabral aportar, bem antes de Getúlio Vargas e do rádio, aqui já havia sido inventada uma versão florentina da Voz do Brasil ou da Semana do Presidente!
Encantador de serpente |
Nas ruas de Nova Delhi, na Índia, cobras venenosas domesticadas dançam sinuosas ao som de flautistas de turbante. E quem não se lembra de ter lido, na infância, a fábula do
século XV O Flautista de Hamelin, que conduziu os
ratos da cidade para longe, atraídos pelo seu
sopro mágico, até se afogarem em um rio? Sapos são exímios cantores. O canto do acasalamento
desse anuros é feito com a boca fechada, boca
chiusa, como pediu Villa-Lobos na
Bachianas n° 5, para soprano e violoncelos. Os machos cantam para atrair as
fêmeas, e emitem um som grave de sua barriga
para evitar outros machos que por
engano possam abraçá-los por trás. Já a canção do medo é executada com a boca bem aberta, e o som que usam para
demarcar seu espaço é percussivo, usado para bem delimitar seu território.
Il Libro del Cartegiano |
No século 15 Jean Tinctoris afirmava que a Música servia para louvar a Deus, pôr o diabo a correr, salvar os doentes e provocar paixões. Em 1528 Baldessar Castiglione, em II Libro del Cortegiano, assegurou: "não existe pronta cura e remédio para mentes fracas mais completo e valioso do que a Música, também útil para agradar as mulheres, cujos corações ternos e
doces logo são penetrados pela melodia
e alimentados com suavidade”. Não admira
que antigamente, como hoje, elas tenham
certa ‘queda’ por músicos, e tenham a arte deles como “o mais aprazível alimento do espírito". Eurípedes dizia
que cantos mágicos podem fazer os doentes de amor voltarem a si. No século 18, Robert Burton
afirmou que a Música é remédio para as mentes tristes e antídoto contra a
melancolia. E há muito mais para contar, como veremos no próximo capítulo.
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